Em Janeiro de 2013, Kim Jordan, co-fundadora e presidente-executiva da New Belgium Brewing, convocou uma reunião geral e deixou todos boquiabertos ao anunciar que a empresa fora vendida.
Passado o espanto inicial revelou que nos envelopes em cima das cadeiras de cada um estava a identidade do comprador.
Dentro de cada envelope fora colocado um espelho, a forma que Kim encontrara para comunicar que eram eles próprios os novos donos da New Belgium, graças a um plano de transferência de acções para os empregados.
“A New Belgium é demasiado grande para ser pequena e demasiado pequena para ser grande,” afirma o director da Beer Business Daily, Harry Schumacher.
Dois anos depois, os mais de 600 empregados-donos da companhia acordaram com uma notícia da Reuters que os surpreenderia novamente: a New Belgium estava à venda e os responsáveis da empresa procuravam um comprador que estivesse disposto a pagar mil milhões de dólares (cerca de 850 milhões de euros) por este fabricante de cerveja artesanal de Fort Collins, Colorado, EUA.
Guia turístico nesta cervejeira, Dave Ponceby lembra-se da dificuldade em fazer uma cara feliz quando conduzia os visitantes pela empresa, imaculadamente limpa e com tectos altos, por entre os quatro tanques de aço inoxidável brilhante onde a cevada e o lúpulo são esmagados e fervidos.
Fez o que lhe competia, como de costume, mas nesse dia não conseguiu transmitir a energia de ser empregado e dono ao mesmo tempo. “Estava magoado,” diz. “Circulavam então rumores de que a empresa seria vendida à Anheuser-Busch, o que mudaria tudo.”
A Anheuser-Busch InBev andava, de facto, a comprar cervejeiras artesanais. E os clientes da New Belgium estavam a desertar para empresas pequenas. Nos últimos cinco anos, segundo a Brewers Association, o número de cervejeiros nos EUA duplicou para 5300 e este número continua a aumentar.
Só em Fort Collins contam-se 21, estando quatro mais na calha. A New Belgium tinha cada vez mais dificuldades em competir com os pequenos actores e com os dólares investidos em marketing pelos Golias do sector. “A New Belgium é demasiado grande para ser pequena e demasiado pequena para ser grande,” afirma o director da Beer Business Daily, Harry Schumacher. Resposta de Kim: tem de crescer.
Crescer a custo
O percurso tem sido acidentado para esta empresa que chegou a liderar a carga contra a cerveja americana sem grande sabor e que se orgulhava de ter uma gestão progressista.
A decisão de vender 100% da empresa aos seus trabalhadores estava em linha com os ideais de Kim de dar mais poder aos empregados. Acabaria, no entanto, por criar dívida, e começaram a surgir pressões na empresa para que gerasse capital para cumprir o serviço da mesma.
Só que a New Belgium assumiria ainda mais dívida para montar uma segunda cervejeira em Asheville, na Carolina do Norte, que custou 118 milhões de euros e abriu em 2016.
A segunda fábrica aumentou a capacidade de produção em 50% e a New Belgium é vendida agora em 50 estados, mas tem de competir em locais onde os consumidores de cerveja nunca ouviram falar da marca.
Em 2015, enquanto aguardava que a fábrica de Asheville iniciasse a produção, a New Belgium registou o seu primeiro ano em baixa, com as receitas a cair de 191 milhões para 190 milhões de euros. Isto, juntamente com a decisão de colocar a empresa à venda no final do ano, caiu muito mal junto do pessoal.
Em Outubro de 2016, Christine Perich, que há 16 anos trabalhava na New Belgium e que Kim escolhera um ano antes para lhe suceder no cargo de presidente-executiva, telefonou a comunicar a sua demissão, sem que tivesse outro emprego e sem dar explicações públicas – se bem que houvesse quem questionasse se Kim estaria mesmo disposta a abandonar o controlo da empresa. “Continuo a ser a presidente do conselho de administração e é aí que as grandes estratégias são definidas,” responde.
Em Maio, Peter Bouckaert, o mestre cervejeiro de sempre da empresa, comunicou que estava de saída e que pretendia criar a sua própria micro fábrica de cerveja e de torrefacção de café. Jennifer Briggs, directora de recursos humanos e fervorosa defensora da marca, demitiu-se também sem explicações públicas.
E, no ano passado, à medida que um número crescente de pessoas se questionava sobre se a New Belgium continuava a ser um bom sítio para trabalhar, eis que o volume de negócios duplicou para 10%.
Empresa responsável
Este aumento do volume de negócios é notável numa empresa como esta, cuja história foi, durante muito tempo e com orgulho, partilhada pelos seus colaboradores: em 1988, o engenheiro eléctrico Jeff Lebesch, um cervejeiro de Fort Collins, deu uma volta de bicicleta pela Bélgica e apaixonou-se pela cerveja desse país.
Os cervejeiros belgas acrescentam muitas vezes fruta, como laranjas e cerejas, e especiarias, como cardamomo, à cevada e lúpulo habituais.
Depois de numa festa conhecer Kim, então assistente social, os dois viajaram até à Bélgica e decidiram abrir uma cervejeira, a primeira nos EUA a produzir cerveja ao estilo belga.
Depois do casamento contraíram um segundo empréstimo hipotecário de 50 mil euros para comprarem equipamento e quase ultrapassaram o limite dos seus cartões de crédito. Quanto aos rótulos, foram feitos por um artista vizinho.
O casamento não durou muito tempo (Lebesch deixou a empresa em 2001), mas a cervejeira vingou, e Kim introduziu regalias tais como uma clínica e um médico a tempo inteiro que presta cuidados de saúde gratuitamente ao pessoal da firma e suas famílias.
Ao fim de um ano na empresa, os empregados recebem uma bicicleta cruiser de cidade e uma viagem à Bélgica com tudo pago ao fim de cinco anos. Em 2013, a empresa passou a ter a certificação B Corp, submetendo-se a um rigoroso controlo dos seus compromissos em matéria de gestão transparente e sustentabilidade ambiental. “A New Belgium era uma empresa mas não funcionava como uma,” afirma Greg Owsley, director de branding entre 1996 e 2011. “Quando estava no seu auge como marca, era mais um movimento social do que uma cervejeira.”
Só que à medida que a New Belgium crescia, a ambição de Kim chocava com o seu idealismo. Em 2005, a fundadora e a sua equipa executiva, conhecida internamente como “missionários”, decidiram que a empresa deveria traçar uma estratégia nacional.
A presidente da empresa compara o processo que se seguiu à decisão de tentar vender a New Belgium em 2015 a uma verdadeira “marcha da morte”.
O objectivo, segundo Kim, consistia em dar novas oportunidades aos empregados e desenvolver uma plataforma maior, assente em práticas ambientais e de gestão progressistas na New Belgium. Mas houve quem visse aí uma luta de egos.
“Ela queria reconhecimento”, afirma um antigo membro da equipa interna. Kim afirma que não se arrepende de ter vendido a empresa aos empregados, por mais que uma venda da empresa no mercado lhe tivesse rendido mais dinheiro.
A FORBES avalia a sua fortuna líquida em menos de 170 milhões de euros, uma pequena fracção dos cerca de 600 milhões de dólares detidos por Ken Grossman, fundador e proprietário a 100% da cervejeira Sierra Nevada de Chico, Califórnia, e cujas receitas não vão muito além das da New Belgium. “Tenho dinheiro que chegue”, afirma Kim. “Vendemos aos empregados a um preço justo”.
A presidente da empresa compara o processo que se seguiu à decisão de tentar vender a New Belgium em 2015 a uma verdadeira “marcha da morte”.
Mas afirma ter tido responsabilidade fiduciária perante os seus empregados-proprietários, analisando bem os potenciais compradores. A Heineken acaba de comprar 50% da marca de cerveja artesanal Lagunitas por cerca de 680 milhões de euros e a Constellation Brands pagou 700 milhões de euros por outra marca de cerveja artesanal californiana, a Ballast Point.
Mas, apesar de ter tido ofertas sobre a mesa, nenhuma delas era boa, afirma Kim: “Não vimos indícios de entrosamento entre a nossa cultura de respeito pela tradição cervejeira e a nossa capacidade de sermos inovadores e experimentais. Pelo menos até agora”.
Chamar quem sabe
Antes do fim das conversações, Kim reforçou as suas apostas com uma nova contratação, de alguém que não se inseria no perfil típico da New Belgium. A maioria do pessoal, incluindo a presidente, usa camisas de flanela, calças de ganga e gorros.
Tatuagens e piercings são comuns também. Em Março de 2016, Kim contratou Ruairi Twomey, originário da Irlanda, como vice-director de marketing. Nos 14 anos que esteve na gigante das bebidas Diageo, comercializou a Guinness em Toronto, Nova Iorque e em Lagos, Nigéria.
De camisa branca imaculada e blazer preto, Twomey fala das novas linhas de produtos que ajudou a lançar no mercado, incluindo a Day Blazer, uma cerveja clara e leve.
Twomey afirma que testou 39 nomes e 16 propostas gráficas antes de se decidir pelo grafismo de inspiração inca de modo a atrair consumidores latinos. Lanlada em Janeiro, representa já 6% das vendas da New Belgium. “É muito bom ter alguém que nos encoraja a assumir riscos”, afirma Kim.
Na Wilbur’s Total Beverage, em Fort Collins, uma embalagem de seis cervejas de Day Blazer custa sete euros e podemos encontrá-las a 27 portas frigoríficas de distância da secção de cervejas artesanais, onde a Fat Tire, uma cerveja tipo pilsener e que é a marca de bandeira da New Belgium, é vendida a 8,5 euros. “Para muitos geeks da cerveja, a New Belgium é a Budweiser do mundo das cervejas artesanais”, afirma o empregado de barbas da loja.
Este é um dilema com que outros cervejeiros artesanais com distribuição nacional se deparam, incluindo Jim Koch, o fundador da Boston Beer, que produz a Sam Adams e tem vendas anuais de 745 milhões de euros.
“Se fizer uma cerveja boa”, diz Koch,” e se as pessoas gostarem e beberem, e se cada vez mais pessoas gostarem e beberem essa cerveja, então os geeks da cerveja ficam furiosos. Representam apenas 5% dos consumidores no mercado norte-americano, mas são 5% com uma capacidade influenciadora muito grande.”
Os geeks da cerveja artesanal até podem não gostar, mas a New Belgium recuperou face a 2015 e vendeu mais cerveja do que nunca no passado, contabilizando 198 milhões de euros, com um lucro líquido de 14,4 milhões de euros segundos os cálculos da FORBES.
Nos primeiros quatro meses de 2017, as vendas da Sam Adams e da Sierra Nevada derraparam 20% e 11,1%, respectivamente, segundo os dados da Nielsen, mas as vendas da New Belgium subiram 8,5%.
Kim, que afirma estar a analisar os candidatos ao cargo de presidente-executivo, não tem problemas em vender cerveja abaixo da média do mercado, como acontece com a Day Blazer, ou em deixar a porta aberta à entrada do comprador certo, mesmo que seja um dos Golias.
A InBev e a MillerCoors da Anheuser-Busch, segundo ela, “fazem cerveja excelente e nunca me ouvirão dizer mal deles. São excelentes cervejeiros”. Inteligente do ponto de vista do negócio. Mas para os adeptos e empregados que temem que a New Belgium perca o seu carácter especial, estas afirmações têm o seu quê de arrepiante.