A corretora de criptomoedas FTX, que chegou a valer cerca de US$ 32 biliões, e se desvaneceu, levando a que ficasse sob a alçada judicial e o seu CEO, Sam Bankman-Fried (conhecido pelas iniciais SBF), perdesse não apenas o estatuto de bilionário, como, inclusive, caísse em desgraça perante os seus pares (pela gestão duvidosa) fez levantar dúvidas sobre os negócios dos criptoativos.
Em entrevista à Forbes, Hugo Volz Oliveira, Secretário do Instituto New Economy, associação sem fins lucrativos que agrega líderes de indústria, profissionais e cidadãos interessados em promover a participação de Portugal na nova economia digital, refere que o que se passou com a FTX não pode confundir-se com o resto do universo cripto.
No entanto, o efeito de contágio é um risco que está no horizonte, assume Hugo Volz Oliveira.
Qual o motivo que levou a esta falência?
Hugo Volz Oliveira (HVO): Apesar da incerteza ainda associada ao colapso da FTX, é seguro afirmar que este deveu-se a um crime grave: o uso ilícito dos fundos dos clientes, que de acordo com os termos da bolsa estariam segregados e não eram aplicados.
Ora, o fundador e CEO da FTX, Sam Bankman-Fried, era também dono da Alameda Research, um fundo de investimento e market maker, i.e. uma empresa que negocia instrumentos financeiros de forma a prestar liquidez aos mercados. Devido a más práticas de gestão de risco, à ausência de controlo de gestão e a, alegadamente, falhas na contabilidade, a Alameda sofreu perdas avultadas este ano, que até há pouco tempo eram desconhecidas, e foi chamada a pagar empréstimos de biliões que tinha contraído – e não tinha liquidez para o fazer.
Aqui, parece que o CEO aproveitou-se para colmatar as falhas da Alameda com os fundos dos clientes da FTX, aproveitando o facto de a FTX estar sedeada entre a Antígua e Barbados e as Bahamas, com pouco ou quase nenhum controlo regulatório. Este abuso dos fundos é um crime claro que será devidamente punido. Mais, não tem a ver com a cripto economia, mas com a existência de offshores que conseguem impactar utilizadores do resto do mundo. Entretanto, dada a nacionalidade estado-unidense da equipa de gestão, estão já várias agências norte-americanas, mas não só, a investigar esta falência.
“O colapso da FTX deveu-se a um crime grave”
As pessoas que tinham investido perderam irremediavelmente os seus ativos?
HVO: Isto vai depender do decorrer do processo de insolvência. O administrador de insolvência nomeado foi o mesmo que geriu a recuperação dos fundos da falência da Enron, pelo que terá boa experiência. Mas ainda não foi anunciado uma percentagem.
Investigações independentes já avançaram números radicalmente diferentes, como o The Block a indicar que se espera que se consiga apenas recuperar 5% dos fundos e o fundador da FTX a indicar numa entrevista, possivelmente de forma iludida, que seria capaz de reaver 70% dos fundos ou mais. Em todo o caso, estes processos são sempre muito longos, podendo demorar com facilidade uma década até à conclusão e à devolução do dinheiro.
Por exemplo, a falência da Mt. Gox, que ocorreu em 2014, ainda não está resolvida. O caso do Bernie Madoff, cujo esquema ponzi foi exposto em 2009, demorou 9 anos para concluir, sendo que aí os advogados fizeram um trabalho incrível e conseguiram resgatar 75% de fundos que se julgavam perdidos.
O que vai acontecer agora?
HVO: Do lado dos clientes e credores, temos o processo de insolvência a decorrer em Delaware. Entretanto, até a Casa Branca já anunciou que está a monitorizar o assunto, e várias agências regulatórias norte-americanas e de outros países, como o Reino Unido e, de forma não irónica, as Bahamas, estão a investigar o caso e os crimes associados.
Consideram que o que sucedeu poderá ocorrer noutras empresas deste setor?
HVO: Um caso destes só poderá acontecer noutras empresas do setor a operar a partir de offshores ou outras jurisdições com pouca regulação e supervisão, o que é cada vez mais raro dado o trabalho de diálogo entre os reguladores e a indústria e a vontade do sector em aproximar-se da economia real. Pelo menos na Europa, este trabalho já resultou no MiCA – um regulamento concluído agora em outubro e que entrará em vigor no próximo ano, sendo aplicável a partir de 2024 – que, em teoria, teria sido capaz de proteger os clientes europeus da bolsa.
Importa também notar que a FTX tinha vários investidores de alto gabarito sedeados nos EUA e até uma subsidiária local só para servir este mercado. Infelizmente, isso não protegeu os clientes americanos, pois essa empresa também foi arrastada para o processo de insolvência. Pelo que a mensagem principal é que é crucial que o mundo ocidental regule este setor de uma forma competitiva, pois caso contrário irá sempre haver algumas empresas que fogem para esses paraísos e que conseguem atrair clientes para a sua plataforma, pois de facto vão oferecer um melhor serviço – até ao provável momento da implosão.
“Um caso destes só poderá acontecer noutras empresas do setor a operar a partir de offshores ou outras jurisdições com pouca regulação e supervisão, o que é cada vez mais raro”
Quais as repercussões para o setor?
HVO: O impacto é substancial. Por um lado, temos o risco de contágio, que já se está a sentir com a falência de outra plataforma, a BlockFi, e rumores de insolvência de outras bolsas, como a Genesis e a Crypto.com. Este contágio também passa pelo fecho de vários fundos de investimento e empresas do espaço que tinham grande parte ou a totalidade das suas tesourarias na FTX – outro exemplo de más práticas de gestão de risco comuns no sector – como a Galois Capital (que tinha advertido a indústria em março para os riscos de Terra/Luna, um projecto que implodiu em Maio), Ikigai, e até a Multicoin Capital, que apesar de não fazer parte do grupo que vai fechar, ainda perdeu $800 milhões com a situação – 10% do seu fundo.
Por outro lado, temos o risco de um ataque regulatório, em que o medo e a incerteza causados por este desastre de gestão e governo organizacional são transpostos para a cripto economia em geral. Aqui, é provável que regulamentos e leis sejam aprovados à pressa para dar a ilusão de que os governos têm o desaire sob controlo, impactando negativamente as outras áreas da indústria que não têm este tipo de riscos. Se tal acontecer, estaremos a ir contra a tendência regulatória de gestão com base nos riscos associados que tem dominado a legislação atual sobre o sector, e que, de forma geral, é bem recebida pela indústria.
“Temos o risco de um ataque regulatório, em que o medo e a incerteza causados por este desastre de gestão e governo organizacional são transpostos para a cripto economia em geral”
Este facto vem dar razão a todos aqueles que desconfiam do sistema de criptoativos?
Não vem, mas quem desconfia teimosamente de algo tende a gostar de encontrar desculpas, por mais esfarrapadas que sejam, para justificar as suas posições em vez de analisar objetivamente o que se passa no mundo.
Novamente, importa notar que o desmoronamento do império de Sam Bankman-Fried não é culpa da criptoeconomia. Seria análogo a afirmar que a queda do Lehman Brothers é culpa do imobiliário e das pessoas que não se qualificavam para um empréstimo hipotecário normal, quando foi culpa da falta de regulação sobre os instrumentos financeiros derivados associados ao mercado do subprime. Aqui, a culpa é da falta de mecanismos de controlo de gestão e de regulação em mercados offshore que permitiam ter empresas multibilionárias lá sediadas a servir um mercado global, praticamente sem qualquer supervisão.
“O desmoronamento do império de Sam Bankman-Fried não é culpa da criptoeconomia”