José Rui Marcelino é um dos mais reputados designers de produto de Portugal. CEO do atelier Almadesign, Professor associado da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, José Rui Marcelino é também vice-presidente do Cluster português para as Indústrias da Aeronáutica, Espaço e Defesa (AED Cluster Portugal), sendo o coordenador da comissão da aeronáutica.
Numa altura em que a localização do novo aeroporto internacional de Lisboa ficou decidida, Rui Marcelino explica de que modo pode Portugal aproveitar (e não desperdiçar, se se preferir) esta oportunidade histórica para dinamizar o cluster da aeronáutica português que já é reconhecido lá fora e reúne mais de 130 entidades e maximizar o efeito multiplicador para toda a economia local desta nova infraestrutura.
Quando se fala em aeronáutica não se pensa propriamente em Portugal. Contudo, existem players ativos. Que retrato se pode fazer deste setor em Portugal e a sua relevância no panorama internacional?
Felizmente, esse é um pensamento que já não corresponde à realidade. De facto, se era assim há duas décadas, hoje, o cenário é bem diferente, resultado do trabalho de um ecossistema muito dinâmico, que permitiu ao setor crescer significativamente ao longo dos últimos 15 anos. Primeiro, com a Associação PEMAS, na área aeronáutica, e, depois, com a união com as associações afins, do Espaço e da Defesa, formando o que é hoje a AED, Associação para a Aeronáutica, Espaço e Defesa.
O que eram 6 ou 7 empresas mais reconhecidas, onde se incluía a TAP ou a OGMA, está hoje organizado num cluster com mais de 130 entidades, representando uma cadeia de fornecimento madura, que exporta 90% do valor gerado, com a entrega de produtos e serviços e desenvolvimento de projetos de R&D em todo o mundo, com o consequente reconhecimento internacional, como o atestam as presenças regulares em feiras e eventos internacionais, a presença da AED na associação europeia ASD ou a participação na EACP (European Aerospace Cluster Partnership).
Este reconhecimento trouxe também o investimento de grandes integradores internacionais e Tier1 para diferentes pontos de Portugal, como aconteceu com a Embraer, Airbus, STELIA, Thales, GMV, Aernnova, LAUAK, Mecachrome, entre outras.
Qual o peso económico que este conjunto de atividades (aeronáutica, espaço e defesa) tem no nosso país?
O setor AED representa cerca de 1,8% do PIB e tem a ambição de chegar a 3% nos próximos anos. Tem um balanço muito relevante ao nível das exportações, já que quase a totalidade do valor gerado é para exportação, integrando cerca de 20.000 profissionais altamente qualificados. Por outro lado, o efeito multiplicador do investimento nestas áreas inovadoras é bastante relevante, pois as soluções aqui desenvolvidas têm um valor acrescentado muito alto e são aplicadas em muitas outras áreas. O que significa que, por cada euro investido podemos ter várias vezes o seu retorno em benefícios para a sociedade.
“O setor AED representa cerca de 1,8% do PIB e tem a ambição de chegar a 3% nos próximos anos”
Quais são os principais projetos em Portugal em cada um destes vetores: aeronáutica, espaço e defesa?
É difícil identificar quais são principais projetos, porque são muitos.
Em concreto, posso mencionar a participação de dezenas de empresas portuguesas no desenvolvimento da aeronave KC390 da Embraer, a renovação dos interiores da frota da TAP, com uma inédita incorporação nacional, no design, fornecimento e integração (TAP M&E, Alma, Couro Azul), ou a agenda Aeron.Next, que inclui o projeto de uma aeronave regional ligeira (ARL) e um drone de carga (ARX) para fins civis ou militares, liderados pela EEA, o CEIIA e a Tekever, com o envolvimento de 36 entidades e financiado pelo PRR.
Na vertente mais inovadora, de destacar também o design do primeiro avião totalmente elétrico, com a Eviation, premiado a nível internacional, e o eVTOL da EVE, com a Alma, a Set.Sa e outros fornecedores nacionais. De relevar também a importância do projeto FYPT, na área dos eVTOL/UAM (Urban Air Mobility), e a participação no projeto HERA (Hybrid Electric Regional Aircraft), integrado no Programa Clean Aviaton com a Airbus e a Leonardo, onde participam o ISQ e o INEGI, entre muitos outros.
“O cluster português da aeronáutica, espaço e defesa tem mais de 130 entidades, representando uma cadeia de fornecimento madura, que exporta 90% do valor gerado”
Já na aeronáutica, há também projetos de aeroestruturas complexas, de manutenção de aeronaves e motores, com a Embraer e a Pratt&Whitney na OGMA, para o fabrico e maquinação de peças e subsistemas, integração completa de drones para aplicações civis e militares (com a Tekever, UAVision, Beyond Vision), e projetos inovadores na área da UAM e AAM (Advance Air Mobility). São também muito relevantes todos os projetos para descarbonização do setor. Dos sistemas de armazenamento de energia à propulsão ou produção de combustíveis mais sustentáveis.
Na área do espaço, podemos referir a participação em diferentes projetos da ESA ou da NASA, o investimento em lançadores e microssatélites, como o lançamento dos satélites portugueses MH1 e ISTSAT-1, e o projeto PRR Newspace com a GeoSat, CEIIA, Omnidea, ISQ, Lusospace, e um total de 39 entidades.
Por fim, na área da defesa, há inúmeras colaborações diretas com a Marinha, Força Aérea e Exército, num quadro de sinergia inédito em Portugal. E que passa pelo fabrico completo de drones, construção de embarcações, sistemas autónomos, soluções inovadoras de inteligência artificial, sistemas de cabina, navegação e controlo, ou a participação em projetos inovadores com a NATO e a união Europeia, como a iniciativa DIANA ou o projeto EPIIC.
Assim, nestes três setores, é de destacar, não só os inúmeros projetos de fornecimento para OEM (grandes integradores internacionais) Tier 1 e Tier 2, mas também os projetos de I&D com parceiros nacionais e internacionais.
Quais são as principais forças e fraquezas do cluster português na Aeronáutica, Espaço e Defesa?
A principal força do Cluster AED é termos uma rede de cooperação muito forte e dinâmica. São setores com um mindset mais inovador que o habitual, portanto, mais propenso à inevitabilidade da colaboração. E engloba no interior da Associação todos os stakeholders do sistema: indústria, academia, operadores e até autarquias, como Ponte de Sor, Castelo Branco, Seia, Évora ou Oeiras, e a ligação a entidades de controlo e regulamentação do espaço aéreo, como a NAV e a ANAC.
As fraquezas não são muitas, mas é importante existir um maior alinhamento com as políticas nacionais e internacionais para estes setores, com ciclos de desenvolvimento mais longos do que os ciclos políticos, através de uma maior auscultação da sociedade e do ecossistema AED.
É também essa a missão da Associação. Algo que tem sido possível realizar com o apoio de agências governamentais, como a AICEP, nas exportações e economia, ou a IdD, na área da defesa. Mas que pode ser levado ainda mais longe com maior envolvimento da AED.
“É importante existir um maior alinhamento com as políticas nacionais e internacionais para estes setores, com ciclos de desenvolvimento mais longos do que os ciclos políticos”
Em relação às suas fraquezas, de que modo pode o país ultrapassá-las?
É importante que a informação bottom-up passe de forma mais eficientemente, e que Portugal e a Europa tenham um maior alinhamento a longo prazo do que é necessário para os diferentes países e respetivas economias. Na Europa, em particular, mas também em Portugal, os principais desafios prendem-se com a demografia e a inovação. Nunca foi tão crítica a gestão de talento qualificado, para suprir as crescentes necessidades da indústria, em que a AED tem trabalhado ativamente com entidades como a QSR ou a ABSANT. Mas também a maior eficiência do processo “investigação – inovação”, com o envolvimento das empresas e entidades académicas como o IST, FEUP, UBI, ISEC Lisboa, Atlântica, e as Universidades de Évora, Minho, Aveiro, ou Coimbra, bem como entidades de interface como o CEIIA, INEGI, INESC TEC, IPN, IT ou IdMEC. Por fim, a criação de uma estratégia industrial e de defesa comum, de longo prazo, onde a AED pode ter um papel fundamental na ponte entre as políticas públicas e a sociedade.
“Nunca foi tão crítica a gestão de talento qualificado, para suprir as crescentes necessidades da indústria”
Que clientes procuram o know-how português nestes setores?
Todos os tipos de clientes. Desde OEM, até fornecedores de 1ª e 2ª linha (Tier 1, Tier 2), que fornecem os anteriores.
Pode falar-nos sobre algumas das inovações tecnológicas mais promissoras que foram ou estão a ser desenvolvidas pelos membros do cluster?
Como já referi, as inovações tecnológicas encontram-se em inúmeras áreas, como as áreas do SAF (combustível sustentável para a aviação), com a TAP, Smart Energy ou Galp, manutenção smart e preditiva com a OGMA ou a Aeromec, impressão 3D e produção de materiais mais leves e sustentáveis, com o INEGI, PIEP, CODI, IPL, etc.
Em toda a área da AAM (Advance Air mobility), as oportunidades de inovação estão bem presentes no Mobilizador FLY.PT, dinamizado pela AED, e que integra os desafios tecnológicos da mobilidade horizontal com a vertical, com o envolvimento de 15 entidades nacionais.
No Espaço, os microssatélites e lançadores espaciais, e, na Defesa, o desenvolvimento de novas soluções autónomas com recurso à IA e solução de sistemas integrados de formação e operação com a Marinha, Força Aérea e Exército, através de empresas, como a GMV, Thales, Edisoft, ETI ou Critical Software.
Numa altura em que ficou decidida a localização do futuro aeroporto de Lisboa, como avalia o impacto económico que esta infraestrutura terá no cluster português da aeronáutica?
Naturalmente, o impacto económico será tanto maior quanto mais cedo for possível envolver as empresas nacionais na conceção, desenvolvimento e construção do empreendimento. Para tal, e mais uma vez, importa estar atento ao que se faz bem a nível nacional, e entender que o envolvimento local tem um efeito multiplicador para a economia. As oportunidades são vastas, desde a construção de infraestruturas aeroportuárias, veículos e sistemas de suporte, sistemas de interface de mobilidade, sistemas e serviços de apoio à gestão e operação, serviço ao passageiro, sistemas de segurança, navegação e controlo, sistemas de armazenamento e abastecimento de energia, etc.
“O impacto económico do novo aeroporto será tanto maior quanto mais cedo for possível envolver as empresas nacionais na conceção, desenvolvimento e construção do empreendimento”
Pode dar-se o caso de Portugal pouco aproveitar o novo aeroporto para estimular este setor da aeronáutica, atendendo a que os trabalhos serão entregues por concurso público internacional, como exigência legal, e nenhum interveniente português deste setor poder não participar no projeto?
Há soluções nacionais quase incontornáveis que estão presentes na maior parte do mundo, como os sistemas de controlo da Vision-Box ou os autocarros COBUS de transporte de passageiros. No entanto, e tal como acontece nos restantes países europeus, os concursos para aquisição de projetos e equipamentos devem privilegiar as vantagens da circularidade e sustentabilidade (económica e ambiental) das soluções locais. Para construção, manutenção e estímulo à futura exportação, com consequências positivas para a economia local. Todos os países fazem-no, e Portugal também deve saber como fazê-lo, evitando duas armadilhas, a escolha pelo critério único do preço mais baixo e o preconceito de que o que é nacional não é bom.
“Portugal deve evitar duas armadilhas [na escolha de trabalhos e soluções para o novo aeroporto], a escolha pelo critério único do preço mais baixo e o preconceito de que o que é nacional não é bom”.
O aeroporto de Beja que utilização pode ter para que seja melhor rentabilizado?
A realização do festival aéreo pela Força Aérea, por exemplo, é já uma excelente iniciativa. Mas já foram propostas diferentes soluções pela AED, como as possíveis utilizações para a área da manutenção e construção de aeronaves ou para aplicações na área do Espaço ou da Defesa, onde o fator proximidade seja equacionado noutra perspetiva para extrair mais benefícios da maior pista aérea do país. A AED também está a trabalhar com os stakeholders locais nessa matéria.
“Já foram propostas diferentes soluções pela AED para rentabilizar o aeroporto de Beja”