“Ainda subo as escadas todos os dias, mas já não as subo a correr, como quando tinha 30 anos. Agora subo degrau a degrau. Sei que já não tenho as mesmas capacidades de quando tinha 30 ou 40 anos”. Fortunato Frederico, 82 anos, e um dos empresários selfmade man mais acarinhados do país, reconhece que já não tem a mesma energia de antes para conduzir os destinos do Grupo Kyaia, dono da reconhecida marca de calçado Fly London, e que, obviamente, vai chegar o dia em que terá de passar o testemunho. E para que isso aconteça de forma natural e sem percalços está a preparar o seu sucessor: Tiago Brandão Rodrigues, 48 anos, ex-ministro da Educação, foi o gestor que assumiu recentemente o cargo de diretor-geral do grupo sediado em Guimarães, mantendo-se, para já, o fundador como CEO. O executivo, que não tem ainda experiência na área do calçado, está a ser “preparado” para, nos próximos cinco anos, poder ficar então sozinho à frente de todo o negócio.
“Como não tenho pessoas na família a quem passar o negócio, tenho de separar a gestão da família. A família poderá não estar à frente da empresa, mas continua a ser a dona e a escolher os quadros especializados e mais bem preparados para fazer grupo Kyaia crescer”, explica, em entrevista à Forbes Portugal, Fortunato Frederico. E acrescenta: “O meu sonho é deixar as coisas de forma que o grupo, independentemente de a família ser a dona, tenha gente e quadros preparados para conduzir o negócio”. Esta é aliás, umas das regras das boas práticas na sucessão dos negócios familiares, para que a empresa não desapareça, como, em tempos, explicou à Forbes, António Nogueira da Costa, especialista em sucessão nas empresas familiares. “Não é por ser filho ou neto, que vai ser um bom gestor ou líder da empresa. É preciso que as pessoas percebem que posso ter uma empresa familiar e não ser o líder da mesma”, disse então o especialista. E acrescentou “O importante mesmo é que a empresa seja bem gerida, e acrescente valor, seja por um profissional exterior à família ou seja da própria. Espera-se que haja uma continuidade, e é até de salutar que haja várias gerações a conviver nos conselhos de administração, para que a passagem de testemunho seja feita da melhor forma”, refere o especialista.

Fortunato Frederico sabe bem que isso é fundamental para manter vivo o negócio que fundou na década de 80, admitindo que “não tenho pessoas na família para tomar conta do grupo”. É publico que o gestor perdeu, há alguns anos, o seu filho de 18 anos, Fred Frederico, num acidente de automóvel que também deixou marcas psicológicas profundas na filha, Sara. Foi a pensar neles que criou a fundação Oliveira Frederico, estabelecida em 2014, com o objetivo de apoiar as áreas da educação, e do sucesso escolar, e da ciência, sobretudo na investigação que incida sobre a doença bipolar. Adianta à Forbes que, de futuro, será a própria fundação a herdeira do seu legado, ainda que não queira adiantar pormenores sobre o processo.
“Como não tenho pessoas na família a quem passar o negócio, tenho de separar a gestão da família”, diz Fortunato Frederico, fundador e CEO do Grupo Kyaia.
Fortunato Frederico conheceu Tiago Brandão Rodrigues – ainda que ambos tivessem ligações a Paredes de Coura, local onde a Kyaia tem instalada as suas unidades industriais – numa conferência em Londres, na Universidade de Cambridge, em 2013. Tiago Brandão Rodrigues licenciado e com um doutoramento em Bioquímica era então investigador no Cancer Research UK da Universidade de Cambridge. “Na altura a Associação de Estudantes e Investigadores do Reino Unido convidou o Sr. Fortunato para um encontro anual, em Cambridge, e foi lá que nos conhecemos”, explica o novo gestor do Grupo Kyaia. E acrescenta que já admirava o empreendedor, mesmo sem o conhecer pessoalmente, “pela sua visão, pela sua paixão, legado, não só nesta companhia, mas também na indústria do calçado, sendo uma verdadeira inspiração. O Senhor Fortunato é um verdadeiro símbolo da liderança, de resistência, de resiliência em momentos difíceis, na crise económica do início do milénio”.
Com uma carreira diversificada, pois além de investigador, foi durante seis anos ministro da Educação em Portugal – o ministro que esteve mais tempo na função desde a revolução do 25 de abril – e presidente de uma comissão parlamentar, confessa que sempre gostou da ideia de “ter muitas vidas numa só vida”. Explica que não quer adiantar muito sobre a estratégia futura do grupo, por ser muito recente, mas adianta que “Para mim é uma enorme responsabilidade, mas acima de tudo um privilégio, fazer parte desta jornada, deste caminho, e poder ajudar a escrever os novos capítulos da história da Kyaia”. Tiago Brandão Rodrigues acumula esta função também com a de Professor Catedrático na Universidade de Aveiro, e com a de presidente do Conselho de Ética do Comité Olímpico de Portugal, mas “isto não implica menor compromisso com esta empreitada”, esclarece o responsável.
“Para mim é uma enorme responsabilidade, mas acima de tudo um privilégio, fazer parte desta jornada, deste caminho, e poder ajudar a escrever os novos capítulos da história da Kyaia”, refere Tiago Brandão Rodrigues, diretor-geral da Kyaia.
Há alguns anos, Fortunato Frederico tinha manifestado publicamente a ideia de que a sucessão talvez passasse para o seu sócio e braço direito, Amílcar Monteiro, com quem trabalhava desde que este tinha 15 anos e a quem ofereceu sociedade quando fundou a Kyaia. Porém, quis o destino que Amílcar Monteiro, apesar de manter a sua quota de 15%, tenha saído da empresa, há cerca de quatro anos, para lançar a sua própria marca de calçado. “Foi um momento difícil para mim, não estava à espera. Foi mais um desgosto na minha vida”, desabafa.
Um percurso trilhado com pulso forte
O conceituado empresário do calçado, que foi capa da Forbes Portugal em setembro de 2017, tem uma história de vida muito recheada e sobejamente conhecida. Perdeu o pai tinha apenas 15 dias de vida e a sua mãe, sem conseguir tomar conta dos filhos, acaba por entregá-lo numa creche, tendo sido criado por uma freira. Aos 14 anos deixou o seminário e foi trabalhar no setor do calçado, na empresa Campeão Português, setor que nunca mais deixou. Sonhava desde então tornar-se um empresário do calçado. Conta à Forbes que há uns anos descobriu no sótão de uma irmã mais velha uns documentos do falecido pai, e que, embora já sabendo que era sapateiro, ficou agradado por ver que nos seus documentos aparecia como “fabricante de calçado. “Salazar era muito fino, para ele não havia pobres. Daí que o meu pai aparecesse como fabricante de calçado, o que era bonito”. E, mesmo sem saber, acabou por continuar a atividade do seu progenitor. Aliás, depois de encontrar esses documentos, criou até uma nova marca de calçado, a Fred & Frederico para assim homenagear o filho e o seu pai.
O Grupo Kyaia surgiu em 1984, para produzir marcas subcontratadas, mas começou por ter algumas dificuldades em criar uma marca própria.
Quando aos 20 e poucos anos foi mobilizado, como militar, para Angola, ficou localizado na pequena localidade de Kyaia, na qual começou a planear o seu futuro no mundo da indústria do calçado, e que veio posteriormente a dar nome ao grupo. Regressado a Portugal trabalhou em várias indústrias que o fizeram despertar para a importância da inovação tecnológica, até finalmente chegar a oportunidade de ter a sua própria fábrica. O Grupo Kyaia surgiu em 1984, para produzir marcas subcontratadas, mas começou por ter algumas dificuldades em criar uma marca própria. Porém, 10 anos depois a empresa descolou, quando, numa feira na Alemanha, adquiriu, por desentendimento dos dois sócios ingleses, uma marca que viria a lançar a empresa no mercado internacional. Tratava-se da Fly London, marca premium de calçado confortável, que tinha o slogan de “Dont’ walk, fly” e um logotipo de uma mosca, lhe despertou logo o interesse. Adquiriu a marca logo ali naquela feira em Dusseldorf, e começou a exportar primeiro para o Reino Unido, tendo alcançado um sucesso quase imediato. Só cinco anos depois a marca seria vendida em Portugal.
Os anos seguintes foram de grande crescimento. A empresa chegou a ser o maior fabricante de calçado nacional, ao alcançar uma faturação superior a 60 milhões de euros. Com presença em 60 países, exportava cerca de 95% – chegou a vender para fora mais de 81 milhões de sapatos num ano. Fortunato Frederico esteve 18 anos como presidente da APPICAPS, a indústria do setor, e tornou “sexy” e reconhecido mundialmente o calçado nacional. Porém, o início do novo milénio não favoreceu o seu negócio, como nos conta. Em 2005 adquiriu a marca Foreva, de calçado de uma gama mais baixa, que estava na falência, e que chegou a ter uma rede de 80 lojas, algumas também nos Estados Unidos e na Inglaterra. E não foi uma boa aposta a longo prazo, confessa. “Das 80 lojas tivemos que reduzir para 12”, refere, explicando que foi um problema fechar as lojas dos centros comerciais, que tinham garantias bancárias que podiam acionar. Esta área de negócio contribuía então com cerca de 20 milhões para o volume de negócios do grupo.
Outro projeto que desanimou Fortunato Frederico foi a aposta que fez num marketplace para a venda de calçado, a plataforma Overcube. “Investimos três milhões de euros neste projeto, mas não teve o sucesso esperado”, refere o empresário.
Em 2014, a faturação ainda estava a crescer, apesar da Troika, mas seguiu-se um período de grandes transformações sociais e as vendas caíram. “Os pequenos retalhistas começaram a fechar, os filhos já estavam transformados em doutores, engenheiros e não queriam as sapatarias dos pais. E aqueles homens, bons comerciantes, nossos clientes, começaram a fechar algumas sapatarias pequenas. E nós começamos a perder quota de mercado”, explica o empresário.
Ao longo dos tempos, para diversificar o negócio do calçado, o Grupo Kyaia tem apostado em outras marcas: a Softinos, que surgiu em 2005, é um conceito de calçado extremamente confortável, em materiais macios; a Portuguesas, marca que resultou de uma parceria com o Grupo Amorim, para produzir flip flops de cortiça; e mais recentemente a Fred & Frederico, para calçado prático, para trabalhar no campo ou fazer caminhadas. Outro projeto que desanimou Fortunato Frederico foi a aposta que fez num marketplace para a venda de calçado, a plataforma Overcube. “Investimos três milhões de euros neste projeto, mas não teve o sucesso esperado. Tínhamos cerca de 30 engenheiros, mas o mercado vinha buscá-los constantemente, e nós não podíamos acompanhar esses ordenados”, conta. A plataforma continua a funcionar, agora apenas com seis pessoas, mas contribui pouco para a faturação atual do grupo que ronda atualmente pouco mais de 25 milhões de euros atualmente.
Rumo ao futuro: diversificar o core do grupo
Com sangue novo no negócio, a estratégia passa agora por reformular as atividades do grupo – além da área industrial, tem ainda a Kyaia Imobiliária, a Kyaia Soluções Informáticas e, no turismo, a Quinta Eira do Sol – e tentar recuperar os tempos áureos. Segundo Fortunato Frederico a aposta agora é reforçar toda a área comercial e não tanto a área de produção. A empresa tem quatro unidades produtivas instaladas em Paredes de Coura, onde está o grosso da sua atividade, no corte, costura e componentes, como solas e palmilhas. Ali, Frederico Fortunato quer instalar um centro de dia para os pais dos seus funcionários: “é um projeto que está em andamento e que vai abrir se não nos criarem mais burocracias”.
“Acredito que a criatividade, a experiência, a estratégia são fatores essenciais na indústria do calçado, mas também no grupo”, refere Tiago Brandão Rodrigues.
Fortunato Frederico refere que está a repensar todo o projeto industrial e apostar mais na área imobiliária. “Vamos fechar o ano com a construção de 50 e poucos apartamentos em Guimarães, no centro histórico da cidade”. E acrescenta: “Temos 30 mil metros quadrados de terrenos em torno da Kyaia e que vai ser todo para construir habitação”. Questionado sobre o investimento previsto, apenas revela que caso avance com o negócio que está a tentar agora, investirá entre quatro e cinco milhões de euros nesta primeira fase.
Sobre o seu papel nesta transformação do grupo Tiago Brandão Rodrigues refere que “este é um caminho de ambição, com foco, e um renovado sentido de compromisso e entrega e, acima de tudo, de vontade de fazer acontecer”. Explica ainda que “acredito que a criatividade, a experiência, a estratégia são fatores essenciais na indústria do calçado, mas também no grupo. Sabemos bem que navegamos tempos globais bastante complexos. A indústria do calçado, como muitas outras, enfrenta desafios fortíssimos”.
(Texto originalmente publicado na edição impressa de junho/julho de 2025)