Há já muito tempo que Diogo Valsassina é um nome – e uma cara – muitíssimo bem reconhecidos pelo público português. Seja porque integrou o elenco de várias telenovelas, filmes e peças de teatro, ou pelos papeis que desempenhou na sua capacidade de apresentador. Um ator multifacetado, Diogo marca presença habitual em diversos projetos publicitários. É de destacar a publicidade que faz para a Vodafone, a qual regularmente protagoniza, e a que nos habituamos a assistir com grande curiosidade. Mas, um facto que talvez muitos desconheçam, é que Diogo Valsassina é um gamer aficionado.
Movido por um óbvio interesse e gosto pelo mundo dos videojogos, Diogo desafiou-me a conversar sobre a perceção deste, pela sociedade. À FORBES, conta-nos que gaming gera debates que rapidamente podem assumir contornos menos positivos; discutidos, por vezes, por pessoas em cargos políticos altos, o que depressa pode polarizar as narrativas que se debitam. Em causa está, entre outras coisas, a ideia de que certos jogos podem induzir os mais novos a cometer atos violentos, trivializando-os. Contudo, Diogo lembra-nos de uma outra perspetiva que devemos ter em mente: a de que atribuir aos videojogos a responsabilidade de comportamentos descabidos (por e entre os mais novos), pode naturalizar, escondendo, a verdadeira razão por trás de tais.
Da história da indústria de jogos à criação de um sistema de content rating, Diogo dissecou alguns dos debates que ainda existem sobre gaming. Ficam, também, sugestões referentes às possíveis ‘mecânicas’ inerentes a uma alteração nos hábitos dos consumidores. Alteração esta que visa mudar a narrativa comum.
Diogo, antes de mais, és um gamer? Como surgiu a ideia de debatermos este tópico?
Diogo Valsassina (DV): Sim, sou bastante aficionado e gosto muito de jogar. Não sou streamer ou twitcher – até porque não chega para ser uma profissão minha a tempo inteiro – mas jogo bastante, claro. A ideia surgiu um pouco por ser uma coisa de que gosto imenso, e porque tenho notado que hoje em dia o gaming é olhado de maneira ‘estranha’ por muita gente. Por vezes, estas mesmas são pessoas com muita exposição mediática, ou em cargos políticos muitíssimo altos, o que dinamiza a narrativa. Há revezes: tivemos, por exemplo e muito recentemente, o Presidente da República Francesa, Emmanuel Macron, a fazer comentários negativos sobre video games.
Claro. E são debates que se podem desdobrar em mil: do impacto de gaming no dia-a-dia à visão geral da sociedade atual sobre jogos, passando por questões de saúde mental, etc.
DV: Exatamente. O facto de ser uma modalidade que se pode praticar a qualquer idade, que é de banda larga e por isso existe para todos os gostos, o ser um conceito de alçada mundial, e com ‘mobiliário’ próprio (como as cadeiras de gamers, etc.), entre várias outras coisas, intensifica as discussões e muitas vezes leva a opiniões polarizadas.
Mas, na tua opinião, a história ‘está mal contada’. E, de facto, vários estudos académicos concluem exatamente o contrário da narrativa a que te opões. Afirmam o oposto: que jogos são ‘vacinas’, por assim dizer.
DV: Acho que existe, já há muitos anos, a ideia errada de que videojogos são das grandes causas de violência, ou que nos induzem a comportamentos violentos, que impactam, sobretudo, os mais jovens. Voltando ao exemplo em França, por questões argumentativas e para dar um exemplo, acho que infelizmente é fácil olhar para as imagens de um jogo, ou para qualquer outro tipo de material mais direcionado para adultos, e tirar conclusões como as de Macron. Mas poucas são as pessoas que param para pensar e analisar com atenção o que lhes é dito – especialmente quando vindo de uma pessoa com “a patente” mais alta de um país.
Sim, o peso do que é dito por gente do calibre do Presidente francês torna-se enorme.
DV: Precisamente. Mas se voltarmos atrás no tempo, quando a indústria do gaming e dos videojogos começou, percebemos que não foi ‘criada’ e propriamente direcionada para crianças. O target audience eram jovens adultos e adultos. E, salvo erro, até mais ou menos 1992, nem sequer existia um sistema de content rating que classificasse os jogos por faixas etárias. Aliás, nos Estados Unidos, quando implementado, isto gerou uma certa confusão, porque haviam jogos em arcadas que estavam disponíveis para todas idades.
A indústria do gaming e dos videojogos não foi ‘criada’ e propriamente direcionada para crianças. O target audience eram jovens adultos e adultos.
DV: Em 1993, um jogo chamado Mortal Kombat, gerou imensa polêmica. O Senado norte-americano organizou várias audiências sobre jogos eletrónicos, com vários porta-vozes de empresas como a Nintendo e a Sega, pela violência do mesmo. Isto porque o Moral Kombat mostra sangue, uso excessivo de força física, etc. E foram os produtores do jogo, juntamente com outras empresas da indústria, que tiveram a ideia de evitar esse tipo de confusões com a criação do tal sistema de content rating.
Exatamente para tornar claro que não era um jogo para crianças, mas também para evitar que as mesmas o comprem (ou pelo menos, tentando dissuadi-las de o fazerem).
DV: E esta questão persiste, até hoje. Da mesma maneira que o heavy metal também já sofreu culpabilizações destas. Mas é interessante um discurso de 1992/3, continuar a ser tópico de conversa. O sistema de content rating já existe desde então, e pouco mudou. É interessante e a narrativa devia ser alterada, digo eu. Se eu tiver um filho de 10 anos, pelo sim pelo não, não lhe vou comprar um jogo como o Call of Duty, cuja idade mínima recomendada é de 18.
Ou seja, achas que o foco devia ser nas possíveis ‘mecânicas’ inerentes à alteração dos hábitos dos consumidores. O problema não é o jogo, é na falta de cuidado de quem os compra – neste caso, relativamente a menores de idade.
DV: Sim, para uma criança de 10 anos, pensava em comprar o Sonic ou o Minecraft. Jogos estes muito mais indicados para essa faixa etária. Efetivamente, os jogos estão disponíveis, ou ao alcance, de toda a gente. Mas não devem ser consumidos por todos.
Os jogos estão disponíveis, ou ao alcance, de toda a gente. Mas não devem ser consumidos por todos.
Claro. Assim como no cinema.
DV: Claro! Não me passaria pela cabeça levar uma criança de cinco anos a ver um filme para maiores de 18 – ou de qualquer idade que não a da criança. Estes debates fazem-me a mim, e à comunidade dos gamers, muita confusão. Tem de existir controlo. Quando eu era miúdo, tinha uma consola e jogava x horas por dia; mas, depois, ia brincar com outras coisas ao ar livre. Quantas vezes é que não vemos pais, num restaurante, a querer entreter os filhos com iPads, para que estejam ocupados e não chateiem tanto. Os mesmos pais que, mais tarde, até se podem queixar de as crianças estarem “agarradas” aos ecrãs… Culpar os jogos é usá-los como ‘desculpa’ para determinados comportamentos na sociedade.
Podemos levar o argumento mais longe e dizer que fazê-lo pode, até, ‘esconder’ outras razões mais sérias que passam despercebidas por estarmos tão focados nos jogos.
DV: Exato. E a verdade é que eu, e “nós” que jogamos, fazemo-lo durante umas horas e depois ficamos fartos. Para não falar de que somos expostos diariamente a imagens ultraviolentas (essas sim, verdadeiras!) de guerra. Seja sobre o conflito da Ucrânia e da Rússia, Israel e o Hamas, ou sobre notícias de outros crimes praticados cá e lá fora. Todos os dias – nas redes sociais, nos jornais, na televisão, etc. – somos expostos a informação realmente violenta. De manhã à hora do jantar. Os jogos são o scapegoat, e são-no recorrentemente.
Todos os dias somos expostos a informação realmente violenta. Os jogos são o scapegoat, e são-no recorrentemente.
E, segundo me contas, desde 1990 e poucos…
DV: Digo 1992 ou 1993, baseado no conhecimento que tenho e das conclusões que tirei do que sei, claro. Os primeiros fighting games, shoot’em ups, e jogos de combate, como é o caso de Mortal Kombat e o Street Fighter, apareceram nessa altura. São supostamente os dois maiores jogos de luta do mundo, mas são diferentes. Por exemplo, o Street Fighter tem uma animação cartoonesca; mais o género de desenhos animados. Já o Mortal Kombat, tem uma animação ‘realista’. Os criadores deste último, fizeram a chamada digitalização de pessoas – são fotogramas. Foi uma novidade. Podiam ter feito um jogo básico, mas investiram no realismo.
O que, sem dúvida, ajudou no argumento quanto à violência dos jogos.
DV: Claro, o público não “olhou” para o Mortal Kombat como um jogo de ‘bonecos’. Era mais realista e acharam que era “pior”, digamos. Mas também foi nessa altura que começaram a aparecer mais jogos de tiro. Desde os tiros aos patos, a outros mais “sérios”. Depois, a indústria começou a crescer, a ter mais dinheiro, e a (re)investir em jogos… Apareceram novas tecnologias, os gráficos foram melhorando, os jogos ficaram mais realistas – ou mais irrealistas, depende do que se procura!
DV: Nos anos 90, estes dois jogos foram muitíssimo impactantes. E o que rendia à indústria dos videojogos eram as arcadas. As pessoas não tinham consolas de jogos em casa, como hoje temos. Surgiram os GameBoys e, apesar de já existirem as Nintendo, não era a mesma coisa. Praticamente quase toda a gente tem uma PlayStation ou uma Xbox em casa, atualmente.
E as arcadas tinham um efeito parecido ao dos iPads, como mencionaste antes.
DV: Sim, completamente. Os pais davam moedas aos miúdos, e eles iam jogar nas arcadas. Não chateavam ninguém. De repente, ficavam todos agarrados a uma arcada de Mortal Kombat. Era preciso muito para alguém sequer ficar chocado ou agitado com o jogo. E vários estudos, como disseste, apontam para que jogos sejam, na verdade e ao contrário do que se pensa, um outlet para as crianças não serem violentas. Uma espécie de descarga.
Vários estudos apontam para que jogos sejam, na verdade e ao contrário do que se pensa, um outlet para as crianças não serem violentas.
Um contraponto?
DV: Eu acho mesmo que sim. Quando vamos assistir a um filme, ou começamos a ler, fazemo-lo para ‘escapar à realidade’. Às vezes estamos um bocado distraídos e entramos num mundo novo qualquer, e ficamos abstraídos daquilo que é. Ou seja, durante pelos menos duas horas, estamos ali entretidos com os jogos. Da mesma forma que com filmes e/ou livros.
E há um foco maior no lado negativo dos jogos…
DV: Sim. E claro que há sempre o lado menos bom das coisas. Mas, o lado ‘pior’ tende sempre a tornar-se público primeiro do que o lado ‘melhor’ dos jogos. Sendo que o lado bom dos videojogos pode advir, por exemplo, da ajuda que dão ao desenvolvimento cognitivo das crianças e à capacidade de raciocínio delas. Atualmente, um jogo não é só “andar com um bonequinho para trás, para a frente, e para saltar”. E mesmo quando era, os jovens desenvolveram skills consideráveis: não é qualquer pessoa que pega num comando e sabe controlá-lo. Faz-se um esforço mental e motor para se conseguir jogar. E é um esforço bom, porque é mais uma ferramenta e mais um mecanismo útil que nós exercitamos e que nos ajudam a desenvolvermos competências de múltiplos tipos.
Faz-se um esforço mental e motor para se conseguir jogar. Ajudam a desenvolvermos competências de múltiplos tipos.
E vários jogos servem exatamente para nos ajudar a desenvolver essas novas capacidades.
DV: Completamente. E existem vários que não são criados com isso em mente, mas que na prática têm esse efeito na mesma. Por exemplo, o Call of Duty, um dos videojogos mais conhecidos no mundo.É um jogo que se joga online, em equipas e umas contra as outras, e que exige de nós imensa comunicação com os jogadores que estão do nosso lado. Ou seja, com diálogo ‘ao vivo’. Ao jogarmos em equipa, temos de definir uma estratégia conjunta. Não é um jogo que seja possível ganhar sem ter um plano, só se for por acaso. Claro que o endgame é ganhar. Mas até ganharmos, estamos constantemente preocupados e a pensar: “Fugimos da confusão? Escapamos ao conflito? Ou encaramos o conflito de frente? Para onde vamos?”, etc. E ter estratégia não é tudo – temos de a comunicar. E bem. São mecanismos de aprendizagem e estratégia, e todos sabem que são meros jogos.
Eu percebo. Jogos podem ajudar-nos a desenvolver estratégia e comunicação. E, se fosse só pela parte da violência, se calhar também não se viam filmes da Marvel, por exemplo, porque também têm lutas. Acaba por ser esse o teu raciocínio.
DV: Sim, e ninguém diz que os filmes da Marvel nos fazem violentos. Aliás, quando eu tinha 9 ou 10 anos, os meus filmes preferidos eram ‘O Predador’ e ‘O Exterminador’. Filmes muito mais violentos – e que eu continuo a adorar. Os meus pais sempre incutiram em mim esta cultura de ir ao cinema, desde muito pequeno. E sabiam perfeitamente que não me podiam levar a um filme demasiado violento ou adulto. Os meus pais, como responsáveis por mim, sabiam perfeitamente o que é que eu queria e podia ver.
Os meus pais, como responsáveis por mim, sabiam perfeitamente o que é que eu queria e podia ver.
E deixavam-te ver filmes que sabiam que conseguias distinguir da realidade, talvez.
DV: Sim, eles sabiam escolher por mim, quando necessário. Eles sabiam perfeitamente que eu sabia que o que eu ia ver era um filme. Que era ficção. Aquilo que via no ecrã não acontecia, não me tornava mais violento…
Se calhar fazia-te é pensar mais no futuro e/ou na possível emergência de uma Skynet…
DV: É verdade! Ficava mais a pensar em coisas desse género, de facto. Hoje em dia com a inteligência artificial já estivemos mais longe… Mas nunca me incutiram pensamentos que me fizessem reagir ou agir de certas formas. A percentagem de pessoas a que isso acontece é mínima. E se essa percentagem mínima for verídica (que pessoas reajam e tomem decisões violentas por ver um filme agressivo), e não causadas por outros componentes psicológicos já existentes que possam mexer connosco, a pessoa já está em ‘apuros’. Tudo isto é um tópico extremamente complicado.
Claro. É complexo definir o que é, que seja mesmo ‘culpa’ dos jogos. E deve ser variável, de qualquer maneira.
DV: É dificílimo. Se calhar uma pessoa cresceu num agregado familiar completamente instável. Ou com uma família que não fez o parental control de forma devida. E famílias “normais”, às vezes até profundamente aversivas, nem sempre prestam atenção a esse parental control necessário. Parece-me quase impossível existir o argumento sólido, ou que se possa eventualmente ter uma base digna para assumirmos que uma pessoa se torna violenta porque jogou muitos videojogos. Não sei se há empiricamente uma coligação direta entre uma coisa e outra; e muito há que indica que não… A questão é que, se és miúdo, muitas vezes repetes aquilo que vês num filme, ou num jogo, ou tentas copiar o que os teus amigos fazem e dizem, etc. Mas não situações estranhas. Falo de coisas ‘normais’. Ou seja, se um rapaz vê que num filme uma personagem luta com um vilão, fica o herói, e todos batem palmas, é depois capaz de assumir que pode confrontar um bully quando vê uma pessoa a ser maltratada na escola e ficar o herói da turma.
Não sei se há empiricamente uma coligação direta entre uma coisa e outra; e muito há que indica que não…
Sim. Estás a falar de situações mais controladas e não tão drásticas.
DV: E volto a reforçar, o parental control é extremamente importante em todas as vertentes em que é aplicável – não é só no gaming. Mas em jogos é cada vez mais indispensável, pelo menos como cuidado. O gaming tornou-se numa indústria cada vez maior, das maiores do mundo. Em vez de pensar em parental control como um problema, o gaming devia ser pensado como uma ferramenta que pode ser utilizada para o bem da sociedade. Se jogos têm assim tanto poder nos nossos jovens, há que saber usá-los na escola, na ciência, na política, e em prol da população. E jogos são, de facto, muito importantes. Muitos filmes e séries estão baseadas em jogos.
O parental control é extremamente importante em todas as vertentes em que é aplicável – não é só no gaming.
Sim, o Last of Us, por exemplo.
DV: Exato. E a indústria percebe que há um apego enorme da parte do público às histórias e às personagens. O God of War também vai ser adaptado pela Amazon. É um sucesso gigantesco e não é à toa que isto acontece. A PlayStation é da Sony, e a Sony tem o seu próprio estúdio. Portanto, faz sentido que jogos e filmes estejam intimamente ligados. Se um jogo está a bater recordes, transformá-lo numa série ou filme é um passo óbvio a dar. E o Last of Us, a série, é shot for shot do jogo.
Fizeram-no exatamente devido ao sucesso estrondoso do jogo, claro.
DV: E muita gente fica admirada quando descobre que criar o Last of Us 2, foi um balúrdio. E eu não sei como é que ficam chocadas com os números. A verdade é que fazer um jogo é muito mais caro do que fazer um filme. É preciso ter atores na mesma, e tudo o resto tem de ser criado. Quando estamos a jogar, estamos completamente enfiados naquele universo. Só o trabalho nos gráficos é gigantesco e requer investimentos enormes.
Uma indústria com tanto poder, que chega a ser ativamente debatida e tida em consideração em conversas e/ou decisões políticas. Acabámos por falar, ainda que superficialmente, sobre o lado ‘bom’ e o lado ‘mau’ da indústria. Mas então, e durante a pandemia, em que estar online era o nosso único escape?
DV: Durante a pandemia, aconteceu uma coisa muito interessante. Mais uma vez com o Call of Duty, no meu caso. Para mim, era raro jogar online até então. Mas, durante a quarentena, senti que jogar com os meus amigos era, foi, fantástico. De repente estava toda a gente em casa, sem saber o que fazer, e durante dois meses senti que estava com os meus amigos todas as noites. Foi a minha maneira de ser social. Claro que não foi a minha única maneira de o ser – tinha a noção que não podia ficar sentado o dia todo, com os meus headphones, a jogar.
Durante a quarentena, senti que jogar com os meus amigos era, foi, fantástico.
Claro. Era um momento ‘normal’ no meio de uma fase tão estranha para todos nós.
DV: Essas noites, para mim, eram inacreditáveis. Todos os dias, a partir das sete da tarde, começávamos a juntarmo-nos online, como o faríamos num café ‘na vida real’. Éramos mais de 20 pessoas, e falávamos sobre política, jogávamos, riamo-nos juntos, etc. É só agora, olhando para trás, que percebo o bom e importante que isso foi para mim. Sem esses períodos, muitos de nós provavelmente não teríamos acabado a quarentena da mesma forma que a tínhamos começado. Associar-me com amigos em jogos foi uma ajuda inacreditável. Se foi para mim e para os meus amigos, tornou-se também importante para outras mais pessoas com certeza. Não só pelo componente social dos jogos.
E essa é apenas uma das vertentes positivas dos jogos.
DV: Sim. Pessoas com dificuldades cognitivas, ou num espectro autista, por exemplo, são muitas vezes equacionadas, no sentido de tomadas em linha de conta, quando se criam jogos. Há que pensar em triggers visuais e auditivos, etc. E os jogos têm cada vez mais essa preocupação. No Last of Us, os criadores do jogo tiveram o cuidado de o adaptarem para aqueles que têm dificuldades motoras ou necessidades específicas de acessibilidade. Um streamer conhecido, que tem algumas dessas dificuldades, mostra-nos que consegue jogar com as indicações especiais que os criadores do jogo desenharam para aqueles que estão na posição dele. A indústria preocupa-se com os gamers e em garantir que os jogos são o mais acessíveis possível.
Criadores de jogos têm o cuidado de os adaptarem para aqueles que têm dificuldades motoras ou necessidades específicas de acessibilidade.
E ajudam a que haja outro boom na tecnologia.
DV: Exatamente – a tecnologia dá saltos enormes. Até os militares usam comandos de gaming para operações deles. São comandos fáceis de manusear e ajudam a obter reações mais rápidas. O tempo de resposta dos militares fica mais eficaz e expedito, e o tempo de treino é mais curto. Aprende-se a desenvolver uma enorme destreza motora. O campo da medicina é outro, que muito tem vindo a ganhar com a indústria dos videojogos.
DV: É preciso precisão. Existem campeonatos mundiais do Call of Duty e de Counter Strike, com prémios com valores nos milhões. A precisão quase cirúrgica dos jogadores profissionais é assustadora. São jogos de alta competição. Exigem imensa concentração e imensos cálculos.
Achas que estas ideias de violência em jovens que jogam videojogos (e o facto destes debates até terem chegado ao Congresso, nos Estados Unidos) podem estar a ser usadas politicamente, como ‘desculpa’ que visa justificar as políticas de acesso a armas, a menores de 18 anos, em partes dos EUA? Ou seja, com a narrativa de que a violência não são as armas, são os jogos?
DV: Acho que os jogos são usados como bode expiatório em debates do género, sim. E nota-se que as discussões são diferentes cá e lá. Na Europa, as preocupações são outras: o foco é maior nas microtransações, o dinheiro que se gasta ‘dentro’ do jogo. Muitas vezes compra-se um jogo e, depois de o fazer, apercebemo-nos que para passar de nível ou conseguir ter certas coisas no jogo, é preciso gastar mais dinheiro no jogo em si – mesmo depois de adquirido, surgem upgrades…
DV: Também já aconteceu pais deixarem os filhos jogarem jogos online (no telemóvel ou de outra forma) e não se apercebem que o jogo está conectado ao cartão bancário deles. As crianças compram coisas nos jogos e os pais só o notam depois de já terem gastado imenso dinheiro. Voltamos aqui ao parental control, que é essencial. Até porque responsabilizar um miúdo de 18 anos por ter usado o cartão dos pais para comprar itens num jogo, é muito diferente de responsabilizar uma criança de 7 anos! Um carece de mais controlo do que o outro.
Achas, portanto, que tanto na Europa e nos Estados Unidos, o parental control foi, no fundo, uma das soluções para o problema da violência entre os mais novos? Protegia os mais novos e os mais velhos, simultaneamente.
DV: Sim. E claro que ajuda saber que em Portugal não se pode comprar uma AK-47 num supermercado. E não é porque os jogos tornem os mais novos violentos. É porque aqueles que não têm adultos responsáveis que controlam o que eles consumem, ou que tenham outros fatores externos (e internos) a influenciar as decisões deles, são os que realmente estão mais expostos a esses comportamentos violentos. Nem tão pouco acho que os jogos normalizem a violência.
E antes mencionaste o já estarmos expostos a cenas violentas nas notícias, por exemplo.
DV: Sim. Há anos que vemos imagens violentas na televisão. Essas sim, imagens verdadeiras. Agora e antigamente. A Guerra do Golfo foi transmitida na televisão. Em televisão nacional e em horário nobre, por causa da diferença de horas: os ataques noturnos de lá, eram cá à hora do jantar e logo depois. Não foram jogos de desenhos animados. Assistimos diariamente a atrocidades de magnitudes gigantes.
Assistimos diariamente a atrocidades de magnitudes gigantes.
E diferenças culturais?
DV: Acho muito importante falar sobre isso. A indústria de gaming está a crescer imenso na Europa, mas as grandes produtoras de jogos são o Japão e os Estados Unidos. A Xbox é norte-americana, a PlayStation no Japão tem jogos que só saem lá; de facto, os jogos e a cultura de gaming é diferente nestes sítios todos. E claro que o são: eu próprio só posso falar da experiência que tenho em Portugal. Comecei a jogar quando começaram a sair as consolas, por isso não joguei muito em arcadas. Mas, nos Estados Unidos, antes das consolas, já existia de tudo. Já era uma indústria de milhões, com arcadas imaginadas só para jogos. Uma arcada só de Street Fighter, era só para jogar Street Fighter. Era uma loucura total. E o dinheiro que se fazia com as máquinas era imenso – despertava nas pessoas os seus lados mais competitivos.
DV: Para não falar que só chegam à Europa e aos EUA, os jogos que se sabe que vão vender cá. Ou seja, há jogos japoneses que são só comercializados no Japão. A dimensão do gaming nestes três continentes é diferente, historicamente. Antes era preciso comprar os jogos físicos, mas hoje podemos comprar jogos em formato digital. Esta facilidade é o que nos tem permitido expandir a indústria cá, na Europa.
E só mais recentemente estamos perante o aparecimento dos streamers.
DV: Exatamente, é recente. Não é uma área que eu domine, porque não faço streaming quando jogo, mas tenho alguns amigos que o fazem. E são altamente dedicados a isso. Mas é incrível pensar que eu jogo para não pensar em trabalho, e que jogar é o trabalho deles. Ironicamente, pergunto-lhes o que é que eles fazem quando não estão a trabalhar! E, verdade seja dita, os criadores de conteúdo em Portugal, os que são efetivamente bons são ‘maltratados’, marginalizados. A Twitch permite coisas que não fazem sentido, e streamers que são dedicados a gaming muitas vezes são banidos. Os gamers muitas vezes são postos no mesmo ‘saco’ que outras contas que usam a plataforma para razões distintas. A falta de controlo da Twitch em controlar o conteúdo que por lá circula, estraga um pouco a imagem do que verdadeiramente é o gaming. Várias são as parcerias que se perdem pela imagem geral das plataformas, junto ao público. Voltámos aqui à necessidade de um controlo mais apertado, mas desta vez por parte da plataforma.
Não faço streaming, mas tenho amigos que o fazem. É incrível pensar que eu jogo para não pensar em trabalho, e que jogar é o trabalho deles.
O que está em causa é então a atribuição de responsabilidades, então, como de resto é o caso em muitos outros contextos. Pensamentos finais sobre gaming e violência nas gerações mais novas?
DV: Prestem atenção ao que ouvem e investiguem sobre o assunto antes de tirarem conclusões precipitadas sobre videojogos. Tentem perceber porque é que os mais novos (por exemplo, filhos menores de idade) jogam o que jogam, ou reagem como reagem. Não julguem e não condenem sem ter a certeza. Arriscar usar gaming como ‘desculpa’ para comportamentos descabidos, pode dificultar e ‘esconder’ a verdadeira razão por trás de tais atitudes violentas.
Arriscar usar gaming como ‘desculpa’ para comportamentos descabidos, pode dificultar e ‘esconder’ a verdadeira razão por trás de tais atitudes violentas.