“Estamos num tempo da humanidade em que parece que o futuro não existe”, diz Valter Hugo Mãe

A intervenção de Valter Hugo Mãe, convidado da Forbes Portugal para o Forbes Annual Summit 2025, decorreu perante o auditório da sede da EDP, em Lisboa. O autor, um dos escritores de língua portuguesa mais celebrados da atualidade, apresentou-se num estilo característico seu, com humor, referindo que chegara “meio desconfigurado” para passar a explicar: “Peço…
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No Forbes Annual Summit 2025, Valter Hugo Mãe, escritor e Prémio Literário José Saramago (2007), apresentou a “carta ao futuro” que a Forbes Portugal lhe pediu e deixou um aviso desconcertante sobre o nosso tempo: “Estamos num tempo da humanidade em que parece que o futuro não existe". E explicou porquê.
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A intervenção de Valter Hugo Mãe, convidado da Forbes Portugal para o Forbes Annual Summit 2025, decorreu perante o auditório da sede da EDP, em Lisboa. O autor, um dos escritores de língua portuguesa mais celebrados da atualidade, apresentou-se num estilo característico seu, com humor, referindo que chegara “meio desconfigurado” para passar a explicar: “Peço desculpas de estar meio desconfigurado, porque eu vinha com um casaco lindíssimo, mas rebentei aqui uma borbulha, ensanguentei o casaco, e parecia que tinha sido mordido pela Taylor Swift, que ela também morde. Eu sei que estavam à espera que fosse o Drácula, mas eu acho que cada um deve morrer às mãos de quem quer. E eu prefiro morrer às mãos da Taylor Swift!” [risos na plateia].

Dirigindo-se para o palco, o autor continuou a brincar: “Vou-me sentar, embora aqui controlando um bocadinho a barriga. [mais risos entre a assistência] E eu quero começar por dar os parabéns à Forbes, pelos seus 10 anos. Muito obrigado por me convidarem para aqui vir dizer umas palavras.”

A seguir, assumiu aquilo que achou ser a estranheza de um confronto entre o seu universo artístico e o ambiente empresarial da Forbes. “Fiquei assim meio atrapalhado, porque eu sei que o vosso mundo, o mundo da Forbes, é um mundo de coisas concretas, de projetos que precisam de dar certo, ou que se espera que deem certo – muitas das vezes não acontece -, mas que, enfim, é um mundo que tenta lidar com uma perspetiva de viabilidade imediata ou da exatidão extrema possível, mas o meu mundo é o mundo das ideias, é um mundo profundamente entregue à imaginação, e tem muito mais a ver com perspetivas filosóficas e talvez com a conceção daquilo que queremos da humanidade e que humanidade é que queremos, do que propriamente com resultados que sejam muito imediatos”.

E acrescentou: “Sinto que existo para resultados que eu já não vou ver. Se alguma coisa do que eu faço vier a funcionar, será para os vindouros.”

O escritor vencedor em 2007 do Prémio Literário José Saramago com o livro “O Remorso de Baltazar Serapião”, revelou que tinha preparado um texto, mas que desistira dele à última hora. “Eu escrevi um texto e depois achei que devia fazer greve, por isso não vou ler o texto”.

“Escrever ao futuro é sempre adotar a posição de um pobre que escreve a um rico. Quem vier depois sabe aquilo que nós não somos capazes de saber.”

Começou então a sua “carta ao futuro”, assumindo desde logo que a tarefa é, por natureza, impossível. “Aquilo que eu queria dizer, como me compete, é escrever uma carta ao futuro, que é coisa tremenda, é uma ideia que só loucos têm. O último louco que me interessou muito e que o fez foi o Virgílio Ferreira, que escreveu exatamente um livro chamado ‘Carta ao Futuro’ e que de alguma forma falha completamente.” Por isso, afirma, “escrever ao futuro é sempre adotar uma posição de um pobre que escreve a um rico. Quem fica pelo passado fica numa dimensão pobre daquilo que há para saber, daquilo que se conhece, porque quem vier depois pode não ter nada, mas sabe aquilo que nós não somos capazes de saber. E por isso qualquer perspetiva ou auscultação que possamos fazer é sempre uma hipótese mais ou menos delirante e que tem mais que ver com uma certa profissão de fé do que propriamente uma ciência.”

E desenvolveu a ideia de que prever o futuro não é permitido à humanidade: “Auscultar o futuro não é permitido à humanidade. Nós vamos por tentativas e por uma certa fé.”

Valter Hugo Mãe apresentou então a sua leitura de uma transformação histórica profunda: a passagem da natureza ao antropoceno, e deste ao que chama “dataceno”: “Estamos num ponto muito estranho para se perspetivar o futuro porque estamos num tempo da humanidade em que parece que o futuro não existe. E por isso debate-se muito ao nível das ideias, no espectro da filosofia, o cancelamento do futuro. A humanidade vem de um tempo em que a natureza estava ao centro da existência; depois cria-se um tempo ao qual se chamamos antropoceno em que a humanidade ocupa o centro dos interesses do planeta; e hoje arriscamos a entrar num tempo em que concebemos que talvez não devamos mais chamar antropoceno e talvez possamos chamar de dataceno.”

“Estamos a entrar num tempo em que a tecnologia… ocupará o centro do planeta. O planeta existirá não para a humanidade, mas para uma invenção que a humanidade trouxe e que a transcende.”

Sobre o dataceno, Valter Hugo Mãe entende que “estamos a entrar num tempo em que a tecnologia – e aquilo que é do foro de uma certa virtualidade e que compete à máquina e não tanto à humanidade – é aquilo que se espera que ocupe o centro do planeta, ou seja, o planeta passaria a existir não para a humanidade, mas para uma invenção que a humanidade trouxe e que a transcende e que a supera e que eventualmente no futuro a poderá escravizar.”

“O que é que isto cria?”, pergunta o autor, para responder de seguida: “Cria exatamente essa sensação de estarmos no fim de alguma coisa, por isso cria uma impressão de estarmos a assistir à morte de tudo”, apontando que não é casual o facto de nas livrarias se encontrarem títulos nos escaparates que falam da morte ou do fim.

O escritor, que é editado pela Porto Editora, colocou depois a questão da sobrevivência da ideia de humanidade: “Eu não acredito que nós, como bicho, como espécie animal, acabemos. O que se coloca a hipótese de saber é se acabamos como ideologia humana, como este bicho, cuja biologia, cuja animalidade, lhe deu a oportunidade de construir uma ideia, que é a ideia da humanidade. E eu isso já não sei exatamente se vai existir”, disse com ceticismo.

A interrogação “é se acabamos com este bicho, cuja biologia e animalidade, lhe deu a oportunidade de construir uma ideia, que é a ideia da humanidade”.

Valter interrogou, então, quem será o recetor da carta que ele escreverá ao futuro: “É aí que radica a dificuldade de sabermos se quando nos dirigimos ao futuro, se dirigimos uma carta à humanidade ou se dirigimos uma carta a partir da humanidade para uma coisa que vai ter outro nome. Porque talvez nós sejamos o fim da humanidade.”

Depois, colocou a questão central da sua reflexão: “A dúvida é saber se acabamos como ideologia humana, como este bicho cuja biologia e animalidade lhe deu a oportunidade de construir uma ideia, que é a ideia da humanidade.”

A intervenção avançou para a crítica à “desclassificação do ser humano” num mundo moldado pela tecnologia e pelo modo passivo como lidamos com a avalanche tecnológica: “Talvez nós sejamos a última hipótese de nos considerarmos ainda dentro deste paradigma que o antropoceno define; nascemos bichos, mas temos a possibilidade de morrer gente. A dúvida para o futuro é se vamos passar por uma fase em que somos desclassificados, passando de cidadãos para consumidores passivos que já não passam de uma certa dimensão lúdica da existência. Se vocês repararem, muitos de nós, ou melhor, todos nós, estamos a ser convidados pelas tecnologias para passarmos o dia numa dimensão meramente lúdica, em que as coisas nos são fornecidas em instantes de segundos, de uma forma compulsiva, e vão aniquilando a nossa vontade, aniquilam inclusive a nossa força para criarmos alguma coisa.”

“Nascemos bichos, mas temos a possibilidade de morrer gente. A dúvida para o futuro é se vamos passar por uma fase em que somos desclassificados”

E seguiu, num tom provocatório: “Já não precisamos de criar nada. O sistema sugere que podemos atingir uma espécie de nirvana só por estarmos como recetores passivos”. A brincar disse ainda: “Um dia destes, a IA vai ser tão boa quanto um romance do Valter Hugo Mãe, coisa que eu duvido que um computador consiga lá chegar, porque os computadores não sangram e não têm o meu charme.”

“Talvez nós sejamos o fim da humanidade”

O escritor, cujo último romance foi “Deus na Escuridão”, comentou a facilidade que as ferramentas tecnológicas oferecem, mas também o preço desse alívio: “Há uma ferramenta poderosíssima, há cada vez mais ferramentas… se eu pudesse chegar a casa e a Alexa ou a Siri me pudesse efetivamente arrumar a casa e fritar o ovo que eu quero comer, eu ficaria maravilhado com a Siri e a Alexa. Mas a verdade é que cada competência que vamos entregando a uma máquina, ou cada competência que alienamos das mãos da humanidade para as mãos da máquina, é uma competência que vamos perdendo e que paulatinamente vai desaparecer das mãos da humanidade.”

“Este é o século dos imbecis, em que estamos euforicamente a caminhar para deixarmos de saber fazer as coisas, porque temos cada vez mais ferramentas que fazem as coisas por nós”

O autor deu exemplos para ilustrar essa perda de conhecimento prático: “Vai começar a aparecer gente que nem sequer sabe que um ovo viria de uma galinha ou que tem uma casca ou que se faz assim ou que se faz assado… Qualquer dia nem há ovos e a gente compra um pó”.

E por isso, declarou, “eu tenho chamado que este é o século dos imbecis, é um século em que nós estamos euforicamente a caminhar para deixarmos de saber fazer as coisas, porque temos cada vez mais ferramentas que façam as coisas por nós. Quanto mais habilidades formos perdendo, mais imbecis deveremos de ser”, insistiu na ideia.

Para Valter Hugo Mãe, este fenómeno vai acarretar um fosso social: “As elites vão sempre arranjar maneira de escapar, as elites vão sempre saber que têm de educar os seus filhos, mandá-los para boas escolas, dar-lhes uma biblioteca, mandá-los ler, saberem quem foi o Eça de Queiroz. Fora das elites, das pessoas que não estiverem minimamente preparadas ou não desenvolverem uma consciência do que pode estar a acontecer, eventualmente as pessoas vão estar nessa dimensão lúdica, prazerosa, em que recebem as coisas todas e vão adiando, vão procrastinando tudo e mais alguma coisa, porque se comportam cada vez mais como crianças.”

O autor de “A máquina de fazer espanhóis” descreveu ainda o empobrecimento dos hábitos culturais e a redução da diferença entre gerações: “Os pais fazem a mesma coisa que fazem os filhos, gostam da mesma coisa que veem os filhos, veem as mesmas séries, os mesmos filmes, jogam aos mesmos jogos. O meu pai antigamente jogava xadrez, que era uma coisa que se conquistava com alguma complexidade. Hoje em dia os pais que eu conheço que jogam alguma coisa, jogam a mesma coisa que jogam às crianças.”

“Corremos o risco de voltar a ideias tremendas como, por exemplo, a escravidão”

E concluiu este ponto com uma advertência sobre o que isso significa para a sociedade: “O que é que isto significa? Significa que as elites haverão de se safar; vai haver sempre uma elite, vai haver sempre um núcleo de humanidade, as baratas, se vocês quiserem, que sobrevivem, e que haverão de carregar uma espécie de dimensão humana, mas a grande vastidão, a grande multidão, eu acho que vai estar disponível para regressarmos a uma convicção de que somos feitos por castas, somos distintos uns dos outros e corremos o risco de voltar a ideias tremendas como, por exemplo, a escravidão.”

Para este pensador, o desafio que se coloca hoje “está numa pedra de toque, que é a ética, que tem a ver com a justiça. Só o desenvolvimento de uma consciência ética nos pode salvar, enquanto humanidade, enquanto coletivo, enquanto multidão. Só a defesa de conceitos de justiça rigorosos, conscientes, poderão fazer com que hoje eu esteja a falar de uma coisa que no futuro vai encontrar um recetor que seja humano.”

Valter Hugo Mãe retomou depois uma reflexão sobre velocidade e nostalgia: “Reparem numa coisa. Nós vivemos em velocidade, porque a tecnologia nos oferece a velocidade. Temos a sensação de que tudo acontece e nós não vamos a tempo de estar incluídos porque não percebemos as coisas novas que nos metem à frente, as aplicações, usar um telemóvel.”

“Estamos cada vez mais conservadores porque temos medo do futuro. E o futuro parece estar interessado em não nos incluir.”

E acrescentou: “Ao mesmo tempo que temos essa velocidade, que estamos obrigados a essa velocidade, estamos instalados numa profunda nostalgia.”

Para exemplificar a sua tese, recorreu à nostalgia da cultura pop e da música que, de acordo com Valter Hugo Mãe, se assiste: “Se vocês pensarem, por exemplo, que a grande cantora do século XXI é a Adele, vocês podem deslocar as canções da Adele para os anos 60 e fariam todo o sentido; praticamente todas as coisas que nós consumimos hoje, elas podem ser deslocadas décadas.”

O escritor, cujo livro de 2011 “O Filho de Mil Homens”, deu origem a um filme da Netflix com o mesmo título estreado em novembro passado, concluiu com um diagnóstico: “Nós estamos cada vez mais conservadores porque temos medo do futuro, porque temos medo, sobretudo, que o futuro não nos inclua. E na verdade, é verdade, o futuro parece estar interessado em não nos incluir. Lamento muito.”

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