Da proposta de Orçamento de Estado para 2024, há um aumento relativamente camuflado que poderá vir a trazer uma inesperada aflição financeira a muitos proprietários de veículos: um aumento do IUC (Imposto Único de Circulação) sobre algumas categorias de veículos que permitirá que o Estado encaixe mais 84 milhões de euros.
Este herdeiro do antigo “selo automóvel” é pago todos os anos, no mês da matrícula do carro, sendo exigido a todas as viaturas, mas, a partir de janeiro, as que forem mais antigas (mais especificamente os automóveis anteriores a 1 de julho de 2007) e os motociclos estarão na mira do Estado.
É que se as taxas de IUC para todos os modelos sofrerão atualizações em 2024 à taxa de inflação prevista, no caso dos carros de maior idade, esse agravamento é muito superior.
Passando a explicar e olhando para o caso dos automóveis:
O IUC define uma “Categoria A” aplicada a automóveis ligeiros de passageiros e automóveis ligeiros de utilização mista com matrícula de 1981 até 30 de junho de 2007.
Há ainda uma “Categoria B” que se aplica a automóveis de passageiros e ligeiros de utilização mista com matrícula a partir de 1 de julho de 2007.
Até aqui, o IUC pago por cada uma das categorias de automóveis (“Categoria A” e “Categoria B”) era determinado por uma tabela diferente. E isso vai mudar.
No caso dos veículos da “Categoria A” o imposto à data de 2023 é calculado tendo em conta a cilindrada, a antiguidade da matrícula e o tipo de combustível (com os carros a gasóleo a terem ainda uma taxa adicional).
Quanto aos veículos da “Categoria B”, as contas fazem-se levando em consideração a cilindrada (taxa da cilindrada) e o nível de emissão de dióxido de carbono (CO2, taxa ambiental), medido pelo ciclo NEDC ou pelo WLTP (consoante o sistema de testes a que o veículo foi sujeito para efeitos da sua homologação técnica, ou, quando este elemento não integre o certificado de conformidade, as emissões que resulta de medição realizada num centro de inspeções). A soma da taxa de cilindrada e ambiental é multiplicada por um coeficiente, consoante a data da primeira matrícula. Para os veículos a gasóleo existem taxas adicionais. Isto é o que existe agora.
O que vai acontecer a partir de 1 de janeiro de 2024?
As taxas da “Categoria A” desaparecem. Os veículos que, até aqui, pagavam o IUC com base nessas tabelas são encaixados também nas taxas da “Categoria B”, cujos valores previstos para o próximo ano são estes aqui:
Escalão de cilindrada (em centímetros cúbicos) | Taxas pela cilindrada (em euros) | Escalão de CO2 (em gramas por quilómetro) | Taxas pelo CO2 (em euros) | |
NEDC | WLTP | |||
Até 1250 cc | 31,77 | Até 120 | Até 140 | 65,15 |
Mais de 1250 até 1750 cc | 63,74 | Mais de 120 até 180 | Mais de 140 até 205 | 97,63 |
Mais de 1750 até 2500 cc | 127,35 | Mais de 180 até 250 | Mais de 205 até 260 | 212,04 |
Mais de 2500 cc | 435,84 | Mais de 250 | Mais de 260 | 363,25 |
Nos casos dos veículos com matrícula até 30 de junho de 2007 em que não seja possível apurar o nível de emissão de dióxido de carbono é aplicado, em função da sua cilindrada, o escalão de CO2 da seguinte tabela:
Escalão de cilindrada (em centímetros cúbicos) | Escalão de emissões (CO2) |
Até 1500 cc | 1.º escalão |
Mais de 1500 até 3000 cc | 2.º escalão |
Mais de 3000 até 4000 cc | 3.º escalão |
Mais de 4000 | 4.º escalão |
Isso leva a que os automóveis anteriores a 30 de junho de 2007 passem a ser tributados também pelo CO2, o que não acontecia até aqui. Como se trata de viaturas mais antigas que são, por regra, mais poluentes, irão pagar mais. Na verdade, bastante mais, em nome do ambiente. E ainda que o governo não tenha falado do tema, preferindo antes focar-se nas reduções de escalões em sede de IRS, o intuito é mesmo esse, como se lê no relatório que acompanhou a apresentação da sua proposta do OE 2024: “Não sendo considerada a componente ambiental, a poluição causada por estes veículos não tem relevância fiscal [até aqui]”.
Os carros mais antigos passam a pagar um IUC ao nível de um modelo novo.
Vejam-se alguns valores, segundo as contas feitas pelo Automóvel Club de Portugal (ACP):
No caso de um automóvel até 30 de junho de 2007, com motor de 1.400 cc de cilindrada e um CO2 até 180 g/km, em teste NEDC (ou até 205 gramas em teste WLTP), o IUC a pagar é de 63,74€ (taxa cilindrada) + 97,63€ (taxa ambiental), o que dá um total de 161,37€ de imposto. Até aqui pagavam 60,64€ de IUC.
Mas há aumentos bem piores, aponta o ACP: num Renault Clio 1.2 e Opel Corsa 1.2, ambos de 2007, o aumento é 233%. Estes modelos pagaram em 2023 um IUC de 38,82€. Com o que está previsto no OE 2024 vão passar a pagar 129,40€, pela soma de 31,77€ (componente cilindrada) e 97,63€ (componente de CO2 devido ao nível de emissões estar acima dos 120 g/km em teste NEDC).
Pegando no mesmo exemplo, uma viatura com motor de 1.400 cc, mas sem que seja possível apurar o nível de CO2, o cálculo passa a ser o seguinte: 63,74€ + 65,15€ (1º escalão de CO2), o que se traduz num IUC de 128,89€, representando um agravamento de 113%, explica o ACP.
Outro caso: um Opel Zafira passa de 66,95€ para 224,98€. Para um Porsche 991 (geração 996), o IUC aumenta cerca de 300 euros.
Modelo | Combustível | Ano matrícula | IUC 2023 | IUC 2024 | Aumento |
Renault Megane1.5 dCi * | gasóleo | 2007 | 63,78€ | 161,37€ | 153% |
Opel Corsa 1.2 * | gasolina | 2007 | 38,82€ | 129,40€ | 233% |
Renault Clio 1.2 16v * | gasolina | 2007 | 38,82€ | 129,40€ | 233% |
Peugeot 306 1.4 | gasolina | 1998 | 60,64€ | 128,89€ | 113% |
Opel Zafira 2.0 | gasóleo | 2004 | 66,95€ | 224,98€ | 236% |
Porsche 911 (996) 3.6 cc | gasolina | 2003 | 497,79€ | 799,09€ | 61% |
* 3 versões mais vendidas em 2007. Fonte: ACAP
Aumentos em lume branco… até queimar
Para que o aumento brutal não seja sentido de uma só vez, o governo determina que o IUC vá subindo progressivamente (até 25 euros por ano, por veículo)… até atingir o valor total previsto.
“A reforma terá um limite de €25 por veículo em 2024, sendo este progressivamente aumentado até que a taxa de IUC represente a totalidade da tributação relativa ao CO2 emitido por estes veículos”, afirma o executivo no relatório da proposta de OE 2024.
Tendo presente um Clio 1.2, um modelo bastante popular, e aquilo que terá de pagar de IUC de acordo com estas novas regras e com os aumentos progressivos de 25€/ano, significa que em 2024 pagará 63,82€ (38,82€ + 25€), em 2025 desembolsará 88,82€ (63,28€ + 25€), em 2026 será onerado com 113,82€ (88,82€ + 25€) e em 2027 chegará ao tal valor de 129,40€.
Portanto, bastará apenas quatro anos para um Clio mais antigo ter um aumento de 233% no seu IUC. Isto com base nas tabelas atuais, porque, como é sabido, todos os anos, o IUC sobe, no mínimo à taxa da inflação.
Tendo em conta que a atualização anual de impostos incidirá gradualmente sobre bases superiores, é de supor que os aumentos até venham a ser superiores ao que se verificariam se a base de incidência fosse a de 2023.
De acordo com as contas do próprio Executivo, cerca de 3 milhões de veículos da “Categoria A” serão afetados por estes aumentos.
Modelos como VW Golf V 1.9 TDI/2.0 TDI/2.0i; BMW 318i/ 320d; VW Passat 1.9 TDI/2.0 TDI; Opel Astra 1.8i/2.0i/1.9 CDTI que têm atualmente um IUC abaixo de 50 euros irão passar a ser taxados com 224,98€ (fruto da soma 127,35€ + 97,63€), no espaço de oito anos.
Metade dos ligeiros de passageiros que pagam IUC serão os visados por estes aumentos.
Com esta medida desvanece-se também um argumento que algumas pessoas, deitando contas à vida, esgrimiam quando optavam por um carro usado pré-reforma do IA/ISV-IUC (até 30 de junho de 2007) em vez de um veículo posterior à entrada em vigor do ISV-IUC (1 de julho de 2007): o terem um IUC menor. O mesmo modelo com data de matrícula de 30 de junho de 2007 ou de 1 de julho de 2007, pagava um valor diferente. Isso vai acabar.
Motociclos atingidos
Para além dos automóveis, também os motociclos (“Categoria E”) serão vítimas desta alteração fiscal. E pelas mesmas razões: os motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos matriculados desde 1992 sofrem um agravamento de IUC por via da inclusão da componente de emissões de CO2 no seu cálculo.
Nos motociclos, os aumentos são, em termos de valores absolutos menores do que nos automóveis, pois também as taxas são historicamente mais baixas.
A tabela que em 2023 calculava o IUC dos motociclos era esta aqui:
As novas tabelas previstas para 2024 para os motociclos são estas:
Escalão de Cilindrada | Taxas (em euros) | Escalão de CO2 | Taxas (em euros) | |||
Posterior a 1992 | (em gramas por quilómetro) | Posterior a 1992 | ||||
NEDC | WLTP | |||||
De 120 até 250 | 6,19 | Até 40 | Até 47 | 10 | ||
Mais de 250 até 350 | 8,76 | 41 até 100 | 48 até 117 | 20 | ||
Mais de 350 até 500 | 21,18 | Mais de 100 | Mais de 117 | 30 | ||
Mais de 500 até 750 | 63,62 | |||||
Mais de 750 | 138,15 |
Quando não seja possível apurar o nível de emissão de dióxido de carbono do motociclo é aplicado, em função da sua cilindrada, o escalão de CO2 constante da seguinte tabela:
Escalão de cilindrada (cc) | Escalão de CO2 |
De 120 até 250 | 1.º escalão |
Mais de 250 até 750 | 2.º escalão |
Mais de 750 | 3.º escalão |
Serão 500 mil os motociclos (veículos da “Categoria E”) atingidos pelos estilhados deste aumento do IUC.
Para um motociclo de 125 cc, cilindrada bastante popular até porque quem tem carta de condução “B” pode conduzir estes veículos, irá passar a pagar 16,19€, quando pagava aqui 6,19 euros. O valor absoluto não é muito, é certo, mas não deixa de ser um agravamento de 161%.
As razões para este aumento sobre os veículos mais velhos
No ano de 2022, foi liquidado IUC a cerca de 6 milhões de veículos ligeiros de passageiros. Deste universo, aproximadamente metade são veículos com matrícula anterior a 1 de julho de 2007. Esse é o número dos veículos que será afetado com estes agravamentos. O gráfico seguinte mostra a distribuição dos veículos ligeiros de passageiros por ano de matrícula:
Apesar do número de veículos estar uniformemente distribuído entre as duas categorias, esta distribuição uniforme não se verifica quando se analisam os dados da liquidação e distribuição de receita entre as mesmas categorias. Diz o governo que “cerca de 80% do total da receita de IUC referente a estas categorias advém da categoria B e o restante da categoria A”, como se pode observar no gráfico abaixo (dados de 2022):
Ou seja, há praticamente tantos automóveis antigos como mais novos. Mas quem paga mais IUC são os mais recentes. E o Executivo entende que, do ponto de vista ambiental e da fiscalidade verde, isto é um contra senso que pretende agora corrigir.
O Executivo declara que há uma disparidade na distribuição de valores de IUC pago por veículo de cada uma destas categorias. Segundo o Ministério das Finanças, em média, um veículo da “Categoria B” paga cerca de quatro vezes mais (168,63 euros) do que um veículo pertencente à “Categoria A” (44,21 euros). Atendendo a que os da “Categoria A” são mais poluentes, o governo pretende penalizá-los.
Programa de abate relançado como alternativa
O objetivo desta medida é incentivar à renovação de um envelhecido parque automóvel (em 2022, a idade média dos veículos ligeiros em Portugal era de 13,4 anos), levando a que os portugueses optem por veículos menos poluentes. Para isso, será relançado o programa de abate de veículos em fim de vida.
Todavia, os termos em que está previsto ser concedida esta ajuda limitam as opções de compra de quem tem menos poder de compra que são as pessoas que habitualmente são donas de viaturas mais envelhecidas.
Embora não tenha sido anunciado, o valor do apoio deverá oscilar entre os 2800 e 3000 euros. A estimativa é que este programa leve 45 mil veículos para abate em 2024.
O dinheiro a atribuir pelo carro abatido tem forçosamente de se destinar para a aquisição de um veículo novo ou usado zero emissões (até quatro anos), de veículo novo a combustão interna com emissões reduzidas, de bicicletas de carga, ou tome a opção de depósito em Cartão da Mobilidade (para aquisição de serviços de transporte público e mobilidade partilhada).
E aqui, começam novos problemas: com 3000 euros, que veículos elétricos novos ou híbridos de baixas emissões (sobretudo os plug-in) se podem comprar? Nenhuns, é a resposta. E mesmo entendendo-se o incentivo como mero apoio, o valor pecuniário é escasso considerando o poder de compra atual (fustigado pela elevada taxa de inflação e dos créditos à habitação) e o PVP dos automóveis.
O elétrico novo mais barato à venda é o Dacia Spring (20.400€ na versão de passageiros e 20.510€ na versão Cargo) que, mesmo a uma reduzida velocidade tem uma autonomia limitada (a rolar a 80 km/h garante energia para se percorrer 183 km).
Os elétricos usados mais baratos (excluindo quadriciclos) não custam menos de 8500 euros, sendo que estamos a falar dos modelos de primeira geração do Renault Zoe (com oito anos) e do Nissan Leaf (com 10 anos), limitados por baterias de menores capacidades.
Se se escolher elétricos com quatro anos, então, não consegue comprar nada abaixo de 15 mil euros. E por esse preço, estamos a falar de modelos de cidade, como um Smart Fortwo Electric ou um Dacia Spring. Mais: se se pesquisar num site de anúncios por veículos elétricos usados com até quatro anos de idade, o automóvel mais barato, que não um Smart ou um Dacia, é um Nissan Leaf, por 18.500 euros.
“Aumento brutal”, denuncia ACP
O Automóvel Club de Portugal já reagiu: “Três milhões de veículos anteriores a 2007 vão sofrer um aumento brutal em sede de IUC a partir de 1 de janeiro de 2024. Apesar de mais uma manobra ilusória através de uma norma transitória, a verdade é que a medida já consta em Orçamento de Estado e será progressiva. Ou seja, esta reforma tem um limite de 25 euros por veículo em 2024, sendo progressivamente aumentado até que a taxa de IUC represente a totalidade da tributação relativa às novas tabelas, que juntam o CO2 emitido e o agravamento da componente cilindrada”.
“Acresce que estes veículos tiveram uma tributação mais elevada no momento da aquisição, através do antigo imposto automóvel (IA), e que após 1 de julho de 2007 a legislação foi alterada, passando essa carga fiscal do momento da aquisição para a sua vida útil. O IUC das viaturas anteriores a 1 de julho de 2007 manteve-se mais baixo precisamente para garantir equidade fiscal entre todos os contribuintes”, recorda o ACP.
Para o ACP, “esquecer esta premissa é lesiva dos direitos dos consumidores e traduz-se apenas num aumento de impostos sem justificação. Ou será apenas um ato de má-fé para o Estado reaver receita, já que foi obrigado pela União Europeia a devolver o que cobrou indevidamente com a dupla tributação nas viaturas usadas importadas?”, questiona.
Um dos aspetos que está a ser alvo de críticas tem a ver com o facto de as classes com menor capacidade financeira serem as mais afetadas com esta medida, porque, sob o pretexto da “fiscalidade verde”, o Executivo vai sobrecarregar os carros das classes baixa, média-baixa e média.
Carlos Barbosa, presidente do ACP, diz que, com esta decisão o governo demonstra incompreensão “para com as dificuldades dos portugueses”.
Para o ACP não há dúvidas: “O parque automóvel nacional tem cerca de 25% de viaturas com mais de 20 anos e 19,4% com mais de 15 anos. O Governo encontrou nestes 2,4 milhões de contribuintes mais uma fonte de esmifro fiscal com consequências avassaladoras para a economia”.
Petição em curso pede reversão da medida
Entretanto, já corre uma petição pública que denuncia esta proposta fiscal, uma vez que “a maioria dos proprietários de veículos registados antes de julho de 2007 pertence a grupos sociais economicamente mais vulneráveis, uma vez que, se tivessem condições financeiras mais favoráveis, poderiam trocar de veículo regularmente”, segundo se lê.
Este abaixo-assinado no final de sexta-feira passada tinha cerca de 31 mil assinaturas. Dois dias depois, a petição já estava nos 100 mil subscritores. Nesta segunda-feira, às 12h, já havia mais de 111 mil subscritores da petição.
Com a aprovação do OE 2024 garantida, em virtude da maioria absoluta do PS, resta perceber se o governo será sensível a esta matéria de modo a alterá-la quando o diploma for discutido em sede de especialidade.