Há cenas míticas de motos que apaixonaram a geração nascida com a Revolução, seja na distopia de “Mad Max”, na tensão de “Exterminador Implacável” ou na corrida de Maverick contra um caça em “Top Gun”.
Os mais velhos fazem parte da legião de “A Grande Fuga” com Steve McQueen e “Easy Rider”, no tempo em que as motos eram para homens de barba rija.
Mas há formas menos bélicas e machistas de desfrutar de uma moto, dispensando-se corridas contra aviões a jacto como a que Tom Cruise está prestes a recuperar numa Kawasaki Ninja H2 com 231 cv, na sequela do seu filme de 1986, ou cenas de pugilato motorizado como a que o mesmo actor protagonizou em 2000 na “Missão Impossível 2”.
Entre passear pela Europa em direcção ao Cabo Norte – convém começar já, ou então aguardar pelo degelo no pedaço de estrada mais a Norte na Europa –, atravessar Marrocos em direcção ao deserto ou ficar-se por Portugal pela EN 2, há experiências que nenhum simulador ou realidade tridimensional possibilitará.
BMW e Yamaha são, em conjunto com a Honda, referências nas motos de aventura. Marca bem mais discreta nas vendas do que este trio líder de mercado, mas com uma história mais longínqua, a Moto Guzzi, que procura acelerar nas vendas com uma versão “retro-aventura”, a V85 TT, que na filosofia nos remete a outros tempos da clássica BMW R80 G/S e da dupla Teneré/Super Teneré com que a Yamaha criou uma referência multicampeã no Rali Paris-Dakar.
Para esta fuga elaborámos um caderno de encargos: apta para viajar a dois, transmissão por cardã (menos uma preocupação perante pó e terra nas longas tiradas de condução, ao contrário da típica corrente de transmissão das motos, que exige manutenção constante), versatilidade de utilização, cruise control para aliviar o esforço do condutor, electrónica com ABS e modos de condução à medida de cada percurso e, para assegurar autonomia, depósito de gasolina acima dos 20 litros.
Nascer do sol no Erg Chebbi
Após atravessar o Mediterrâneo para Sul, transpõem-se as montanhas do Atlas em direcção a um dos mais célebres quadros de dunas do Sahara, Erg Chebbi.
Para baixo há as manchas multicoloridas de Fez; no regresso, um dos cenários da “Guerra dos Tronos”, Ait-Ben-Haddou, a “Hollywood” marroquina perto de Ouarzazate listada no património da UNESCO, antes de alcançar o cosmopolitismo e os souks de Casablanca.
Para quem se imagine a desbravar as dunas no deserto que une o Egipto ao Atlântico, onde, entalada no norte do Níger e no oeste do Chade está a zona chamada Teneré, há nomes que a história obriga a visitar.
A Yamaha Teneré, inspirada precisamente na zona homónima do Sahara e na etapa do Paris-Dakar com aquele nome, é talvez a proposta mais abrangente da marca. Está entre o radicalismo de uma moto de enduro e o conforto de uma “super-trail”. Mas se quisermos pensar numa fuga a dois, cabe à Super Teneré o lugar de topo.
Mais pesada que a Teneré e nada apta a escalar as dunas do Erg Chebbi (faça-se ao caminho a pé ou de camelo entre o acampamento nas grandes tendas berberes e o pico das dunas), é, contudo, nela que confiamos para uma viagem de milhares de quilómetros por pisos entre o asfalto perfeito de auto-estradas e das curvas do Atlas, e o árido pedregoso.
A suspensão electrónica adaptável entre o conforto (com afinação electrónica para um ou dois viajantes) e a dureza desportiva (uma quase exigência em velocidades proibidas), a ciclística aligeirada pelo baixo centro de gravidade e um motor a roçar a perfeição logo que não o deixemos adormecer sob as 2500 rpm, fazem-nos por vezes esquecer do peso desta moto.
O facto de podermos ajustar o banco para ganhar superfície de contacto dos pés com o chão não é alheio à facilidade de condução pressentida.
O cruise control e os punhos aquecidos adicionam conforto e a protecção inferior tranquiliza nos caminhos de pedra saliente – o que se estende às duas outras motos, a BMW como opcional.
A parte mais negativa é, na óptica do condutor, a caixa seca e ruidosa quando se une condução prolongada e clima quente.
No capítulo da segurança, a Super Teneré não sai impune às críticas de instabilidade a velocidades proibitivas apenas quando falamos de valores, efectivamente, proibitivos, sendo que o motor raçudo – basta dizer que há automóveis familiares com menos capacidade e potência – prometia deixar-se embalar para lá dos 200 km/h.
Em ritmo necessariamente mais brando, a sensação em zonas sinuosas – quando, durante a noite, mais agradecemos as luzes auxiliares, de série nesta versão mais equipada, disfarçando a baixa intensidade da dupla óptica dianteira – é de que estamos mais perto da agilidade prometida pela nova Yamaha Teneré 700 do que faria pressupor este conjunto. O caso será necessariamente distinto à chegada ao Erg Chebbi.
A cidade e as serras
Da rotunda à entrada da cidade em Chaves até à cidade mais a sul em Portugal corre a “Route 66” portuguesa. Pela EN2, interrompida a espaços pela modernidade que trouxe troços onde se perdem algumas das vistas rente ao Mondego antes de atingir Penacova e a passagem pelos passadiços do Penedo Furado em Vila de Rei, continua a haver muito Portugal escondido.
Para desvendar estes segredos do passado a escolha recai para uma moto com história, a dois anos do centenário, e um fado de falta de investimento durante anos – metáfora da própria EN2 –, até que em 2004 entrou no grupo Piaggio, à pendura da Aprilia.
De estilo retro, a V85 TT é uma espécie de Moto Guzzi sem carenagens – qualidades para condução fora de estrada – e motor de 850 cc e 80 cv, à medida para desfrutar do ar das montanhas e das planícies, e por fim da brisa marítima no términus da EN2.
Longe de uma agilidade sublime, tem algo em que a equipa de designers liderada por Mirko Zocco – um dos autores da Vespa 946 – salva os engenheiros da marca pertença ao grupo Piaggio: o estilo vintage e, na moto testada, versão Enduro, a conjugação feliz de cores.
Tecnologicamente, esta moto tem ABS e controlo de tracção, este disponível em modos mais ou menos permissivos. Afinal, se escolhermos um estradão de terra na zona de Montargil poderemos querer aproveitar a boa disponibilidade do motor para ajudar a traseira a acertar a moto entre curvas.
À frente do condutor está um painel TFT a cores com informação bem legível da velocidade, do regime do motor e da velocidade engrenada – característica comum ao trio de motos aqui mencionado.
Ainda mais à frente, a estrada fica bem visível durante a noite com os faróis dianteiros de LED, nos quais podemos comutar as convencionais luzes da dupla óptica por uma luz diurna transversal com o formato do logótipo da marca italiana.
Para ajudar a chegar ao destino é possível integrar a informação do telemóvel neste ecrã, através do qual há indicações sobre direcções a tomar e se podem manipular algumas das suas funções.
Onde a Moto Guzzi se vê pouco à vontade é no pára-arranca da cidade, onde a refrigeração a ar nos deixa as pernas num modo sauna, em consonância com o alerta de temperatura que recebemos da V85 TT numa conjugação de trânsito intenso e impossibilidade de “furar” entre os automóveis.
O peso da tradição
Posição elevada para condutor e pendura, boa protecção aerodinâmica e punhos aquecidos para enfrentar o clima nórdico. Kit de malas com regulação da capacidade e apoio adequado para as costas do passageiro em longas tiradas, motor com força que sobeja, suspensão autonivelante mediante o peso e dispositivo multimédia ligado ao ecrã TFT… tudo requisitos que levam a BMW R 1250 GS para outro patamar para aqueles viajantes de longa distância.
A topo de gama das motos de aventura mereceu uma evolução do motor que se traduz por mais cilindrada e potência e mais e “melhor” binário – a disponibilidade para recuperar velocidade surge a um regime mais baixo e com maior valor, 143 Nm/6250 rpm.
Com estilo similar à Yamaha, a BMW encarna outra filosofia, mesmo que pensemos na versão Adventure (características viradas também para fora de estrada), desde logo por se sentir mais peso.
Nada que incomode, até porque muitas das vezes nem se sente, ao rolar estrada fora, mas potencialmente crítico nas manobras a baixa velocidade. A R 1250 GS é ligeiramente mais leve que a Super Teneré, mas intimida mais.
Talvez pelo porte à frente do condutor, talvez pelo centro de gravidade elevado, algumas manobras implicam excessivo esforço físico, quando se considera o peso.
Pelo contrário, em estrada é senhora de uma postura inatacável, sem instabilidade nem imposição da força do vento sobre os passageiros, mesmo quando a velocidade dispara para um múltiplo de 100.
Pensando nos mais de 10 mil km necessários para ir da raia portuguesa ao marco do ponto setentrional da Europa, no final da mítica E69 norueguesa, esta BMW é “a” escolha.
Os quase 10 mil euros de extras, ao incluir botão de emergência, as três malas, sistema de navegação, kit de conforto para o passageiro e protecções de motor, tornam-se desejáveis numa grande viagem, sendo, deste trio, a única que dispensa chave para iniciarmos a marcha.
Checklist do motociclista
Allan Karl, ex-responsável de operações de uma empresa de marketing digital, passou três anos a viajar pelo mundo sozinho numa BMW F650GS Dakar 2005 de 650cc. Allan visitou 35 países em cinco continentes e percorreu cerca de 100 mil quilómetros. Pelo caminho teve de lidar com vários contratempos: partiu uma perna na Bolívia enquanto conduzia a mais de 4 mil metros de altitude no meio da Cordilheira dos Andes e até chegou a “bater de frente”com rebeldes colombianos que lhe apontaram uma arma. Histórias não lhe faltam. Eis algumas dicas que Allan deixa no seu livro “Forks” para todos os aventureiros motard não deixarem de viajar em segurança.
Arrumação
Depois de juntar tudo que irá precisar na viagem, reduza para metade.
“Não necessita de carregar tantas peças de roupa. Ao longo da viagem descobrirá que alguém o vai receber de boa vontade e que até poderá lavar roupa, ou mesmo encontrar uma lavandaria ao longo da estrada.”
Equipamento
Descubra quais as peças sobressalentes da moto que são raras e leve apenas essas consigo.
“Por exemplo, eu viajei numa BMW – o filtro de combustível é muito caro e difícil de encontrar. Optei por levar um desses em vez de um filtro de óleo, que é fácil de encontrar em qualquer lado.”
Condução
Planeie viajar apenas de dia. Evite ao máximo fazer-se à estrada durante a noite.
“Na Europa e nos EUA somos cautelosos em relação aos perigos na estrada, mas na Síria ou no Sudão, pouco ligam a isso. Há sempre animais que podem estar a vaguear numa estrada pouco iluminada à noite.”
Além disso, inclua paragens obrigatórias no seu plano de viagem, não apenas para sua segurança mas, acima de tudo, para tirar partido da viagem.
“Pare, tire uma fotografia ou apenas passeie pelas vilas e aldeias. Tente ver pessoas do lado de lá da estrada.”