Opinião

Guerra comercial e de-dolarização: Uma nova ordem económica?

Jean-François Robin

Num mundo onde o comércio global se encontra em fragmentação e o dólar está a perder terreno como moeda dominante, começa a emergir uma nova ordem económica. A guerra comercial entre os EUA e os seus parceiros, o impulso crescente pela autonomia monetária e o aumento dos orçamentos de defesa em toda a Europa são sinais claros de um novo equilíbrio global e exigem uma resposta coordenada, estratégica e com visão de futuro por parte do velho continente.

 

A retórica protecionista, que se intensificou durante a administração Trump, tornou-se agora uma realidade inegável: em 2023, existiam mais de 3.300 barreiras comerciais em vigor, face às apenas 270 registadas em 2010. Esta escalada culminou numa guerra comercial em grande escala, cujos efeitos se tornam cada vez mais visíveis. A previsão da OMC para o crescimento do comércio global, anteriormente de +2,7%, foi revista para uma contração de -0,5%.

Os Estados Unidos, outrora defensores do livre comércio, regressaram a uma postura fortemente protecionista, com tarifas ao nível mais elevado desde 1910. As consequências já se fazem sentir: a economia abranda, o investimento recua e o défice aproxima-se dos 7% do PIB. O crescimento deverá mais do que reduzir para metade em 2025, passando de 2,8% em 2024 para 1,2%, segundo as nossas previsões. Neste ambiente de estagflação, ainda se esperam cortes nas taxas de juro nos EUA até ao final do ano, enquanto o BCE já realizou oito cortes até à data. A incerteza política e orçamental está a minar o apetite dos investidores pelos mercados norte-americanos.

Neste contexto, a China surge como principal beneficiária. Apesar das tensões persistentes, o seu crescimento mantém-se acima dos 4% este ano. O redirecionamento das exportações para mercados alternativos – como o Sudeste Asiático e Europa – está a dar frutos, apoiado por uma desvalorização do yuan, que tem sustentado esta resiliência. No entanto, este movimento agrava os desafios europeus, que tentam equilibrar o impacto das tarifas dos EUA com o excesso de capacidade industrial da China.

No tabuleiro geoeconómico atual, uma nova tendência ganha força: a desdolarização. A quota do dólar nas reservas cambiais mundiais caiu de 73% em 2001 para cerca de 58% em 2024. Um número crescente de países está a celebrar acordos bilaterais em moedas locais, numa tentativa de reduzir a dependência do dólar e evitar a sua eventual “arma de guerra económica”. A isto junta-se o aumento da dívida e do défice dos EUA (com downgrade por parte da Moody’s), o abrandamento do comércio global, os ataques mais vocais à independência da Reserva Federal e a eletrificação das economias. Tudo indica que esta tendência irá acelerar a diversificação monetária internacional, espelhando a crescente regionalização do comércio.

A Europa, por sua vez, pode encontrar uma oportunidade neste reequilíbrio. Apesar de continuar subvalorizada face ao mercado norte-americano, os ativos europeus poderão beneficiar de uma reorientação dos portefólios globais. A expectativa de um euro mais forte, combinada com diferenciais de taxas de juro, torna os investimentos europeus mais atrativos. Paralelamente, a mudança contínua para reservas em ouro — cujo preço tem vindo a subir de forma constante desde 2009 — ou a adoção crescente de criptomoedas são mais sinais de uma reconfiguração nos equilíbrios globais e de que os investidores procuram alternativas.

Talvez o sinal mais disruptivo surja no setor da defesa. Com o aumento das tensões geopolíticas com a Rússia (e China), e um recuo estratégico dos EUA, a Europa não tem alternativa senão reforçar o seu investimento em defesa, passando de 2% para 5% do PIB até 2035 — algo que poderá também dar um impulso às economias europeias. No entanto, o impacto económico dependerá da capacidade de produção local: atualmente, grande parte da cadeia de abastecimento da defesa europeia depende de fornecedores externos. Reverter esta dependência e investir em inovação interna será fundamental. Enquanto os EUA alocam cerca de 16% do seu orçamento de defesa a I&D (cerca de 150 mil milhões de dólares), a Europa investe atualmente entre 13 e 14 mil milhões de euros, ou seja, apenas cerca de 5% do total. E se pensarmos em áreas como internet, GPS, drones, cibersegurança ou o espaço, o potencial multiplicador destes investimentos no PIB é hoje mais forte do que nunca.

 

A guerra comercial, a de-dolarização e o rearmamento europeu não são apenas reflexo de um mundo mais fragmentado. São os contornos de uma nova ordem económica. Cabe à Europa, e a países como Portugal, encontrar o seu espaço nesse novo equilíbrio: com estratégia, com investimento e com visão de longo prazo.

Jean-François Robin,
Head of CIB Research na Natixis

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