Diz que é um homem austero porque nunca viveu acima das suas possibilidades, e apesar de filiado no Partido Socialista (PS), afirma nunca ter tido ambições políticas.
Tem um gosto pela resolução de problemas e acredita no dever cívico, um princípio que o levou a desempenhar inúmeros cargos em várias instituições públicas e privadas ao longo da vida.
Aos 64 anos, Luís Campos e Cunha faz o que sempre quis fazer. É professor catedrático de Economia na Universidade Nova SBE e, nos tempos livres, dedica-se à sua outra grande paixão: as artes plásticas.
Em entrevista à FORBES, o professor falou do passado, dos escassos quatro meses em que foi ministro das Finanças do Governo de José Sócrates, da Troika e do medíocre programa de ajustamento que levou o país à pior crise económica de sempre, mas também do bom momento económico que se vive e dos desafios que se avizinham.
Está surpreendido com o actual desempenho da economia?
Não. Sempre achei que era possível, embora dependesse muito do comportamento do Governo. O que me surpreendeu foi o desempenho da actual maioria. Era importante que os objectivos orçamentais fossem cumpridos e que o país seguisse as boas práticas europeias. No início tive dúvidas, mas agora nem eu nem os empresários têm.
No início no mandato, a estratégia do Governo era estimular o consumo, o que levantou algumas dúvidas entre os economistas. A si também?
A saída de uma recessão deve fazer-se primeiro pelo aumento das exportações. Depois, num segundo passo, pelo aumento do investimento privado, e só depois pelo consumo. Houve uma altura em que o Governo teve um discurso em que punha o consumo à frente, o que era um erro. O consumo acabou por subir, mas não tanto como se temia e, entretanto, surgiu o investimento, e ainda bem.
Mas era fundamental aliviar alguma da austeridade que vinha do período da Troika, não?
Houve um conjunto de medidas que tinham sido introduzidas, dada a situação dramática que estávamos a viver em 2012 e 2013. A discussão era saber qual o ritmo de retirada dessas medidas temporárias sobre os funcionários públicos e os pensionistas. Julgo que o Governo conseguiu gerir bem essa situação, gerou credibilidade e estamos a viver o que eu penso ser um dos poucos exemplos mundiais de consolidação orçamental expansionista.
A recuperação da credibilidade é parte do actual sucesso…
Sim, o país conseguiu ganhar credibilidade e os consumidores e os investidores ganharam confiança para consumir e investir mais, o que acabou por equilibrar os efeitos contraccionistas na parte orçamental. Um dia far-se-á um estudo mais sério sobre o que está a acontecer.
E foi isso que atraiu o investimento estrangeiro?
E o nacional também, mas sem dúvida que há que salientar o bom comportamento das exportações que continuam a bater recordes.
O actual crescimento económico é sustentável?
Quando estamos a sair de uma crise, boa parte do crescimento deve-se ao restabelecimento do que ficou parado. Mas a crise foi muito longa, o que significa que muito do capital que esteve parado enferrujou, digamos assim, depreciou-se, e havia muito pouco para recuperar. É evidente, no entanto, que há uma parte que é a recuperação do ciclo, mas há outra que é uma parte mais estrutural. É preciso termos em conta vários factores.
Como por exemplo?
Portugal é um país estruturalmente muito estável. Temos a mesma língua, as mesmas fronteiras há muitos anos e uma cultura homogénea. Não temos problemas como a Catalunha, o norte de Itália. Até quando temos dificuldade em formar governo somos mais sólidos e estáveis do que a maioria dos países. Somos também um país seguro, o que atrai turismo e residentes estrangeiros, e isso é muito bom para a economia portuguesa. Por último, e este é um aspecto elogioso para nós, é que as pessoas já se esqueceram que António Guterres tinha a paixão pela educação.
Estamos a colher os frutos do investimento feito por ele na educação?
Houve uma grande revolução no ensino há 20 anos que está agora a produzir os primeiros resultados. Hoje temos engenheiros e gestores com uma qualidade ao nível dos formados em qualquer universidade europeia. A geração que chegou ao ensino há 20 anos e que está agora a chegar ao mercado de trabalho é a mais e melhor educada de sempre, e isto tem impacto no crescimento, no bem-estar e na gestão das empresas. Portanto, eu julgo que a situação económica que estamos a viver é o longo prazo das políticas de António Guterres. E isto faz com que boa parte deste crescimento tenha uma componente estrutural muito relevante.
Mas temos uma conjuntura económica muito favorável…
De facto, há uma sincronização muito grande da economia mundial. Os EUA, a Rússia, Angola, os países da Zona Euro, todos estão a crescer. Nem todos com números fulgurantes, mas estão todos a crescer e de forma consistente e isso favorece-nos, sem dúvida.
O turismo tem sido fundamental. Será estruturante?
A parte do turismo, julgo que veio para ficar. As taxas de crescimento não serão de dois dígitos como foram no passado, mas vamos continuar a ser um país de turismo, até porque os problemas dos países que os turistas abandonaram para vir para Portugal manter-se-ão, infelizmente para eles, durante muitos anos. Temos também uma política monetária historicamente benéfica….
No futuro, a política monetária vai, sem dúvida, ser menos expansionista que a actual, com juros particularmente baixos e com o “quantitative easing” a que temos assistido, mas ninguém está à espera que nos próximos três ou quatro anos venham a acontecer subidas abruptas da taxa de juro na Zona Euro e, portanto, vamos ter durante vários anos taxas de juro relativamente baixas.
Mas haverá certamente riscos.
É evidente que sim. Do lado internacional, há Donald Trump, que é uma incógnita e que lançou agora o risco de haver uma guerra comercial que pode ser uma coisa gravíssima para o mundo e à qual a Europa não pode fazer outra coisa se não ripostar. É uma guerra que seria um desastre para a economia mundial, inclusive para os EUA. Espero que haja algum bom senso.
E riscos internos?
Também há. Há uma rigidificação orçamental, ou seja, muitas das despesas que vêm aumentando são difíceis de cortar, daí a quebra do investimento público. É a variável onde se pode cortar mais facilmente. Pelo que oiço e leio, há um subfinanciamento do Sistema Nacional de Saúde (SNS) e é provável que isto venha a ter consequências orçamentais no futuro, pois é necessário que o SNS continue a prestar serviços de qualidade, o que implica mais dinheiro, mas também melhor gestão.
O SNS é mal gerido?
Não de uma forma genérica, mas alguns hospitais, sim. É certamente possível gerir melhor os hospitais e o SNS no geral.
Reformas essenciais
Está-se constantemente a falar de reformas. Afinal quais são as que o país precisa?
É necessário reformar a Justiça, o SNS, a regulação de alguns mercados, incluindo o mercado laboral. Depois há a mãe de todas as reformas, que todos os governos nos últimos 20 anos têm no programa, mas que é sempre a primeira a cair, que é a reforma da lei eleitoral.
Porquê a “mãe” de todas as reformas?
Porque enquanto não se reformar a lei eleitoral não se conseguem atrair os melhores para a política. É preciso atrair os melhores para a causa pública e isso não se consegue com a actual lei. É crucial que se possa votar em pessoas e não em partidos com listas fechadas.
A reformas não se fazem porquê? Por falta de recursos?
Não. Em alguns casos, talvez, mas noutros é sobretudo por falta de vontade política, como é o caso da reforma da lei eleitoral. É falta de vontade dos políticos que estão na Assembleia da República (AR). Nem todos, claro. Conheço lá muitos que são bons, mas estão lá alguns que não estão à altura da causa pública.
Falou na reforma da lei laboral, mas o Governo anterior já fez alterações que os partidos mais à esquerda pretendem reverter. É perigoso voltar atrás?
Sim, podemos ter problemas sérios se se voltar atrás na legislação laboral. Houve alguma flexibilização da legislação laboral durante o Governo de Passos Coelho. Era necessário. Nós tínhamos uma rigidez na legislação laboral que era incompreensível e que prejudicava Portugal. Um mercado de trabalho flexível pode dar-nos a flexibilidade que perdemos na parte monetária.
A troika obrigou o país a enormes sacrifícios. Foi um mal necessário?
A partir de finais de 2010, início de 2011, e com a política orçamental irresponsável que vinha a ser seguida, não havia hipótese de escapar ao auxílio externo. É evidente que o programa da Troika, assinado por todos os partidos, era tecnicamente medíocre. Não estou a dizer que a austeridade e a contenção orçamental eram evitáveis. Não eram. Agora, para os custos económicos e sociais que tivemos, podíamos ter tido melhores resultados. Devíamos ter tido uma outra composição de políticas.
Mas agora temos uma economia melhor?
Sim, eu julgo que sim, até em termos sociais. O desemprego, que é a variável mais importante, chegou a atingir mais de 17%, está neste momento abaixo da média europeia, o que é fantástico. Aliás, o comportamento positivo do desemprego deve-se em parte à alteração das leis laborais realizadas nos últimos anos.
Há alguma lição que devemos tirar da crise?
Abusou-se do argumento “até agora tudo bem”. Se eu for a 200 km/h num carro para o Porto com os pneus carecas, é possível que não tenha um desastre, mas aumenta muito a probabilidade de isso acontecer, logo, é importante estarmos preparados em caso de chuva ou de uma travagem brusca.
O país não estava preparado para uma crise e as políticas orçamentais em 2009 e 2010 foram desastrosas. Com défices orçamentais de 9% e 10%, obviamente que estávamos a pisar o risco com os dois pés, e acabámos punidos.
Mas há quem diga que foram ordens vindas de Bruxelas…
A Europa pediu para haver défices orçamentais para combater a crise, mas também disse na medida das capacidades de cada país e, nessa altura, Portugal já não tinha as possibilidades de fazer o que fez. Não me recordo de qualquer país ter défices de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) durante dois anos seguidos. Foi errado estimular a economia com défices dessa grandeza do ponto de vista técnico, e do ponto de vista financeiro, foi suicidário.
É por isso que não vê com grande preocupação o actual baixo nível de investimento público?
Nos últimos 25 anos, houve uma revolução ao nível das infra-estruturas públicas. Portugal tem hoje excelentes equipamentos que necessitam apenas de manutenção. A única área onde provavelmente é necessário investimento público é na ferrovia.
Um TGV?
Não! Precisamos de uma ligação com o centro da Europa, em bitola europeia, para mercadorias. Porque é um transporte mais barato e porque é necessário ligar os portos ao centro da Europa. Precisamos de uma linha de Braga a Faro e, repito, não é um TGV, basta um alfa pendular capaz de fazer o percurso a 200km/h. O actual não consegue porque a linha não aguenta.
E noutras áreas, não é necessário mais investimento?
Serão necessários alguns hospitais. De resto, o grosso serão investimentos de substituição, de manutenção, nas auto-estradas, pontes, nos equipamentos já existentes. E também no património histórico.
Há condições para diminuir a dívida
Um dos problemas que ainda atormenta o país é o endividamento. Como vê o caminho que está a ser traçado?
É urgente que a dívida pública caia. A solução para isso passa por termos rapidamente excedentes orçamentais. Já temos um saldo orçamental primário superavitário, daí ter sido possível reduzir o endividamento público no final do ano, mas é necessário continuar o processo.
Há condições para o fazer?
Sim. Temos condições económicas e financeiras para acelerar essa trajectória. Há que aproveitar o actual nível historicamente baixo da taxa de juro para que o serviço de dívida (juros) não tenha um peso tão relevante no orçamento quando a taxa de juro voltar a aumentar.
Nos anos 2020 vão vencer-se obrigações num valor anual superior a 10 mil milhões de euros. Isto não é problemático?
A dívida pública vai-se refinanciando. É bom alterar a maturidade, a estrutura dos prazos da dívida. Se sabemos que nos próximos anos vamos ter de pagar muita dívida, endividamo-nos hoje para estarmos preparados no momento da liquidação. É isso que o Instituto de Gestão do Crédito Público tem vindo a fazer com grande sucesso.
Em tempos falou-se na necessidade de uma reestruturação. Concorda?
Não. Quando se falou disso, em 2012, eu achei quase criminoso. Aquele abaixo-assinado não podia ter vindo em pior altura. Disse-o então e reafirmo-o hoje. Passos Coelho fez bem em nem sequer discutir o assunto.
Seria mau para a credibilidade do país…
A reestruturação da dívida, no sentido que foi usado em 2012, era um tiro no pé. A última vez que Portugal cessou pagamentos de dívida foi em 1894, se a memória não me falha. O acordo final foi já negociado por António de Oliveira Salazar em meados dos anos 1920, e as últimas prestações foram pagas já neste século.
Uma reestruturação da dívida deixa um rabo de palha gigantesco. Portugal é o país europeu que menos reestruturações fez. Seria deitar fora uma credibilidade que foi construída ao longo de mais de um século.
Não é imperativo…
Não, de forma alguma. Repare-se no exemplo da Bélgica, que no início da década de 1990 chegou a ter serviços de dívida de 10% do PIB, mas nunca falou em reestruturação da dívida e agora tem uma dívida em função do PIB mais baixa do que a nossa. Porquê? Através de rigor e disciplina que lhe permitiu ter superávites orçamentais. É por aí que temos de ir, e temos condições para o fazer.
E o endividamento das empresas. Como se resolve?
A actual lei fiscal torna racional para as empresas não terem capitais próprios e a trabalharem com capitais alheios. Ora aí está outra reforma que se deve fazer e que não tem custos para o erário público.
Mas o actual Governo tem criado mecanismos e incentivos para as empresas transformarem dívida em capital.
Temos um problema com origem na lei fiscal, e em vez de a alterarmos andamos a fazer programas de recapitalização das empresas que têm uma burocracia gigantesca. Mude-se a lei.
Se é assim tão simples, porque não se muda?
Não sei. Eu estive lá quatro meses. E dei posse a duas comissões de reestruturação dos impostos indirectos e directos, onde estava a reestruturação do Imposto sobre o Rendimento Colectivo (IRC) e onde se previa a definição de incentivos a dar às empresas para trabalharem com capitais próprios.
A nossa taxa de IRC é compatível com a praticada entre os nossos parceiros europeus?
Era vantajoso haver algum ajustamento, alguma queda do IRC, e até a vejo como necessária. Nos últimos anos houve um grande desvio em relação à tributação do lucro real.
Há muitas isenções a deturpar a taxa. Há um emaranhado complicado para as empresas gerirem o seu parâmetro fiscal. A lei devia ser mais simples, sem excepções e isenções, para podermos ter uma taxa mais reduzida. Este Governo parou uma reforma do IRC que vinha do anterior…
Foi o maior erro deste Governo. Já o disse várias vezes. Renegar o acordo que tinha feito com o Partido Social Democrata (PSD) no sentido de reduzir paulatinamente o IRC. Isto, porque hoje se se fizer um acordo entre o PS e o PSD para o futuro, esse acordo estará, à partida, ferido de credibilidade.
E em relação ao endividamento do sistema financeiro, os bancos portugueses estão atrasados em relação aos congéneres europeus na resolução do problema?
Os bancos estão hoje melhor do que estavam há dois anos atrás. Neste momento temos um sistema bancário mais sólido do que há dois anos atrás, mas, mais uma vez, tudo o que tem a ver com endividamento demora muito tempo. É um problema complexo que ainda vai demorar algum tempo a resolver.