No final do milénio a arqueologia ganhou força de lei no país. De um vazio legal, Portugal passou a exigir que todas as construções passassem a ter acompanhamento arqueológico obrigatório. O Estado não tinha arqueólogos para dar conta do recado, nem terá querido aumentar a sua já gorda folha salarial para o permitir. Miguel Lago, arqueólogo de formação, viu aí uma oportunidade de negócio. O volume de trabalho que começava a aparecer era difícil de suprir e, no final dos anos 1990, resolveu criar a Era Arqueologia, uma das maiores empresas do país especializadas em trabalhos arqueológicos, conservação e restauro.
A postura de Miguel já não corresponde àquela que o público em geral tem de um arqueólogo, coberto de pó e munido de pincéis, lupas e picaretas. É um autêntico homem de negócios que fala com a FORBES:
“Temos de ter uma estrutura comercial e procurar ganhar concursos e contratos para alimentar toda esta máquina”, defende, na sede da Era, localizada na Cruz Quebrada, no concelho de Oeiras.
Fundou a empresa, com mais dois sócios, em 1997, em plena convulsão nacional com a questão de Foz Côa e no ano em que foi ratificada, no Parlamento, a Convenção de Malta – a directiva europeia que obriga ao tal acompanhamento arqueológico de obras. “Estávamos a viver um momento, nos anos 1990, em que alterações na legislação propiciaram o nascimento de empresas” da área, justifica. Nesta bifurcação que apareceu no caminho do Estado – ou chamar a si a responsabilidade de fazer todos os trabalhos arqueológicos ou dar essa responsabilidade a privados – foi escolhida a segunda hipótese. E as empresas não tardaram em aparecer.
São companhias que vendem um produto que ninguém quer comprar, mas que os promotores e empreiteiros têm de incluir nos seus orçamentos. Na década de 2000, o grande cliente destas entidades foi o Estado que as contratava directamente ou através dos construtores civis que tinham as grandes obras públicas a seu cargo nesses anos de grande investimento estatal. Com a crise, a torneira secou. Mas a reabilitação urbana e o renascer dos centros históricos nas grandes cidades do país, com destaque para Lisboa e Porto, estão a revelar-se um verdadeiro maná para as empresas do sector, que não têm mãos a medir com pedidos de sondagens e escavações nos subsolos urbanos.
É mais uma consequência positiva do aumento do turismo e do investimento estrangeiro em Portugal, e um sinal de revitalização de um sector que sofreu significativamente com a crise financeira de 2008. É precisamente esta reabilitação urbana que representa actualmente uma parte generosa da facturação das empresas de arqueologia, conservação e restauro, dando-lhes um novo músculo.
Papel do Estado
Apesar do papel legal da ratificação da Convenção de Malta, o grande ponto de viragem junto da opinião pública ocorreu na descoberta de arte rupestre aquando da construção da barragem do Vale do Côa – construção que seria interrompida para dar lugar ao Parque Arqueológico que hoje existe. O impacto desta descoberta e a mobilização pública que provocou fizeram com que houvesse uma maior consciencialização da importância do trabalho arqueológico. Contudo, o Estado não estava disponível para assumir a responsabilidade de assegurar os acompanhamentos arqueológicos. João Zilhão, antigo director do Instituto Português de Arqueologia, fundado em 1997 e extinto apenas cinco anos depois, diz à FORBES que “as regras do mercado da União Europeia obrigavam a soluções deste tipo”, que passavam pelos privados. Apesar de defender que o Estado deveria ter um papel muito mais preponderante, nota que “estatizar” os serviços arqueológicos, à época, “era impraticável, devido às restrições à contratação” na Função Pública. Foi assim um momento de “afirmação”, diz Miguel, para os projectos empresariais. “Foi importante para criar as condições de base para surgir a iniciativa privada”, diz. Até porque “havia mercado”, acrescenta.
Um mercado que passou muito pelo Estado e a aposta nas obras públicas da primeira década do milénio. Nos anos 2000, os maiores clientes de empresas de arqueologia eram, como foi no caso da Era Arqueologia, entidades estatais. Exemplos: a Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva (EDIA), responsável pela construção dos canais de rega; a Parque Escolar, que requalificou centenas de escolas; e entidades mandatadas para a construção de auto-estradas e barragens. Mesmo que o contratador não fosse o Estado, muitas vezes era-o de forma indirecta, através de empresas de construção civil ou de arquitectura com projectos públicos entre mãos. “Não sei se ainda hoje a EDIA é o melhor cliente da Era, mas imagino que sim”, exemplifica Miguel. Segundo informações da EDIA fornecidas à FORBES, foram investidos 15 milhões de euros em perto de 460 projectos arqueológicos a cargo de diversas empresas, numa média de 36,2 mil euros por cada projecto. E isto nos últimos 17 anos e apenas a partir de uma única contratante pública.
Era muito dinheiro, demasiado tentador para alguns. Ficou conhecido no meio o caso de corrupção decorrido na Junta Autónoma de Estradas e na sucessora Estradas de Portugal, denunciado em 2008 pelo jornal Público: a empresa Geoarque, detida por quadros destes institutos públicos, recebera milhares de euros em adjudicações directas para acompanhamento de obra. Paulo Rebelo, sócio da Neoépica, uma empresa de arqueologia sediada em Sintra, diz à FORBES, em jeito de graça mas também de crítica, que “em arqueologia é muito fácil ganhar dinheiro” se se for desonesto. As estratégias? Protelar trabalhos desnecessariamente quando não há vestígios, ou alargar as áreas de sondagem quando se sabe de antemão onde é que os vestígios estão. Tem que se ter ética profissional, conclui.
“A desonestidade na área da arqueologia é algo que se descobre sempre ao fim de algum tempo. Rapidamente se é descoberto. E essas empresas que praticaram situações incorrectas desaparecem do mercado”, congratula-se Nuno Neto, sócio de Paulo, à FORBES.
A própria incapacidade do Estado gerir esta actividade dá azo ao aparecimento de situações pouco éticas. As empresas de arqueologia, apesar de lidarem diariamente com património e memória colectiva, não são tuteladas directamente pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). Esta contacta apenas com o líder do projecto, independentemente de estar associado ou não a uma entidade empresarial. As distorções que um Estado cego para a existência destas empresas traz para o mercado são um alvo comum a praticamente todos os ouvidos pela FORBES. Apontam, entre outras coisas, para dumping nos preços, más condições de trabalho dadas aos arqueólogos e destruição de património devido à falta de fiscalização e ausência de recursos humanos na direcção-geral e nas direcções regionais.
Diferenças regionais
Tal como a Era, a Neoépica tinha o Estado como maior cliente nos anos 2000. Sobreviveu à crise graças a um dos últimos grandes projectos estatais, o da barragem do Baixo Sabor, que a ocupou durante esses anos de travessia no deserto. Hoje, a reabilitação urbana dá-lhe pano para mangas. “Este é um mercado muito precário e muito competitivo entre as empresas de arqueologia”, considera Nuno. “Tem fracas margens de lucro”, concretiza, que são muitas vezes esmagadas ao fazer um trabalho de qualidade. “Na competição com outras empresas que oferecem serviços a preços mais baixos, mas eventualmente de menor qualidade, a Neoépica vê-se obrigada a reduzir a margem de lucro.
O mercado não é muito favorável, embora neste momento eu sinta que há uma alteração”, responde.
A reabilitação faz com que haja trabalho para todos, mas ainda há grandes projectos públicos – e que dão origem a sondagens arqueológicas fascinantes, como o projecto relacionado com a construção do parque de estacionamento subterrâneo do Campo das Cebolas, mesmo ao lado do Terreiro do Paço, em Lisboa.
A EMEL, a empresa que gere o estacionamento nesse concelho, escolheu um consórcio de três empresas da área metropolitana do Porto para fazer as escavações arqueológicas: Império Arqueologia, a Arqueologia & Património e a Empatia. “Foram 60 toneladas de material extraído no Campo das Cebolas”, diz André Nascimento, sócio da Empatia, à FORBES.
O caso da Empatia é o de uma empresa que começa por fazer trabalhos de proximidade até crescer o suficiente para se atirar aos grandes projectos. A aposta inicial, aquando da abertura da empresa, em 2002, foi no sector privado, “uma área que estava um pouco desleixada no Porto”, diz à FORBES Jorge Fortuna, da empresa sediada em Vila Nova de Gaia. Demoraram, contudo, a entrar no mercado de Lisboa de forma mais consistente, tendo apenas projectos pontuais na capital. “As pessoas quase estranhavam ver lá uma empresa do Norte”, brinca Carlos Loureiro à FORBES.
Foi, mais uma vez, a reabilitação urbana que proporcionou esta entrada em território alfacinha, com o expandir do mercado. “Lisboa deixou de ser um microcosmos para ser um retrato do país”, congratula-se André. Já Miguel Lago queixa-se do contrário – de que o mercado do Porto é difícil de quebrar, apesar de ter projectos naquela cidade desde os anos 2000, tanto através da Era como da Omniknos, sediada na Invicta. “Há um proteccionismo de algumas instituições às empresas do Porto que não existe em Lisboa”, garante o fundador da Era.
Mais a meio entre estes dois discursos está Marcos Couto, sócio-fundador da Império. O arqueólogo discorda da noção de que há dificuldade na entrada em diferentes mercados dentro do país. “O mercado não está fechado” a priori, diz à FORBES. A entrada em novas áreas depende exclusivamente da capacidade de bater a diversas portas. “É preciso haver trabalho comercial. Nenhuma porta está fechada para nós”, garante. Prova disso é que a sua Império assegura trabalhos em todo o país.
O mercado traz para o presente os tesouros escondidos no riquíssimo subsolo destas duas cidades, que por sua vez se têm aberto para o mundo e tornado cada vez mais fundamental o trabalho destes profissionais.