Talvez influenciados pelos programas de ficção científica “Espaço 1999” e “Cosmos” de Carl Sagan, três jovens engenheiros da Universidade de Coimbra, que se conheceram quando estavam a fazer o doutoramento, decidiram desenvolver soluções para o sector espacial a partir de um laboratório de nicho, o então recém-criado Instituto Pedro Nunes (IPN), situado num país sem kow-how neste domínio.
A Critical Software nasceu na primeira onda de start-ups portuguesas, precisamente quando Gonçalo Quadros, João Carreira e Diamantino Costa foram contactados pelo Jet Propulsion Laboratory de Pasadena, na Califórnia, nos EUA, um centro tecnológico da agência espacial norte-americana NASA. A primeira reacção que tiveram ao saber da notícia:
“É uma brincadeira, alguém está a gozar connosco”. Só que não.
Os americanos queriam saber tudo sobre injecção de falhas em sistemas e quem intermediou o caso foi João Gabriel Silva, reitor da Universidade de Coimbra, que à data era o orientador de doutoramento. “Teve um papel fundamental, envolveu-se nas conversas técnicas para demonstrar a nossa competência”, recorda Gonçalo Quadros, co-fundador e presidente-executivo da Critical Software.
Foram 9 meses de conversas e exames, vencendo a concorrência de universidades norte-americanas. Há 20 anos não havia o ecossistema empreendedor português que se conhece hoje, mas os três jovens engenheiros foram para a frente: licenciaram o software Xception, criaram a própria empresa e abriram uma subsidiária em San José, nos EUA, para poderem trabalhar para a NASA.
“Ainda não se falava em ‘Empresa na Hora’ e conseguimos abrir a subsidiária nos EUA a partir de Coimbra, no IPN, por telefone e faxe”, recorda Gonçalo.
Portanto, continua, foi este “golpe de sorte” (chamado NASA), que tornou possível aquilo que há 20 anos, “era uma loucura”, pois não havia indústria espacial em Portugal, nem competências e tampouco Portugal pertencia à Agência Espacial Europeia (ESA).
Hoje, a Critical Software é uma referência mundial no desenvolvimento de soluções de software e serviços de engenharia de informação para o suporte de sistemas críticos, operando em vários sectores (espaço, telecomunicações, energia e utilities, ferroviário, automóvel, aeronáutica, saúde, serviços financeiros, soluções marítimas, defesa e segurança).
Muito esse feito deve-se a Gonçalo que, para o reitor da Universidade de Coimbra, “tem o calibre de um construtor de mundos.”
João Gabriel Silva não tem dúvidas de que o líder da tecnológica nacional “é um dos pioneiros mais importantes do empreendedorismo tecnológico em Portugal. Soube encontrar caminhos que ainda não tinham sido desbravados, constituindo-se como referência para muitos outros”.
A NASA e a ESA continuam a fazer parte da carteira de clientes da empresa. Tomando por exemplo o software Xception, além do Jet Propulsion Laboratory (NASA) e da ESA, também é utilizado pela JAXA, Parsytec GmbH e a Agência Espacial Chinesa. Em 2016, o volume de negócios da Critical Software ultrapassou os 28 milhões de euros.
O crescimento face ao ano anterior foi de quase 20% e os mercados que mais contribuíram para este desempenho foram o inglês e o alemão. Gonçalo realça que “todos os anos a facturação da empresa cresce, tal como a produtividade. E que o próximo ciclo de crescimento passa muito pelos mercados do Norte. Os do Sul estão em dificuldade”.
Gerar talento
A Critical Software é uma empresa global e 80% do que faz está lá fora (e não é só no espaço). Tomando os últimos três anos, verifica-se que o volume de negócios aumentou 54% muito à custa dos mercados do Reino Unido e da Alemanha. O negócio tem corrido tão bem que justificou a abertura de uma subsidiária em Munique, o alargamento dos centros de engenharia de Southampton e de Coimbra, assim como instalações novas no coração da cidade do Porto.
Gonçalo regozija-se ainda com o facto de os bons resultados assentarem não apenas nos sectores tradicionais (espaço, aeronáutica, defesa e transportes), como também num “aumento particularmente forte da nossa actividade em sectores como o da energia e o financeiro”.
“A história da Critical é feita de nãos, para se diferenciar. Teve muitos golpes de sorte e também alguns azares, que soube ultrapassar”, refere Gonçalo Quadros.
Ao longo dos últimos 19 anos, a Critical Software recebeu inúmeras propostas de interesse, mas disse sempre não. Porquê? “Muito dificilmente poderíamos ter feito o que fizemos com um investidor no barco, que nos diria: ‘Deixem-se lá de brincadeiras, nós queremos fazer crescer a Critical Software, gerar riqueza e ter um retorno interessante’”, responde Gonçalo. Logo nos primeiros anos de actividade, os três sócios-fundadores também recusaram o trabalho que lhes foi oferecido por uma multinacional – o contrato permitiria dobrar o volume de negócios -, uma vez que não queriam ser meros fornecedores de serviços.
Tanto num caso como no outro, sabiam que o “sim” implicaria a limitação do projecto. Portanto, para eles, sempre esteve mais do que claro que a Critical Software seria uma empresa capaz de desenvolver tecnologia, suportando-se nos serviços para gerar riqueza.
E se no início Gonçalo, João e Diamantino tinham a ideia romântica de provar que era possível desenvolver tecnologia em Portugal, a verdade é que o conseguiram mesmo tendo de remar contra a maré. Gonçalo lembra-se bem da altura em que toda a gente ao seu redor dizia para se focarem na área de injecção de falhas, onde seriam os melhores do mundo.
“Mas isso tornar-nos-ia arrogantes e a arrogância é a antecâmara do insucesso. O mundo é muito competitivo e está sempre a mudar e quando achamos que somos os maiores do mundo vamos deixar de fazer aquilo que é necessário para nos mantermos na crista da onda”, diz.
Depois de uma reunião interna, decidiram que não se iriam focar porque já tinham vendido o injector de falhas às mais importantes agências espaciais do mundo. A ideia de a Critical Software se tornar uma espécie de boutique tecnológica desagradava-lhes por completo. “O nosso modelo era atrair pessoas talentosas, promover esse talento, fazendo gerar ideias e indo atrás delas com determinação”, refere o engenheiro de 54 anos à FORBES.
Em virtude deste princípio, acabaram por nascer várias empresas de tecnologia a partir de spin-offs e spin-ins da Critical Software, nove ao todo, com muitos investidores pelo meio: Critical Links, Critical Materials, Critical Manufacturing, Retmarker, Oncaring, Coimbra Genomics, Verticalla, ItGrow e Watchful Software, sendo que esta última foi vendida recentemente à norte-americana Symantec.
Dança de cadeiras
Se Gonçalo, João e Diamantino eram exímios em software crítico, pouca ou nenhuma experiência tinham sobre gestão, clientes, mercados e questões financeiras. Há 20 anos, não havia sequer o ecossistema empreendedor de hoje, com incubadoras, programas de aceleração, apoios públicos às start-ups e business angels.
“Quando começámos, só tínhamos entusiasmo para oferecer”, recorda Gonçalo.
O primeiro emprego de Gonçalo foi na EdP – Energias de Portugal, em Coimbra. Depois foi para a Soporcel (hoje The Navigator), “uma escola de engenharia brutal para mim”, conta. Fez o doutoramento, e apesar de não ter ambições académicas, foi dar aulas para a Universidade de Aveiro e para a Universidade de Coimbra. Até que acabou por ser “empurrado” por João, que “era o mais empreendedor dos três” fundadores da Critical Software.
Começaram por fazer um plano de negócios, descarregando um template da extinta consultora Arthur Andersen, que utilizaram para se candidatarem a um concurso de ideias da Universidade de Coimbra e do qual saíram vitoriosos (o prémio era um ano de incubação na IPN-Incubadora do Instituto Pedro Nunes e da Universidade de Coimbra). De seguida, com o mesmo plano de negócios, acorreram à primeira edição do Concurso de Ideias da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE), pioneira em Portugal no lançamento do conceito de galardões de empreendedorismo. Ganharam o prémio e exposição pública.
Por esta mesma altura assinaram com o primeiro cliente, a NASA, licenciaram o Xception e não mais pararam de crescer. Hoje, no papel de presidente-executivo da Critical Software, Gonçalo diz que “um dia gostava de voltar a ser engenheiro”. Os prémios foram bons no arranque da empresa, mas não a tornou imune aos problemas (leia-se falta de dinheiro).
“O momento mais crítico foi quando não tínhamos dinheiro para pagar os salários, que aconteceu logo a seguir ao rebentar da bolha [tecnológica do final da década de 1990], nos três primeiros anos da empresa”, identifica Gonçalo.
Foram pedir dinheiro emprestado ao banco, que recusou porque o projecto tinha um risco elevado. E mesmo nessa altura não cederam à entrada de investidores. A solução veio das empresas com quem trabalhavam e que os conheciam, que anteciparam pagamentos. “A maneira como gerimos a exposição que tínhamos ao risco fez também parte do percurso que fizemos. Aumentou a nossa capacidade de resiliência”, explica Gonçalo.
Ao longo dos anos, Gonçalo e a sua equipa procuram fazer com que a empresa crescesse de forma sustentável. Gonçalo foi presidente-executivo da Critical Software durante muitos anos até que em 2012 passou a pasta a um quadro da empresa (“uma experiência que não correu bem”) e assumiu o cargo de presidente não-executivo (chairman). Nesse mesmo ano, Diamantino abandona o projecto e deixa de ser accionista da tecnológica portuguesa.
Em 2014, Gonçalo teve de regressar ao cargo de presidente-executivo para a empresa poder reforçar a liderança nos mercados internacionais e nos sectores onde actua. Mas, acima de tudo, diz, “quero olhar para a Critical Software e ver um projecto onde a ambição, a determinação, o gosto pelo desafio e por empreender seja uma manifestação colectiva. Nós, eu e o João, só conseguiremos provar que isso é verdade quando a empresa não depender dos seus fundadores.”
João enfatiza que Gonçalo cresceu como líder à medida que a empresa também cresceu. Fala de um líder excepcional, que sabe ouvir os outros e falar ao coração das pessoas. “Tem uma perspectiva aberta e justa sobre a empresa e as equipas”, diz. João e Gonçalo têm actualmente 80% do capital da tecnológica, estando o remanescente distribuído por pequenos accionistas, entre os quais colaboradores da empresa.
Os dois sócios, e melhores amigos, têm competências distintas, embora complementares. “Sou aquele que inicia as coisas e faz determinados saltos. O Gonçalo é a mente crítica que consegue transformar ideias de projectos em organizações sustentáveis”, refere João.
Conquistas além-fronteiras
A multinacional portuguesa de sistemas e software assegurou 40% do negócio nos mercados inglês e alemão, compensando o abrandamento registado em Moçambique, Angola e Brasil.
O Norte da Europa tem ganho cada vez mais relevância, e por isso mesmo a Critical abriu no início deste ano uma subsidiária em Munique, na Alemanha. Isto depois de no ano passado ter inaugurado um segundo escritório em Southampton, no Reino Unido, onde instalou um novo laboratório dedicado ao teste e certificação de smart devices.
“Hoje, o nosso nível de crescimento e de gerar riqueza está 99% nos mercados do Norte”, atira Gonçalo.
Contudo, no início da empresa, os três jovens engenheiros queriam tirar partido do triângulo da portugalidade: EUA, Brasil e África e levar competências e tecnologias para os países de língua portuguesa – assim como também fazia sentido tirar partido da proximidade com Espanha. Só mudaram de rumo, com destino ao Reino Unido, porque foram à boleia de um contrato de contrapartidas e então perceberam que só o mercado das tecnologias de informação da Grande Londres era maior do que a Espanha toda.
A subsidiária inglesa continua a crescer, aliás, “foi a que mais cresceu”, regozija-se o líder da Critical Software, que não deixa de se mostrar preocupado com o que possa acontecer caso o Reino Unido opte pela saída da União Europeia. “Com ou sem Brexit, o Reino Unido já é uma geografia muito importante para nós. O que espero é que haja inteligência para que não se complique a nossa capacidade para desenvolvermos projectos em conjunto”, responde.
O Reino Unido é um mercado “híper importante” para a tecnológica, por causa de projectos como o Smart Metering Implementation Programme (SMIP), que prevê a instalação 53 milhões de contadores inteligentes de gás e electricidade. A rede de smart-meters, onde a Critical Software está com a Data Communications Company, marcará a transição do Reino Unido para uma economia low-carbon. Ao nível da gestão, o Reino Unido também tem uma palavra a dar. A direcção de marketing da empresa está em terras de Sua Majestade, tal como a direcção de sistemas de energia e infra-estruturas inteligentes.
Outro mercado que tem dado frutos e onde a Critical Software quer acelerar o seu crescimento é o alemão.
“Há muito tempo que a Alemanha vê Portugal como um fornecedor de tecnologia sólido e confiável. Não precisamos de fazer nenhum tipo de esforço para trabalhar com empresas alemãs”, adianta Gonçalo.
Papel relevante também tem tido África, através das subsidiárias de Angola e Moçambique. Apesar de ter
registado um abrandamento, a tecnológica continua a envolver-se em vários projectos. Um deles tem o nome de JUMO – uma start-up nascida na África do Sul, que tem tido o apoio da empresa de Coimbra no desenvolvimento de uma plataforma de mobile-money.