Ricardo Pacheco joga videojogos para viver. Dedica-se a jogar “Counter Strike: Global Offensive”, todos os dias das 9h às 17h. É remunerado com um salário.
É mais conhecido pelo alias “Fox” no mundo em que se move, o dos videojogos, e faz milhares de euros com o comando. É uma das estrelas portuguesas do mundo dos eSports – os videojogos como desporto – que milhares de pessoas acompanham em todo o mundo e que move milhões de euros.
Os eSports já são uma grande parcela do enorme mercado de videojogos a nível global. Se o mercado total terá alcançado os 91,7 mil milhões de euros em receitas no mundo inteiro em 2016, um relatório da Deloitte avança que as receitas globais só dos eSports terão atingido os 460 milhões de euros no ano passado. Um valor que a consultora Newzoo eSports estima que ascenda a 1,3 mil milhões de euros em 2020 – com o investimento das marcas a representar mais de mil milhões de euros deste bolo. Mas o mais impressionante está na comunidade que se cria em torno destas competições organizadas.
São quase 200 milhões os que acompanham jogos em plataformas digitais como o Twitch, ou em espaços ao vivo. Os atletas – sim, ultrapasse desde já a estranheza de chamar a um profissional dos videojogos “atleta” – são remunerados por jogarem profissionalmente e são disputados por clubes interessados em ganhar títulos – e dinheiro. Alguns até apostam em treinar o lado físico e preparam-se com cuidados reforçados na alimentação, no descanso e no corpo.
“Quando o campeonato do mundo de ‘League of Legends’ esgotou os 18 mil lugares do [pavilhão] Staples Center, em Los Angeles, durante uma semana, começou a ser óbvio que era uma indústria a atingir um ponto de maturidade e que mais tarde ou mais cedo as grandes marcas iriam começar a olhar para ela”, explica à FORBES Pedro Honório da Silva, co-fundador da Qwatti, agência especializada no ecossistema dos eSports sediada em Dublin, na Irlanda.
“Portugal anda a uma velocidade infinitamente mais lenta do que o resto do mundo”, contextualiza Guilherme Fraga, também co-fundador da Qwatti, que promove serviços como organização de eventos e gestão de carreiras em eSports a clubes como o alemão FC Schalke, de Gelsenkirchen, o dinamarquês Brøndby IF, de Copenhaga, e o polaco Legia de Varsóvia.
“Lá fora, o nível dos prémios monetários aumentou e os salários aumentaram. Há jogadores de eSports no mundo a ganhar mais do que alguns jogadores de futebol da Primeira Liga portuguesa.” Em Portugal, ainda não. Por cá, apesar da boa vontade, a modalidade ainda é inconsistente. Para terem uma carreira, os jogadores têm de jogar em equipas estrangeiras – Espanha, Turquia, Brasil, concretiza – que lhes dão melhores condições. “Salários bem na ordem dos quatro dígitos”, refere. E lá fora, já não são só marcas do sector dos jogos que se chegam à frente para patrocinar estes eventos. “Marcas como a Coca-Cola, que estamos habituados a ver noutros desportos” já estão nesta modalidade, diz Guilherme.
Em Portugal, já há algumas a nível nacional, como a Meo e a Allianz, a apostar nesta área. Mas há ainda um longo caminho a fazer para credibilizar esta área no país.
Os clubes estão atentos a este fenómeno e estão dispostos a capitalizá-lo. A nível mundial, clubes como o francês Paris Saint-Germain, o holandês Ajax ou o britânico Manchester City já enveredaram por este caminho. Por cá, o Sporting Clube de Portugal é um dos clubes pioneiros a apostar nesta modalidade.
É ainda uma pequena estrutura, lançada no final de 2016. À frente desta secção está Pedro Silveira, coordenador, coadjuvado por Márcio Figueiredo. São dois profissionais do ramo dos videojogos a trabalhar para desenvolver esta área num dos três grandes, por entre um mercado nacional ainda incipiente e a necessitar de referências. “É uma aposta lógica. O mundo dos eSports é claramente hoje um grande território onde, cada vez mais, as equipas desportivas estão a apostar”, explica Pedro Silveira à FORBES. “É uma modalidade autónoma, que tem de ter uma gestão própria, e os seus apoios a nível de patrocinadores e parceiros”, explica. “Para o clube não é um negócio. É competição. O Sporting quer é títulos. Para a secção acaba por ser um negócio porque precisamos de ter parceiros.
Temos de ter patrocinadores, mas é um negócio que acaba por ser convertido [em recursos] para os próprios jogadores. O dinheiro que existe é para a secção conseguir implementar a secção no ano fiscal”, adianta Pedro Silveira.
Clubes entram em jogo
A área de eSports do Sporting começou por apostar numa secção de “FIFA”, mas acrescentaram em Setembro as secções de “PES” e “Pro Clubs”. O plano é “avançar para mais um ou outro jogo, consoante as possibilidades da secção”, detalha Pedro Silveira. A ausência de ligas oficiais de eSports em Portugal é um handicap no desenvolvimento do sector em Portugal. “Nós participamos nos torneios que existem. Em Portugal, não existe nenhum campeonato oficial”, sublinha. Até agora, já se associaram ao projecto a loja de jogos digitais G2A e a tecnológica LG, e a expectativa é que se juntem mais a este rol.
Para ganharem tracção, Pedro e Márcio começaram por contratar estrelas dos eSports nacionais. Francisco “Quinzas” Cruz é um exemplo de um jogador bem-sucedido no panorama português. É um dos primeiros atletas profissionais do Sporting a ingressar no departamento de eSports do clube. Nas suas credenciais tem a vitória no FIFA Interactive World Cup 2011, jogo com o qual se sagrou campeão do mundo deste jogo. “Quinzas” entrou no clube de Alvalade em 2016, “com condições muito boas”, conta Francisco à FORBES. Mas começou, como todos, por baixo. Chegou a competir pela Polónia porque, à época, a FIFA não garantiu vagas para a competição presencial para Portugal. Restava apenas uma mão-cheia de países onde poderia competir.
“Na altura, sobravam Espanha e Polónia e, como a diferença de valor era quase a mesma, resolvi ir à Polónia porque achava que ia ser mais fácil. Os jogadores espanhóis que conhecia não me davam tanta segurança.” Foi campeão nacional pelo país polaco e conseguiu o passaporte para o mundial, que também ganhou. Hoje, vai acumulando a actividade profissional com o curso de Economia na Universidade do Porto. O investimento do Sporting foi apenas em recursos humanos, explica Pedro Silveira.
“O ‘Quinzas’ foi a nossa primeira aposta e recrutámos mais quatro jogadores para a secção”, diz. Mas ressalva que, devido ainda ao incipiente mercado português, “estamos a falar de verbas reduzidas. Não compensa às organizações estar a pagar grandes ordenados cá quando não existem grandes competições com grandes prémios em Portugal”, garante Pedro.
Tal como o Sporting, o Estoril-Praia foi um dos primeiros clubes a apostar numa área de eSports. O clube já tem três equipas de “FIFA”, “Rainbow Six”, “World of Tanks”, “Counter Strike”, entre outros, com 173 jogadores activos. Liderada por João “Soka” Paulo, esta área já inclui três equipas de FIFA e jogos como “League of Legends” e “CS:GO”, entre outros. Neste momento negoceiam parcerias e já asseguraram uma com uma retalhista de relevo, o Intermarché.
No clube do Estoril, a equipa é composta por jogadores não-profissionalizados que competem envergando a camisola dos “canarinhos”. “O investimento numa modalidade como esta passa pela questão dos equipamentos e uniformidade de imagem”, explica à FORBES Alexandre Faria, presidente do emblema estorilista.
O retorno é obtido através da projecção da marca junto de novos públicos e a possibilidade de organizar eventos no futuro, “quando [os eSports] se tornarem mais regulamentados”, ressalva. Por agora, “o que temos de fazer é contactar grandes organizações estrangeiras para que nos possam dar o conhecimento necessário”, acrescenta João Paulo. Hoje, tanto o Sporting como o Estoril-Praia têm a companhia de outros clubes nesta modalidade, como Os Belenenses e o Farense – e outros emblemas preparam-se para lançar uma secção própria na área dos eSports, sabe a FORBES. Mas, ao nível dos atletas, exemplos como João “maniaKK” Ferreira, Ricardo “Fox” Pacheco e Francisco “Quinzas” Cruz – n.º 1, 2 e 4 do ranking de atletas de eSports que mais prize money ganharam, respectivamente – que vivam do seu desempenho competitivo em videojogos, são raros em Portugal. “A profissionalização não existe. Quanto muito, podemos falar de uma semi-profissionalização”, diz Márcio à FORBES. Tal como a própria modalidade, ainda a tentar estabelecer-se.
Regular para credibilizar
Uma questão essencial para todos os intervenientes é a criação de uma estrutura que faça a regulação dos eSports em Portugal, que defina regras e estipule boas práticas. “Estamos a trabalhar numa área etérea, em que não existe nada ainda, nem grandes exemplos do estrangeiro que possam ser importados para Portugal. O handicap principal é o facto de não existir uma liga, uma federação, que tutele esta situação”, defende Alexandre. “Mas este cenário de desregulamentação também interessa a determinados clubes que, se calhar, preferem estar nessa situação. A nossa posição tem sido contrária: ajudar que esta modalidade cresça. Para crescer, tem de ser em determinados moldes.”
Nuno Moura, líder da área de eSports da Federação Portuguesa de Futebol, foi um dos responsáveis pela criação da primeira competição desta modalidade na organização que regula o futebol. Obviamente, focada em “FIFA”.
O objectivo foi elevar a fasquia deste tipo de eventos, atraindo marcas de relevo e atribuindo um prize money relevante e incomum em Portugal: 10 mil euros para o vencedor. “Estava na altura de oferecer melhores condições a todos os atletas interessados nesta modalidade em Portugal”, explica à FORBES, acrescentando que “há uma lacuna no que concerne à organização de eventos relevantes”. A FORBES esteve presente na final, que decorreu em Julho, e deparou-se com mais de uma centena de participantes num ambiente high-tech, e com especial preocupação com os media, isto é, com os canais de transmissão do evento. “Sentimos que há ainda falta de uma entidade em quem as marcas e todos os players deste ecossistema confiem, e que vejam a solidez necessária para fazerem os seus investimentos com mais segurança”, diz Nuno. É um círculo vicioso: é preciso ter eventos de qualidade para atrair mais público.
Para ter eventos de qualidade é preciso investimento das marcas que só investirão se existir massa crítica. É uma questão de confiança, defende Nuno, para ser possível trazer mais investimento aos eSports. O que não se consegue com um ecossistema composto por pequenos eventos sem coerência, defende. A Federação propõe-se a trazer mais estrutura aos eSports em colaboração com a FIFA, que deverá ajudar a regular este tipo de torneios.
Pedro Silveira recorda que a indústria já se está a posicionar em Portugal, dando como exemplo a Liga Playstation, da Sony, ou a XBox, da Microsoft, e alguns outros torneios digitais. Mas, para se criar uma Liga, “tem de haver um grande encontro de forças de todo o mercado dos eSports, do desporto, da indústria dos videojogos, dos multigamings, para se conseguir montar uma federação de eSports em Portugal”, garante. E, como o sector ainda se está a estruturar no mundo inteiro, Pedro Silveira diz que é preciso estar atento ao que se faz lá fora e às decisões em termos de regulação. Para o responsável do Sporting, é essencial que seja criada uma Federação Portuguesa de Jogos Electrónicos, para regular a modalidade de forma oficial. Só assim será possível profissionalizar os eSports.