Indecisa entre a música e a matemática, acabaram por ganhar os números, ficando as pautas para segundo plano. Marília Machados dos Santos admite hoje que podia ter conciliado as duas atividades, mas acabou por se deixar levar pela paixão pela matemática aplicada. Apesar de tudo, a música foi uma experiência muito proveitosa que lhe serviu de base na construção da sua vida profissional, pois gosta de afinar as suas equipas e orquestra-las para que todos toquem em sintonia. Qualidades muito necessárias na vida de uma gestora, que dá cartas num mundo que, apesar da maior abertura, continua a ser ainda muito masculino. Foi parar ao sector dos automóveis um pouco por acaso e foi fazendo o seu percurso nesta atividade, admitindo que hoje é uma área que a seduz, não se imaginando em outra. Atualmente, aos 50 anos, dirige os destinos da Volkswagen Siva SA, num grupo que, em Portugal, aposta nas lideranças femininas. Em 2022, o negócio que gere há dois anos, conseguiu dar a volta à pandemia e crescer duplicando a média do sector. Para este ano, espera um crescimento sustentado sobretudo em dois novos modelos de elétricos que chegarão, entretanto, ao mercado.
“Quando acabei o meu curso, queria comprar um Golf. Hoje as novas gerações querem ter uma viatura para se deslocar, querem ter um fornecedor de mobilidade”, afirma Marília Machado dos Santos.
Natural da Nazaré, viveu nessa zona toda a sua infância, mais concretamente na vila de Pataias, da qual tem muito boas memórias. “Lembro-me de brincar na rua, de andar de bicicleta, de participar em atividades coletivas com amigos e de tocar na banda filarmónica”, recorda. Foi na meninice que descobriu os prazeres da música, ao aprender a tocar saxofone, ritual que manteve cerca de 10 anos. “Quando chegou a hora de ir para a faculdade entrei na Conservatória, em Lisboa, e em Matemática Aplicada em Coimbra, e tive de decidir para qual delas seguia. Acabei por deixar a música, mas só mais tarde percebi que as podia ter conciliado”, afirma. A música corria na família, o avô já tocava, e Marília, filha única, desejava manter viva a tradição. Porém, a matemática, talvez por achar que seria mais fácil para si, acabou por ganhar peso. Explica que poderia ter mantido o saxofone apenas como hobbie, mas dedicada como é a tudo o que faz, isso não seria suficiente. “Há duas formas de aprender música, ou a pessoa tem muito ouvido ou tem muita capacidade de ler e decorar pautas. Eu pertenço a este último grupo. Para manter como hobbie teria mesmo de estudar, de decorar as pautas, teria de me aplicar”, afirma, acrescentando que está sempre a dizer ao filho, de 10 anos, que também toca música, que qualquer dia ainda formam uma banda.
“As mulheres têm uma capacidade de análise mais alargada e uma maior capacidade de gerir situações de conflito”, diz Marília Machado dos Santos.
Ao optar pelo curso de Matemática Aplicada ouvia várias vezes: “porque não economia ou engenharia? Sabes que vais ficar só pelo ensino?” À sua volta havia quem a alertasse que o curso pouco mais lhe serviria do que para dar aulas. Mas não foi isso que quis o destino. Esteve realmente um ano no ensino, mas foi uma experiência que não gostou. “Estava ainda a acabar o curso, faltava-me uma cadeira ou duas, e percebi que, para estar no ensino, é preciso apetência pessoal. Estive num colégio de freiras, num sistema com o qual não me identifico e decidi logo que não era o meu propósito de vida”. Porém, confessa que foi uma experiência que lhe deu disciplina e rigor. Ainda hoje, afirma, que a dar aulas também se aprende: aprende-se a ouvir e a gerir equipas. “Já mudei algumas vezes de empresa e sempre que tenho uma equipa nova penso: já fui professora, por isso vou ser capaz de pôr estas pessoas alinhadas no mesmo barco, porque ser professora é muito mais difícil”, revela.
Automóveis surgem por acaso
Foi há duas décadas que iniciou o seu percurso no mundo dos automóveis, uma área ainda muito masculina nessa altura, mas que surgiu por acaso. Quando entrou, como estagiária, no grupo Citroen, foi apenas pelo fascínio dos números, já que foi para a área das análises quantitativas e previsões estatísticas, no departamento de marketing. Não sentiu então grande dificuldade por ser mulher: entrou num grupo, talvez de 15 pessoas, entre homens e mulheres. Aqui dentro cresceu profissionalmente e passou para a área de gestão de produto, algo que diz ser apaixonante, onde se constrói algo, definem-se versões, posicionam-se mercados, analisam-se inquéritos ao cliente. Foi aqui, afirma, que se sentiu verdadeiramente fascinada pela área do sector automóvel.
“Estava ainda a acabar o curso, faltava-me uma cadeira ou duas, e percebi que, para estar no ensino, é preciso apetência pessoal”, diz.
“Este início de vida profissional foi uma escola, seja em termos de empresa seja em termos de colegas. Existia então um grupo de pessoas da mesma idade que se apoiavam conjuntamente e todos evoluímos. Muitos, senão a maioria, nos automóveis com carreiras sólidas e de sucesso. Foram tempos em que partilhámos boas memórias, com colegas que se tornaram amigos para a vida”, relembra. Pelo meio, ainda teve uma passagem num outro grupo, a Fiat, onde esteve igualmente ligada ao marketing, e consolidou a sua experiência neste mercado. “A minha passagem para a Fiat foi importante, foi uma mudança de cultura que representou uma alargar de experiência que mais tarde se tornou bastante relevante na minha evolução profissional. Foi uma época de lançamentos de produtos icónicos da marca”, recorda.
Após sete anos num grupo de origem italiana, regressou à PSA (Peugeot, Citroen), como diretora de marketing da Citroen e DS, convite que considerou ser um enorme desafio. “Quando regressei ao Grupo PSA, este já tinha alterado a estratégia que tinha conhecido anos antes. Na altura, por mais disruptivo que parecesse ser, foi algo que abracei com a certeza que poderia fazer parte desta nova estratégia e de fazer crescer a marca que, no passado, me tinha aberto a porta”, explica Marília Machado dos Santos.
Depois de algum tempo na sua zona de conforto, em 2018, desafia-se a si própria e oferece-se para uma vaga de diretora comercial, que, entretanto, surgira nesta marca. “Estava há muito anos no marketing e, por isso, falei então com o administrador e mostrei-me disponível”, diz. Como seria a primeira mulher a ocupar essa função, ainda lhe perguntaram algumas vezes se estava preparada para isso. “Mas porquê, por ser mulher?”, recorda. Assumiu então essa função, e foi aí, junto da rede de concessionários que sentiu alguma resistência. “A dada altura, quando assumi a direção comercial era a primeira vez que uma mulher era diretora comercial, e então existe sempre algum estigma, pois havia o fator surpresa. Porém, isto não era relevante, pois temos de ter sempre a convicção que essa situação não nos vai abalar”, explica.
Acredita que não há uma liderança feminina, ou pelo menos não há uma receita que se aplique a todas, mas “as mulheres têm isso sim, uma capacidade de análise mais alargada e uma maior capacidade de gerir situações de conflito”. Além disso, prepararam-se melhor, confessa, e sobretudo no mundo automóvel, isso é fundamental. “Pelo menos eu tento sempre preparar-me muito bem para os desafios e acho que isso tem a ver com o facto de ser mulher, por se ser mais perfeccionista”, admite. O convite para ser diretora-geral da Volkswagen, na SIVA, surgiu com muito orgulho e satisfação. Em plena pandemia, Marília Machado dos Santos assumiu a direção de uma empresa numa das áreas mais afetadas pela crise e o desafio foi, e continua, a ser grande, mas sente-se preparada para dar continuidade ao seu trabalho. Se ambiciona ir mais longe, talvez, mas para já, apenas admite estar focada no crescimento da marca, e é isso que espera para os próximos tempos.
Acredita que não há uma liderança feminina, mas “as mulheres têm uma capacidade de análise mais alargada e uma maior capacidade de gerir situações de conflito”.
Curiosamente, a liderança da SIVA, importadora nacional das marcas do grupo Volkswagen em Portugal, e que pertence ao universo Porsche Holding, é toda ela muito feminina, com uma administradora, Viktoria Kaufmann, à cabeça, e várias mulheres em posição de diretoras. “Penso que a percentagem de mulheres nas direções já esteja acima dos 40%”, diz Marília Machado dos Santos. Refere que, quando chegou já estava implementada uma nova cultura na empresa, que, aliás, os novos desafios do setor exigem. Ou seja, a forma como hoje se adquire um automóvel é muito diferente do que era há duas décadas. “O funil de compra é muito diferente do que era quando comecei. Hoje a grande motivação, de uma forma geral, tem a ver com a preocupações ambientais, pois o cliente preocupa-se com emissões de C02, com a sustentabilidade dos materiais com que os automóveis são construídos”, explica. Há 20 e tal anos, quando começou, o cliente só se preocupavam com a potência dos veículos e com o seu design. Atualmente, as novas gerações dão mais importância às experiências e a forma como se adquire uma viatura é completamente diferente. “Quando acabei o meu curso, o meu objetivo era comprar um Golf. Hoje os mais novos querem ter uma viatura para se deslocar, querem ter um fornecedor de mobilidade, e por isso estamos a trabalhar para fornecer mobilidade, já não estamos tão agarrados à aquisição de uma viatura, como antes”, explica.
Negócio corre de feição
O negócio, apesar de todos os constrangimentos sentidos nestes últimos anos, nomeadamente com a falta de componentes, que atrasou as entregas de viaturas, não lhe correu mal. Afirma que, em 2022, as vendas da Volkswagen em Portugal alcançaram as 8.500 unidades, o que representou um crescimento de 13% face ao volume do ano anterior, e também a rede de concessionários incrementou em 6,6%. Este crescimento foi possível porque foram conseguidas mais de mil viaturas extra nos últimos três meses do ano, conseguindo assim chagar aos clientes que estavam em espera. O modelo mais vendido é o T-Roc, fabricado em Portugal, na Autoeuropa, mas o que trará crescimento nos próximos anos será a gama de elétricos, com dois importantes lançamentos em 2023, da família ID, o novo ID.3 e o novo ID.7. “Na Volkswagen, o caminho está bem definido e traçado com o Way to Zero, toda a estratégia de transformação do grupo, uma estratégia clara de sustentabilidade que visa a neutralidade carbónica até 2050, com o lançamento de novos produtos elétricos”, revela. O negócio está em mudança, mas isso não a assusta, pelo contrário, motiva-a. “Desafio-me diariamente a evoluir no caminho de desenvolver capacidade de inovar com pensamento crítico e estruturado”, explica.
Ir ao Japão, pela tecnologia e desenvolvimento daquele país, é a sua viagem de sonho, que espera poder concretizar em breve com a família. O filho, de 10 anos, também quer muito conhecer este país.
É sobretudo a pensar na tecnologia e no desenvolvimento deste setor de atividade que a viagem de sonho, que espera conseguir fazer em breve, será ao Japão. “Estive recentemente no Vietnam – ainda não conhecia a Ásia – e fiquei ainda com mais vontade de ir ao Japão, pelo desenvolvimento, pela tecnologia, como uma forma de projetar o futuro. E depois tenho uma criança lá em casa sempre a pedir para irmos conhecer o país, isto já por influência familiar”, graceja. Além de, viajar, gosta de passar tempo com a família, a fazer as atividades normais, como fins-de semana fora de Lisboa, ida a exposições para crianças, conhecer novos restaurante e novos locais de lazer. “São também estas atividades que me permitem reduzir o ritmo do dia a dia”, diz.