Estamos no Recolhimento das Trinas, numa rua discreta no centro de Guimarães. Omar é um rapaz de 21 anos, engenheiro mecânico, e o único que sabe falar inglês na família Hazza, composta ainda por Mohammed, de 20 anos, e pelo pai, o sr. Hazza, de 49 anos.
São os três sírios e depois de 10 longos meses a saltar de fronteira em fronteira, chegaram a Portugal a 5 de Fevereiro. Os três membros da família Hazza fazem parte das 195 pessoas que, desde Novembro, chegaram a Portugal, provenientes da Grécia e de Itália, no âmbito do programa de recolocação de refugiados da União Europeia.
No meio da já considerada maior crise migratória desde a II Guerra Mundial, e num processo que está a provocar inúmeras divisões entre os Estados-Membros da comunidade do Velho Continente, Portugal propôs-se, através do Estado e da sociedade civil, a cumprir calmamente a sua parte. O Primeiro-ministro português, António Costa, subiu recentemente a parada para receber 10 mil refugiados.
Alguns já cá estão, mas ainda em número muito distante da capacidade anunciada pelo chefe de governo. A família Hazza foi a primeira a chegar a Guimarães e deparou-se com o Recolhimento das Trinas vazio. Pouco tempo depois, chegaram outras famílias.
Durante a nossa conversa, Omar vai contando com desenvoltura as diferentes peripécias, interrompido pelo pai que, em árabe, vai interrogando o filho sobre o que se está a passar, talvez com medo que Omar meta o pé na argola e seja indelicado de alguma forma. O irmão, Mohammed, vai observando a conversa, com expectativa no olhar e com timidez.
Aqui em Portugal não lhes falta nada. Têm roupa e alojamento garantido, e ainda um pocket money no valor de 150 euros para cada um. Nem mesmo despesas com transportes têm de pagar. Está tudo garantido. “Temos tudo”, assegura Omar, que nos diz que, por isso, conseguem enviar parte do dinheiro para a família que ainda está na Turquia – a mãe e dois irmãos de Omar partiram da Síria pouco depois deles, e desde o final de Fevereiro estão na Turquia a aguardar indicações para virem até Portugal. E de onde vem todo este dinheiro?
De um fundo da Comissão Europeia de apoio aos refugiados na União Europeia na ordem dos 700 milhões de euros. Sob o plano europeu, os refugiados deverão receber auxílio durante 18 meses, na medida de 6 mil euros por adulto e 4 mil euros por criança. Em Portugal, a distribuição destes fundos está a cargo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que é feita por via de tranches únicas, que perfazem 330 e 222 euros por mês, respectivamente.
Dois pratos da balança
O Fundo Monetário Internacional (FMI) apresentou recentemente um estudo sobre o impacto na economia da vaga de refugiados nos países da União Europeia.
À FORBES, um dos responsáveis deste estudo, Shekhar Aiyar, vice-director do departamento europeu do FMI, explica que “a crise dos refugiados vai certamente fazer com que seja necessária alguma despesa fiscal à partida, algo repartido de forma desigual entre os Estados-Membros da União Europeia, espelhando a heterogeneidade dos destinos escolhidos pelos refugiados.”
O relatório lembra que uma maior despesa vai contra os esforços de equilíbrio das contas implícitos no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), que impede défices acima dos 3%.
Contudo, as regras do PEC permitem acomodar despesas extraordinárias, relembram os especialistas do FMI. Certo é que, no curto prazo, segundo o relatório, a despesa adicional vai ter um impacto ligeiro, mas positivo, na riqueza dos países. Na UE, “o nível do PIB aumenta cerca de 0,05%, 0,09% e 0,13% em 2015, 2016 e 2017, respectivamente”, sendo que “no primeiro ano, o impacto na produção deve-se inteiramente ao impacto na procura agregada da despesa fiscal adicional”.
Rui Marques, da Plataforma de Apoio aos Refugiados, reconhece a importância e o valor destas pessoas para a economia nacional: “Eu não tenho dúvida nenhuma de que acrescentam, em todas as dimensões. A demográfica, a económica no sentido de aumentar a capacidade produtiva, a intercultural, no sentido de estabelecer pontes com outros mercados, outras realidades.”
Contudo, refere que “quando passamos a pensar contabilisticamente se os refugiados acrescentam valor, é um nível de discussão que já é meramente egoísta. É reforçar a Europa que se tem vindo a construir nos últimos anos, a Europa dos contabilistas, a Europa do deve e do haver”, sublinha.
Teresa Tito de Morais, do Conselho Português para os Refugiados, sublinha o impacto que os refugiados podem trazer no campo do mercado laboral, notando que “há zonas no nosso país que precisam de pessoas, dado que houve um número muito elevado de emigração de zonas um pouco desertificadas em que muitos jovens saíram de muitas regiões em Portugal que poderão ser úteis essas pessoas também para o nosso tecido laboral.”
Todavia, os líderes das duas principais organizações de apoio aos refugiados recentram a discussão na solidariedade. “Estamos firmemente convencidos que a fixação das pessoas e a sua integração se fará melhor se tiverem perspectivas de trabalho do que se ficarem inactivas durante muito tempo”, ressalva Teresa.
E é por isso que o Conselho Português para os Refugiados e as organizações envolvidas exploram previamente as possibilidades de empregabilidade de cada concelho. “Há um período inicial em que se tem de gastar dinheiro, mas que é um investimento que pode dobrar em termos de benefício.
Isto partindo do princípio que, ao fim de oito, dez meses a pessoa já esteja a dominar mais ou menos a língua portuguesa, a sentir-se num ambiente mais favorável culturalmente e a integrar o trabalho que lhe é proposto. E aí poderá ser uma mais-valia”, explica Teresa.
A dureza da integração
Omar e o pai já começaram a pensar em trabalhar, mas ainda falta algum tempo até que a celebração de um contrato de trabalho se concretize. Omar já foi a uma entrevista de emprego para assumir a gestão da maquinaria de três restaurantes McDonald’s. Só poderá começar a trabalhar quando tiver os documentos regularizados e quando dominar o português de forma satisfatória. O pai, de 49 anos, tinha três empregos na Síria.
Às vezes fotógrafo, outras telefonista e outras armazenista, revendedor de diversos produtos. Um dos seus hobbies é cozinhar – e, também por isso, a cadeia de restauração rápida também demonstrou interesse em contratá-lo para as cozinhas. Mohammed pode vir a acompanhá-lo.
De acordo com declarações dadas à FORBES pelo núcleo de imprensa do SEF, para um refugiado poder trabalhar, “é emitido ao requerente uma Autorização de Residência provisória após 3 semanas da chegada a Portugal que confere o acesso ao mercado de trabalho”.
Contudo, os economistas do FMI ouvidos pela FORBES relembram que, olhando para o quadro geral, a integração dos migrantes no mercado de trabalho é mais demorada. Daí os especialistas relembrarem que o impacto positivo no PIB demorará mais tempo a notar-se. “De certa forma, a facilidade de integração vai depender do ciclo económico, com os países que já sofrem de taxas de desemprego altas a terem maiores dificuldades”, explica Aiyar.
O documento do FMI sugere diversas medidas para uma integração mais fácil, como a agilização de processos de asilo, medidas específicas de apoio para os refugiados, excepções a limites salariais e subsidiação na contratação de refugiados, o reconhecimento de graus académicos e profissionais e facilidades na concessão de crédito. E, inclusive, estímulos à construção de habitações.
Economistas e políticos podem acalentar ainda a ideia de um rebound demográfico a nível nacional através destes migrantes, mas, segundo Omar, não deverão contar com ele: “Quando a guerra terminar, claro que vou voltar para a Síria. Toda a gente quer voltar para casa.”
Noémia Carneiro, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães, que tutela o espaço onde as famílias foram recebida, salienta, tal como a generalidade dos profissionais que trabalham directamente com os refugiados, tinha uma ideia muito miserabilista dos refugiados, e que o essencial era garantir um tecto e comida na mesa.
Contudo, a realidade veio mostrar que essa visão estava longe da verdade. “As pessoas vinham com expectativas altas, muito mais altas do que as que nós pensávamos que elas teriam. Enquanto que nós pensávamos que, com alojamento ficariam muito satisfeitas, elas não. Havia muita coisa associada a uma vida construída lá, em moldes e num paradigma de evolução. Esta constatação levou-nos a ter de subir o nosso nível de esforço. Tivemos de responder a muitas questões que têm a ver com paradigmas que eles traziam e com expectativas mais altas do que as que estávamos à espera”, explica.
Nomeadamente no campo social. Noémia e as restantes técnicas da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães que trabalham com os refugiados esforçam-se para providenciar uma melhor integração das famílias através de diversas actividades. Omar já tem aulas de guitarra gratuitamente, que foram arranjadas por Paula Oliveira, coordenadora do consórcio e vereadora da Câmara Municipal de Guimarães.
Já o irmão, Mohammed, quer voltar a ter aulas de natação e, com o equivalente ao 10.º ano português, quer continuar a estudar em Portugal, na área da informática.
Choque de culturas e de costumes
Guimarães é uma das cidades que está na dianteira no esforço de integrar os cidadãos que chegam ao país. A cidade organizou um consórcio, o Guimarães Acolhe, que engloba 19 instituições sob coordenação técnica do município, cujo interlocutor privilegiado é o Conselho Português para os Refugiados.
No total, entre voluntários e remunerados pertencentes às diferentes organizações, intervêm cerca de uma centena de pessoas. “Em Guimarães já estão 17 pessoas e neste momento estamos em condições de acolher 35 pessoas”, explica Paula.
No dia-a-dia, é normal haver atritos devido às diferenças no modo de vida dos agregados. Noémia exemplifica com o desconforto sentido por uma família síria na partilha de espaços das mulheres com homens de diferentes famílias. Para resolver o assunto, atribuiu-se uma ala distinta para duas famílias nas Trinas.
Outro exemplo prende-se com os refugiados eritreus que, como cristãos ortodoxos, tinham grandes restrições alimentares na época da Páscoa. Mais: uma das técnicas deparou-se com uma cobertura de edredão, que um refugiado lhe tinha pedido, no chão – para depois se aperceber que estava a ser utilizada como tapete de oração. “As diferenças culturais entre os portugueses e os refugiados provocam uma aprendizagem constante”, conclui.
Omar assegura que tem uma boa relação com as outras famílias. “São boas pessoas. Tentamos ter uma boa relação dentro da casa. Às vezes, há alguns pequenos problemas, mas podemos responder a eles muito facilmente”, diz.
A integração, pelo menos na família Hazza, parece estar a correr bem. Omar é o mais extrovertido dos três. Já tem “100 amigos” em Guimarães, recorrendo à contagem do seu perfil de Facebook, e tem saído para bares, cafés e para a cidade quando o tempo, chuvoso neste último Inverno, o permitiu.
Os amigos brasileiros já andam a desviar o português para outras sonoridades: surpreenderam-no a dizer alegremente “bom djia” em vez do nosso “bom dia”, conta. Mohammed, mais discreto, não fala inglês, mas arrisca algumas palavras num português pronunciado na perfeição. “Se julga que leva aí uma radiografia dos refugiados, engana-se”, explica Noémia, apontando, com um sorriso, para o telemóvel onde a FORBES gravou a entrevista aos Hazza.
Esta família é menos conservadora do que as que chegaram a seguir, esclarece. “Há níveis de prática religiosa diferentes, dentro dos refugiados cristãos e muçulmanos, e costumes de alimentação diferentes.” Paula conta que “esta família vivia bem na Síria. São refugiados de guerra, sem dúvida, mas as pessoas têm a ideia de que lá viviam de forma miserável. Algumas delas tinham uma vida equilibrada. Cada família, cada pessoa, é única.”
Pende, contudo, uma questão fulcral para todas as famílias de refugiados que chegam a Portugal: “Há algo óbvio, que é a reconstrução familiar, algo que ainda não conseguimos resolver. O Conselho Português dos Refugiados tem sido chamado a responder-lhes a estas ambições, que são muito difíceis porque têm uma envolvência muito mais larga do que aquilo que nós, algum dia, poderemos responder”, constata Noémia.
Uma das preocupações é confortá-los e relembrar-lhes que o que fazem por cá pode ter uma grande influência na reunião das famílias, sublinham as responsáveis. E a internet é uma peça essencial na comunicação constante com outros refugiados: o Recolhimento está equipado com wi-fi para esse propósito. Nestas conversas, é inevitável os refugiados compararem as diferentes realidades e benefícios oferecidos pelos países, contam.
Mas a família Hazza não se queixa. Pelo contrário. Quando a FORBES ia dar por encerrada a entrevista, o pai Hazza faz questão de sublinhar, através do filho Omar, a generosidade de quem os recebeu e a gratidão que sentem, depois de uma fuga da miséria e da devastação. Ficou registado.