No sopé dos Montes Hermínios, encastrada na foz do mais antigo vale glaciar da Europa, a vila de Manteigas é mais uma entre as muitas localidades do interior que lutam contra o fenómeno da litoralização do país.
Longe dos tempos áureos da produção do lacticínio que lhe deu o nome, quando as vacas eram o animal predominante nas pastagens do vale e dos planaltos que a circundam, e da indústria têxtil que chegou a ocupar quase um terço dos cerca de 3 mil habitantes da vila, Manteigas vive hoje essencialmente do turismo, da riqueza natural e gastronómica – e da persistência e determinação dos poucos empresários que ainda ali permanecem.
O percurso da Ecolã, uma empresa familiar produtora de burel, e do empresário João Clara de Assunção, é um desses exemplos e uma história de como se pode crescer e competir no mercado mundial da indústria têxtil com um produto tradicional, que até há duas décadas tinha os dias contados.
João cresceu entre os teares herdados pelo pai. Alguns, ainda de madeira, podem ser vistos nas instalações da Ecolã, situadas naquele que foi, em tempos, um próspero parque industrial têxtil.
Datam de 1910, altura em que o seu avô viu potencial no tecido de lã conhecido por dar forma às casacas dos pastores da Serra. Mostra-os com orgulho, desejando que um dia os possa expor num museu próprio para o efeito.
O gestor representa a terceira geração de uma família que sempre teve a tecelagem e a produção do burel como actividade, o que torna a Ecolã na empresa mais antiga a produzir o tecido tradicional serrano. No entanto, como muitos jovens do interior profundo, não era suposto que o seu destino passasse por ali.
Após completar o secundário, rumou até Lisboa onde, depois de terminar a universidade, iniciou a carreira profissional como gestor. No entanto, em 1995, o falecimento súbito do pai impôs-lhe o desafio. “Ou vinha para Manteigas e dava continuação a isto ou deixava morrer a Ecolã, como aconteceu a muitas outras empresas do sector”, explica.
Naquela altura, era um pequeno negócio, exclusivamente focado para o mercado nacional e local, que vendia mantas e burel a metro. Foi uma decisão arriscada.
Apesar de ter crescido entre os teares, não tinha quaisquer conhecimentos técnicos, nem da arte nem do negócio, mas decidiu abraçar o projecto. Afinal, o conhecimento estava lá. Em Manteigas podem não existir doutores em biotecnologia, mas há mestres em lanifícios. António Carvalho é um deles.
Dos 64 anos de idade, 52 foram passados entre os teares. Os recursos humanos estavam lá, mas era precisa uma estratégia.
“Aqui, no interior, quase não se consumia burel. A maioria das pessoas associava o tecido a uma vida pobre e difícil. Era preciso alterar a mensagem e levar o tecido para os grandes centros e para o exterior”, explica João, que se muniu de gente das áreas da costura e da modelagem para começar a idealizar alguns modelos de vestuário e acessórios e testar a reacção dos clientes.
Por ironia do destino
Com a gestão na mão de João e a direcção técnica sob a supervisão do mestre António, faltava um comunicador. É então que surge António Fonseca e Costa, um lisboeta e amigo de João que trabalhava numa companhia de seguros, mas estava farto da vida na cidade.
“Disse-lhe que não lhe podia pagar o que ele ganhava, mas que gostava de o ter a trabalhar comigo”, refere o gestor, sublinhando as capacidades de organização, o conhecimento de línguas e a determinação de Fonseca e Costa, que mais tarde viria a tornar-se sócio da empresa.
Estava formado o núcleo da equipa necessário para, primeiro, fintar a Ecolã da extinção, e depois para fazer crescer o negócio. Hoje, com uma facturação anual que varia entre os 250 a 300 mil euros anuais, João encara o futuro com outros olhos. “Evoluímos muito nos últimos, sobretudo devido à abertura das lojas em Lisboa e no Porto e ao crescimento do turismo nestas cidades”, diz o empresário.
No entanto, o gestor não tem pressa ou ânsia de crescer. No âmbito do Portugal 2020, a Ecolã tem a decorrer um projecto de internacionalização para o mercado chinês. Contudo, habituado a contar apenas com os recursos gerados pela empresa, até se confessa algo arrependido de recorrer ao programa comunitário. “É tudo muito moroso e burocrático. Foi uma experiência a não repetir”, exclama.
Com a estratégia prosseguida nos últimos anos, a Ecolã conseguiu reduzir o peso do mercado nacional para 40% do volume de negócios e conquistar mercados tão importantes como o alemão, o italiano e o japonês, para onde canaliza a maior fatia das suas exportações.
João sabe que é possível continuar a crescer, mas sem pressas, até porque não tem espaço para aumentar a produção. Para já, o gestor de 61 anos está mais focado em manter os mercados que tem e assegurar a continuidade da empresa.
Para isso, revela que está a preparar a filha Joana e a fomentar a formação de jovens na arte da tecelagem, como fez recentemente em parceria com a Câmara Municipal de Manteigas e o Instituto de Emprego e Formação Profissional. “A tecelagem é uma arte, mas poucos jovens a querem como vida”, diz. Mas, até que a passagem de testemunho aconteça, o gestor vai continuar a fazer negócio como até agora.
No dia em que o visitámos, lá estava, numa azáfama, a carregar o furgão para fazer mais uns milhares de quilómetros com Fonseca e Costa até Milão, onde iria marcar a sua 18.ª presença consecutiva.
Uma forma beirã de fazer negócio
Para vingar em qualquer mercado é necessário investir na divulgação da marca para dar a conhecer e fazer chegar os produtos aos clientes finais. João sabia disso, mas fê-lo (e ainda hoje o faz) com uma estratégia muito típica dos portugueses: o contacto pessoal e a hospitalidade, neste caso, uma característica das gentes beirãs.
Foi assim que se iniciou no mercado internacional, quando após a visita de um empresário dinamarquês, em turismo pela Serra da Estrela, selou a primeira encomenda da Ecolã para o estrangeiro, e que fez questão de entregar “em mãos”. “Ele desafiou-me a ir lá levar a encomenda e eu aceitei.
Foram 3800 quilómetros e quatro dias de viagem, uma loucura”, exclama, sublinhando que ainda foi lá uma segunda vez e que aquele cliente, para quem chegaram a ter um catálogo próprio, foi um dos principais impulsionadores da Ecolã e do burel no estrangeiro. “Este tipo de relação próxima com o cliente é muito importante para nós”, refere o gestor, mencionando que, no passado, os negócios faziam-se assim “cara a cara”.
Em vez de apostar no marketing através da Internet e das redes sociais, por exemplo, João faz questão de receber os clientes na quinta da família, onde são acompanhados pelo próprio ou por Fonseca e Costa.
Foi também assim que aconteceu, por exemplo, há dois anos, com a comitiva da empresa japonesa que importa os produtos da Ecolã para aquele país, quando esta fez deslocar quatro elementos a Manteigas para acompanhar o processo de produção do burel, desde a tosquia até ao produto final.
E era também assim que estava a acontecer no dia em que a FORBES visitou a empresa com uma jornalista francesa em reportagem para a revista “Madame”, da transportadora aérea Air France. Mas não é só com calor humano e hospitalidade beirã que João convence os clientes da Ecolã.
A qualidade como único caminho
Num mercado como o dos têxteis, onde a concorrência é voraz e não é possível às empresas nacionais ombrear com os preços das companhias sediadas nos mercados emergentes, João cedo se apercebeu do caminho para o qual tinha que levar a Ecolã.
“Temos de fazer produtos de alta qualidade, de grande distinção e diferenciação, em que as pessoas não olham ao preço, mas sim à qualidade e ao projecto por trás do produto”, explica, ao mesmo tempo que mostra um rolo de lã acabado de fiar. “Veja. Cheire”, pede. O fio, surrobeco, uma das três cores naturais da lã – as outras são o castanho chocolate e o branco – cheira a ovelha. “Se não tiver esse cheiro, os japoneses já não o querem”, exclama.
O processo de produção sustentável e ecológico é um dos segredos do sucesso do burel da Ecolã e um dos motivos que leva João a não se preocupar com a concorrência. “Há muitas formas de fazer burel, mas nós continuamos a fazê-lo de acordo com a receita do meu avô”, afirma.
A lã usada pela empresa tem certificação ecológica, um valor que começa na selecção das ovelhas a tosquiar, alimentadas em pastagens naturais, na lavagem com água do rio Zêzere e sem recurso a químicos, e nos processos de tecelagem e produção artesanais. Depois, é só dar forma à matéria-prima, através de um trunfo transversal à indústria têxtil nacional para vingar no exterior, o design.
Inicialmente, João e a Ecolã recorram ao design próprio e ainda hoje o fazem no caso de algumas peças, mas também a nomes com expressão internacional que ajudam a levar o burel além-fronteiras e às passerelles da alta costura. Nos últimos anos, a marca trabalhou com a belga Nele De Block, sob a marca Sennes, mas está num momento de viragem.
Além do portuense Orlando Magalhães, a designer Lidija Kolovrat é actualmente a face do burel da Ecolã no mundo da moda, tendo já apresentado algumas peças com o tecido serrano na última edição da Moda Lisboa.
Depois de há 25 anos ter abraçado o projecto que diz amar, reconhece que foi uma decisão precipitada, mas a melhor da sua vida profissional e não tem nada a lamentar, nem mesmo da interioridade. “É um luxo estar aqui, não tenho razões de queixa. Se não há mais empresas de lanifícios em Manteigas é porque as pessoas se renderam. Eu não me rendi”, exclama.