A Valor T, agência de emprego para pessoas com deficiência, empregou 200 pessoas em dois anos, mas muitas mais esperam por uma oportunidade, o que leva a coordenadora da estrutura a desafiar as empresas a perderem o medo.
Apresentada em 1 de maio de 2021 (Dia do Trabalhador), a data não foi escolhida ao acaso e quis mostrar que as pessoas com deficiência querem um lugar no mercado de trabalho.
Acessível a qualquer tipo de deficiência, recebeu centenas de inscrições nos primeiros meses, ao mesmo tempo que algumas dezenas de empresas aderiam à iniciativa.
O T é de talento e de transformação, mas também de trabalho e de tempo porque o desafio de criação de uma estrutura específica para encontrar emprego para pessoas com deficiência não seria fácil e exigiria tempo para conhecer quem procura uma oportunidade, mas também para convencer as empresas portuguesas das mais-valias deste desafio.
“Desafiamos as empresas a registarem-se na Valor T. Nós temos muita gente com muita, muita vontade de trabalhar, com muitas competências, que valoriza muito a oportunidade de trabalhar”, disse a coordenadora da Valor T.
Em entrevista à agência Lusa, Vanda Nunes defendeu que as pessoas com deficiência não querem ser pensionistas, mas antes contribuintes “num país que precisa de bons recursos humanos, que precisa de uma construção feita com todos, com as diferenças”, no qual haja cada vez mais igualdade na oportunidade.
“As entidades empregadoras que se juntem a nós neste caminho porque é claramente notório e evidente que uma pessoa com deficiência tem muito mais resiliência. A diferença impôs-lhe isso e [ela] valoriza de facto essa oportunidade de trabalhar, muitíssimo”, sublinhou.
Na opinião da responsável, “são ingredientes mais do que suficientes para não ter medo” e as empresas perceberem por elas próprias que o estigma não faz sentido e que abrirem-se a esta experiência “vai naturalmente enriquecer a sua equipa”.
Receio na contratação
Vanda Nunes disse compreender o receio que as empresas possam ter relativamente à contratação de pessoas com algum tipo de deficiência, mas deixou a garantia que o trabalho da Valor T é para apoiar as entidades empregadoras que “querem efetivamente tornar o seu recrutamento mais igual, mais solidário, mais inclusivo” e, até, “mais inteligente”.
“O nosso objetivo é contribuir para que a diferença seja integrada no processo de recrutamento, não diminua a oportunidade, mas antes contribua para que se perceba, como um bom gestor de recursos humanos faz, com qualquer pessoa, em que é que o talento que cada pessoa tem pode acrescentar valor à sua organização”, salientou.
As pessoas com deficiência não querem ser pensionistas, mas antes contribuintes num país que precisa de bons recursos humanos, diz a coordenadora da Agência Valor T.
Vanda Nunes apontou que a Valor T nada tem de assistencialista, visando a integração no mercado de trabalho de forma igualitária, para que as pessoas com deficiência possam ser cidadãos de “pleno direito e de plenos deveres” através de um trabalho digno.
Conta que, atualmente, há cerca de 1.500 pessoas inscritas na Valor T, com processo ativo de recrutamento, sendo que 1.300 “estão numa fase um bocadinho mais avançada do processo de avaliação”. Isto porque todas as inscrições são avaliadas por uma equipa de psicólogos, o que inclui uma entrevista à pessoa que se regista.
Por outro lado, 150 entidades empregadoras já se registaram como disponíveis para contratar e assumiram que estão disponíveis para “um processo de recrutamento mais inclusivo”, sendo que “só cerca de 50 empresas iniciaram o processo de contratação”.
Segundo Vanda Nunes, há “900 e tal pessoas na fase de ‘match’”, ou seja, preparadas para entrar no mercado de trabalho e à espera da oportunidade de emprego que seja mais adequado ao seu perfil.
A coordenadora da Valor T apontou que neste grupo existirão certamente pessoas que, apesar de estarem prontas para começar a trabalhar, não viram surgir um trabalho adequado às suas competências, tal como existem outras pessoas com deficiência para as quais a integração no mercado de trabalho não é solução.
Próximo grande desafio da Valor T
Questões que levam a responsável a referir que o próximo “grande desafio” da Valor T será o de dar apoio à capacitação, com formação e ferramentas direcionadas às oportunidades que o mercado de trabalho tem, “não descurando naturalmente a pretensão de cada pessoa”.
Segundo a coordenadora, há já empresas disponíveis para serem não só entidades empregadoras, mas também capacitadoras, o que permitiria que as pessoas fizessem “formação em contexto de trabalho”.
De balanço, Vanda Nunes lembrou que o arranque da Valor T foi “um lançamento no desconhecido”, mas a adesão e o entusiasmo com o projeto transformou-o num “comboio em andamento e a alta velocidade”.
No trabalho, como na vida, todos têm diferenças. A deficiência é só mais uma.
António e Manuel: dois casos que mostram que a deficiência não é impeditiva de entrar no mundo do trabalho
António tem 50% de visão
António tem 50% de visão e repõe produtos num supermercado, Manuel tem paralisia cerebral e trabalha em cibersegurança, os dois comprovam que a deficiência é apenas mais uma diferença no momento de mostrar trabalho.
António Ferreira tem 42 anos e nasceu com uma deficiência visual que lhe afeta o nervo ótico, provoca-lhe miopia, estrabismo e estigmatismo e lhe reduz a capacidade de visão, que, graças a lentes, chega a 50%.
No trabalho, esta incapacidade por vezes interfere naquilo que António tem de fazer, já que faz reposição de produtos num supermercado e isso implica olhar e ler códigos de barras ou distinguir embalagens que podem ser muito parecidas.
“Uso o telemóvel como ferramenta de trabalho para fazer ‘zoom’ sobre os produtos. Por exemplo, um produto de beleza, em que são letras mais pequeninas, ou de higiene pessoal, eu faço ‘zoom’ sobre o produto e sei que o produto pertence a determinado local. Para ver as próprias etiquetas e os códigos de barras funciona da mesma maneira”, explicou.
Além da ferramenta tecnológica, António admitiu que conta igualmente com a ferramenta humana, já que qualquer colega ou chefe dão uma ajuda sempre que é preciso, o que se revela “muito importante”.
“Só tenho a dizer bem da equipa de trabalho e isso também me tem ajudado na integração e acho que a integração tem sido mais positiva não só pela minha força de vontade, mas também pelo apoio deles. Tem sido um apoio muito importante e acho que sem o apoio deles eu não ia conseguir sozinho”, contou.
Pedro Cerdeira, que é operador de loja no mesmo supermercado Continente Bom Dia onde António trabalha e que tem acompanhado o seu trabalho desde que ali começou há cerca de um mês, admitiu que a maior dificuldade do colega é identificar todos os produtos, uma vez que alguns só se distinguem pelos códigos de barras ou têm diferenças mínimas.
“Ele tem tido muita determinação. Não é uma pessoa de chegar aqui e ficar sem saber o que fazer. Pelo contrário, se não tiver nada para fazer pergunta onde é que é preciso ajuda e isso faz a maior parte da diferença quando está a trabalhar”, elogiou.
Uma determinação que suplantou a deficiência no momento do relacionamento com os outros colegas, já que, tal como frisou Pedro Cerdeira, todos são diferentes uns dos outros e em nenhum momento a deficiência do António fez a diferença.
“Cada um tem que lidar com as suas diferenças. [A deficiência do António] é só mais uma”, relativizou o responsável, segundo o qual a vontade de trabalho do António só faz com que “os outros colegas tenham mais motivação”.
António encontrou este trabalho através da Valor T, uma agência de emprego para pessoas com deficiência, criada há dois anos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Assim que a irmã lhe falou na Valor T, António foi logo inscrever-se. Cumpriu todos os passos e deixou claro que estava disponível para trabalhar onde fosse preciso, “fosse a varrer ruas, num cemitério, fosse a fazer o que fosse”.
“Aliás, eu disponibilizei-me para o país todo para trabalhar [porque] eu queria mesmo era trabalhar”, afirmou.
Manuel tem parilisia cerebral
Manuel não conhece António, mas, tal como ele, faz parte do grupo de cerca de 200 pessoas que encontrou um trabalho graças a esta agência da Santa Casa da Misericórdia.
“Eu faço mapeamento de segurança. A nossa empresa faz ‘rating’ de cibersegurança e eu faço mapeamento das empresas, [saber] o género, nome, onde é que fica, o número de trabalhadores, se tem subsidiárias, e por aí adiante, e este é o trabalho que grande parte da equipa está a fazer”, explicou Manuel Ferrão, 35 anos, à Lusa.
Garante que faz o mesmo trabalho que qualquer outro colega e que o faz “completamente autonomamente”, mesmo até porque nunca gostou que tratem as pessoas com deficiência “como pessoas diferentes”: “Somos cidadãos e pessoas como outras quaisquer”.
Já teve más experiências – como quando, numa entrevista, lhe disseram que as pessoas com deficiência não se deviam candidatar a um emprego de ‘front office’ porque davam má imagem à empresa – mas prefere relativizar como “experiências pontuais”.
“Tirei dois cursos, já trabalhei em grandes empresas, eu [pensei] vou conseguir arranjar [emprego]”, contou, admitindo que a paralisia cerebral, que lhe rouba a mobilidade na perna e braço esquerdos, a visão no olho direito e lhe deixou 64% de incapacidade, nunca o prejudicou particularmente.
A inscrição na Valor T acontece durante a pandemia, numa altura em que estava sem trabalhar. O desemprego durou apenas alguns meses, ao ponto de quando a proposta da Bitsight chegou ao mail de Manuel, ele já estar a trabalhar noutro sítio.
“Na altura pensei: Para trocar de trabalho, tem que ser um trabalho em que eu me sinta bem recebido e na altura foi assim, senti-me muito bem recebido”, revelou, acrescentando que também o atraiu o facto de ser um trabalho “bastante dinâmico e interessante”.
Luís Ramos, gestor da equipa de ‘tecnical research’ da qual Manuel faz parte e responsável pela sua avaliação, contou que Manuel se “destacou pela positiva” durante o processo de recrutamento de três fases, salientando o facto de falar inglês e de ter-se adaptado “muito bem” ao software criado pela empresa.
“Um dos melhores momentos que já tive enquanto ‘manager’ do Manuel foi quando ele me disse, numa conversa, que sentia que fazia parte, [e me disse] esta é a minha casa, a minha equipa, e para mim isso foi excelente”, admitiu.
Para a coordenadora da Valor T, Vanda Nunes, é preciso que as empresas percam o medo de contratar pessoas com deficiência e saibam que há uma agência que ajuda a integrar a diferença no processo de recrutamento, e a mostrar que num mundo de diferenças, a deficiência é só mais uma.
Lusa