Tinha apenas 12 anos quando Maria do Carmo Rebelo de Andrade, conhecida hoje apenas como Carminho, enfrentou, pela primeira vez o Coliseu dos Recreios e atuou para cerca de três mil pessoas. Não pensava, à época, ser fadista, nem via no fado o seu caminho de vida, pois cantava de forma natural. Aliás, sentia até, nos seus tempos de escola secundária, que, de alguma forma o fado a afastava dos seus pares, cuja maturidade não lhes permitia compreender este estranho gosto. Hoje é uma figura incontornável da cena musical, conquistando, além do nacional, mercados internacionais como o brasileiro e o espanhol. Conduz a sua carreira com mestria, sabe o que quer e o que tem de fazer para o alcançar. Apesar da fama, a sua família é o seu porto de abrigo, onde se refugia para retemperar as forças, desgastadas por semanas seguidas em viagem. Tem, nos seus pais pilares que sempre lhe deram amparo e conselho que necessitou.
A cantora já lançou seis álbuns desde 2009. O último é a Portuguesa, no qual se permite descobrir e praticar o fado.
Nascida numa família de músicos, cresceu rodeada de guitarras e discos de fado, jazz e música brasileira. Aos seis, sete anos começou a ter noção da discografia dos pais o que lhe aguçava a vontade de conhecer mais. Nasceu em Lisboa, última filha de cinco, porém o pai, engenheiro civil foi trabalhar para o Algarve, e a família rumou a sul. A mãe, a conceituada fadista Teresa Siqueira, sentia saudades das casas de fado, que não existiam no Algarve, e fazia tertúlias em casa, estando sempre rodeada de fadistas. “Era um hábito, o contacto com os fadistas. Frequentavam a nossa casa o fadista João Braga, os músicos Pedro Veiga, Fontes Rocha, Jaime Santos”, recorda Carminho. De regresso a Lisboa, tinha então 11 anos, a mãe decidiu abrir uma casa de fados em Alfama, a Taverna do Embuçado, onde passava muito do seu tempo. Acompanhava a mãe nas tarefas diárias, como ir à praça, ou comprar velas, pois gerir um espaço destes era muito mais do que simplesmente abrir à noite para a sessão de fados. Dava-se bem com os empregados, com os músicos e era acarinhada por todos. “Foi aqui que conheci a Amália, a Beatriz da Conceição – que além da minha mãe foi uma grande mentora para mim – a Celeste Rodrigues, o músico Paquito, Ricardo Rocha, e mais tarde o Camané, entre muitos outros”, revela. Quando a mãe foi convidada para um espetáculo no Coliseu dos Recreios, com vários fadistas que podiam levar os filhos para cantar, ofereceu-se para participar. “A minha mãe nem sabia que eu cantava e que sabia um fado inteiro. Tive de fazer uma audição com os músicos para ver se tinha o aval deles e só assim é que a minha mãe me deixou participar”, recorda Carminho. Cantou e encantou com o Fado do Embuçado.
O pai, Nuno Rebelo de Andrade, a mãe, a fadista Teresa Siqueira, e a fadista Beatriz Conceição, falecida em 2015, foram alguns dos seus pilares e mentores de vida.
As influências foram muitas, mas mesmo assim não viu futuro profissional na área da música. Na escola secundária sentia mesmo que o facto de cantar fado lhe dificultava a integração. “Os outros miúdos não gostavam, não compreendiam, o que criava uma barreira, porque nestas idades gostam de tudo o que compreendem para serem aceites. Essa dificuldade criou em mim uma enorme resiliência e o fado foi integrador, criou um sentimento de pertença”, explica a fadista. Tinha amigos mais velhos, os fadistas e músicos com quem partilhava os mesmos interesses.
Prémio Amália – Revelação Feminina, Prémio Carlos Paredes, Globo de Ouro para Melhor Intérprete, são alguns dos prémios que já recebeu ao logo da sua carreira.
Porém, nem assim via no fado como o seu caminho de vida. “Não ambicionava nada. Cantar era algo natural na minha família, pois todos cantavam. E eu não pensava nisso como profissão ou carreira”, relembra Carminho. Como sabia que precisava de um percurso profissional, estudou Marketing e Publicidade, em Lisboa, mas quando o terminou, aos 21 anos, não se sentia preenchida.
A viagem transformadora
Foi nessa fase que surgiu a viagem que mudaria a sua vida. Como já cantava nas casas de fado tinha juntado algum dinheiro e decidiu dar uma volta ao mundo, uma viagem de mochila às costas com paragem em vários países durante quase um ano à procura da sua identidade. Inicialmente foi com uma prima, mas acabaram por tomar rumos diferentes. Esta viagem foi o ponto de viragem na sua vida. Já anteriormente tinha recebido propostas para gravar um disco. “Recebi convites das quatro editoras que frequentavam as casas de fado. Foram quatro almoços, com a presença do meu pai, e que acabaram todas por ter uma resposta clara: não me sentia preparada para gravar, nem madura o suficiente, não tinha definido uma escolha de reportório, nem uma mensagem, nem uma identidade artística que me permitisse avançar. Gravar era fácil, difícil era defender esse trabalho”, confessa. O pai foi aqui um grande apoio, sem pressionar, apoiou sem as suas decisões.
Uma volta ao mundo, de mochila, na qual conheceu países como a Índia, local onde fez seis meses de voluntariado, a China, a Malásia, o Vietname, o Camboja, a Austrália, a Nova Zelândia, o Peru, a Bolívia, a Argentina, o Brasil, entre outros, foi a viagem da sua vida.
Houve quem pensasse que fez mal em não aceitar logo, que perdera a oportunidade de uma vida, mas fez o que o seu coração mandou, para se encontrar. Embarcou em redor do mundo naquela que foi uma viagem de aprendizagens e de autoconhecimento. Deixou o telemóvel em casa, para se isolar e perceber qual o seu verdadeiro caminho e vocação, vivendo em privação das coisas essenciais. Passou por diversos países na Ásia, na América do Sul, na Oceania. Na Índia fez quase seis meses de voluntariado, na Casa da Madre Teresa de Calcutá, e assume que foi um trabalho muito importante no seu crescimento pessoal pois a retribuição vai chegando durante o processo. “Esse retorno assume muitas formas, a forma como os outros nos olham, a imagem que têm de ti, a forma como descobres as tuas inseguranças. Precisei dessa busca de identidade”, explica Carminho. Acredita que ainda hoje colhe frutos dessa aventura, já que lhe mostrou a sua capacidade de superação, de perceber que os limites são ultrapassados com as experiências que definem esses mesmos limites.
No regresso sentiu-me mais preparada para enfrentar o destino. Até então não tinha percebido que o fado seria a sua forma estar. “Eu dizia ao meu pai dizia que não podia fazer da música vida porque era muito fácil, e era injusto receber dinheiro por aquilo que gostava de fazer”, recorda. O pai aconselhou-a que não devia desperdiçar a oportunidade que poucos têm de fazer o que realmente gostam, e por outro lado, que não pensasse que não iria dar muito trabalho, porque iria. Considerou que isto foi realmente um conselho importante e foi esse o seu verdadeiro despertar. “Percebi que iria levar isto mesmo a sério, e tive a sensação clara que este caminho era a minha escolha de vida e nunca mais pensei noutra coisa até hoje”, afirma Carminho.
Pablo Álboran (com a canção Perdonáme alcançou o número 1 em Espanha), Chico Buarque, Milton Nascimento, Nana Caymmi, Marisa Monte, Maria Bethânia, Carlos do Carmo, Bárbara Bandeira são alguns dos nomes com quem já cantou ou trabalhou diretamente.
Começou aqui a tarefa hercúlea da qual nada se arrepende. Ponderou os convites e decidiu-se pela pessoa que lhe deu força para empreender a sua viagem, e se mostrou disponível a apoiar no seu regresso, o manager João Pedro Ruela. “Tive muita sorte de poder decidir sem pressão. Algumas pessoas diziam que deveria ter aproveitado logo, porque uma oportunidade destas que só aparece uma vez. Mas eu sabia que quanto mais me desenvolvesse como pessoa mais valor teria no futuro, como fadista, como artista, seria mais forte e mais consciente, e teria assim mais valor para um manager e para uma editora”, explica.
Surgiu então em 2009, o primeiro álbum, tinha 25 anos. Fado, como se chamava, foi logo aclamado pela crítica e depressa se tornou o trabalho mais destacado desse ano atingindo o disco de platina. Foi considerado o melhor álbum do ano pela revista britânica Songlines, e abriu as portas do mundo para uma das mais internacionais artistas portuguesas, surgindo atuações nas principais capitais europeias. Nesse ano começou a definir-se a identidade da artista, que considera ser uma continuidade, pois nenhum artista tem a sua identidade completamente definida, e vive da sua própria construção. “Arrisco dizer que todos os artistas estão em construção, pois o caminho faz-se passo a passo, em que tudo é determinante. Cada passo que dei foi determinante para o seguinte, e todos foram importantes para chegar até aqui hoje”, refere.
Carminho, uma marca internacional
Nasceu aqui a marca Carminho. Nunca chegou a exercer o curso de marketing, mas acredita que as aprendizagens sobrevivem dentro de nós. “A minha equipa diz, na brincadeira, que o meu maior defeito como artista é saber de marketing, porque quero ter sempre voz nas decisões. Acredito que o curso foi uma mais valia porque tinha a consciência de como comunicar, que tem as suas artes, pois não basta ser, é preciso também comunicar o que se é. E o marketing é uma ferramenta fabulosa para se contar uma história, para que chegue de uma forma clara e apaixonante”, revela.
Com 676 mil ouvinte por mês no Spotify, Carminho tem uma equipa de 17 pessoas envolvida na gestão da sua carreira.
O sucesso do primeiro disco foi, para si, uma grande surpresa, já que se vivia uma época de crise. Refere que iniciou um percurso do mais florescente que poderia desejar, com críticas fantásticas e com repercussão impactante. “Quando comecei a cantar, o fado era muito maltratado, era considerado menor, porque havia muito preconceito, mas este género sempre viveu de ciclos”, refere. Os trabalhos seguintes foram a continuidade desta carreira, como o Alma, que surgiu em 2012, e com o qual realiza o sonho de gravar, numa reedição, com Chico Buarque, Milton Nascimento e Nana Caymmi. Foi um trabalho que a catapultou no Brasil, país no qual considera ter feito um percurso muito estimulante. Foi na sequência desta relação com o país irmão que surgiu, já depois do terceiro álbum, Canto – onde gravou dois inéditos, um de Caetano Veloso e do filho Tom, e outro com Marisa Monte -, um convite inesperado da família Jobim para gravar um disco em que canta Tom Jobim. “Entrei neste de cabeça. Tive o privilégio de gravar com a banda original que tocou os últimos 10 anos com Tom Jobim ao vivo e foi fabuloso. Tenho duetos com Chico Buarque, Maria Betânia, Marisa Monte, com uma participação da Fernanda Montenegro. Com este álbum fiz uma tournée fantástica e irrepetível, que me trouxe muitas alegrais e memórias”, recorda.
Maria foi o título escolhido para o quinto trabalho e aqui a fadista revela que tem muito de homónimo, Maria é o seu nome, mas também é o nome mais comum em Portugal. Este disco representou um regresso às profundezas da artista, à origem do seu fado, aos tempos ainda do Algarve. “Vinha com muitas saudades de cantar fado e da minha natureza livre, da minha própria linguagem. Foi um processo de regressão, terapêutico, procurando as sensações do que é cantar o fado intuitivamente”. explica. Diz que canta aquilo que é, mas procura mais em si, procura a evolução enquanto artista, mas mantendo-se sempre na essência.
“Sinto que dei passos bastante seguros ao longo do meu percurso para chegar até este disco. Nunca seria capaz de o fazer sem esse caminho, por várias razões, como produzir musicalmente o próprio trabalho.”
Todo este processo criativo ao longo dos anos, conduziu a sua carreira ao sexto álbum, recentemente lançado, a Portuguesa. “Sinto que dei passos bastante seguros ao longo do meu percurso para chegar até este disco. Nunca seria capaz de o fazer sem esse caminho, por várias razões, como produzir musicalmente o próprio trabalho”, explica. É um disco que apresenta continuidade e que representa toda a identidade de uma língua, a sua música, a sua poesia. É onde navega, onde se identifica, onde se explora e permite mergulhar. “Portuguesa sou eu, onde me identifico e me revejo. É um disco que reflete muito o meu trabalho sobre um lado mais do fazer e do praticar. O fado é um estilo artesanal de fazer um género, pois há qualquer coisa de artesão num fadista, ele o que faz é praticar o seu género”, diz. Para esta artista praticar é mais do a descoberta, é praticar a composição de fados tradicionais, a busca pela poesia, pela conjugação de fados tradicionais e novos textos, descobertos no meio de repertório de poetas portugueses incontornáveis e perceber qual é a música que encerra. “O fado tem as suas características, as suas regras, mas é riquíssimo. O número de conjugações possíveis é infindável. O fado para mim nunca se esgota”, remata.