Artur Jorge junta dois mundos aparentemente inconciliáveis: o futebol e a arte.
O antigo futebolista e treinador de futebol é um dos coleccionadores mais conhecidos em Portugal. Há largos anos que mantém, num espaço reservado e protegido, obras de artistas modernos e contemporâneos tão eclécticos como Sonia Delaunay, Matisse, Picabia, Cabrita Reis, Almada, Cesariny.
À FORBES, o ex-seleccionador nacional explica que as compras não foram motivadas pelo investimento.
Colecciona porque, segundo diz, “gosto de ter objectos bonitos à minha volta. Livros, quadros, escultura, cerâmica; como toda a gente, creio eu.” E, de facto, vai mantendo a maior parte das obras e vai desfrutando delas, com marcado orgulho e afecto.
À semelhança do conhecido treinador, milhares de coleccionadores e investidores – milionários ou não – alimentam um mercado de milhões que é movido, para uns, por amor à beleza e, para outros, por possíveis retornos financeiros que possam vir a obter no futuro.
Segundo o estudo TEFAF 2016, produzido anualmente pela European Fine Art Foundation, as vendas de obras de arte totalizaram 63,8 mil milhões de dólares (cerca de 56 mil milhões de euros a preços correntes) em 2015 no mundo inteiro – uma queda, contudo, face ao valor recorde de 68,2 mil milhões de dólares (cerca de 60 mil milhões de euros) registado em 2014.
Para se perceber a dimensão do crescimento, em 2005, o mercado estava apenas perto de chegar aos 36 mil milhões de dólares, e desde 2011 apenas por uma ocasião (em 2015) registou uma queda.
Para se aconselhar nas compras de obras de arte, Artur Jorge revela que falava com galeristas e amigos, além de ler regularmente as revistas da especialidade. Não confiava nos comerciantes de arte, já que estes “queriam ‘impingir-me’ coisas a metro, porque sabiam que eu era um coleccionador quase compulsivo”, recorda.
Lembra-se de compras emblemáticas: “um óleo do António Dacosta”, hoje na colecção do Centro de Arte Moderna, “e mais recentemente, seis desenhos a tinta-da-china do Amadeo de Souza-Cardoso, actualmente emprestados ao Museu do Chiado”.
Com o passar dos anos, e porque o espaço disponível não estica, Artur Jorge teve de se desfazer de parte da sua colecção. Algumas obras foram leiloadas em 2010 na leiloeira Christie’s, em Londres, no Reino Unido. O encaixe total foi superior a 1,5 milhões de euros, segundo as notícias publicadas à época.
A peça-estrela foi a escultura “Éponge” (Esponja), do artista francês Yves Klein, arrematada à época por 253 mil euros. É esta obra que Artur Jorge identifica como sendo uma das que mais o marcou e que acabou por comprar, a par de “uma pequena obra de Pollock, que pensava nunca poder vir a ter”, recorda.
Para carteiras exclusivas
Quem compra arte é, na maior parte das vezes, gente que tem bastante dinheiro.
O mercado vive assim dos chamados “1%”, das pessoas mais ricas do mundo, com rendimentos que lhes permitem investir fortemente neste tipo de activos. São indivíduos com liquidez e atraídos pelo estatuto social que o coleccionismo confere. Segundo o estudo TEFAF 2016, a maior parte dos coleccionadores de arte tem rendimentos anuais acima dos 100 mil euros.
Em 2000, eram 217 milhões as pessoas que faziam parte deste segmento. Em 2014, eram 408 milhões. Não admira que o mercado esteja a viver uma época de grande dinamismo e a bater recordes em leilões.
Para aproveitar a pujança do mercado mundial, a conhecida feira de arte ARCO, de Madrid, apostou na internacionalização com uma primeira lança na capital do país vizinho. No final de Maio, arrancou a ARCOLisboa, feira que decorreu durante três dias, em Lisboa, com a presença de 45 galerias portuguesas e estrangeiras.
Segundo Carlos Urroz, director da ARCO, a ideia de expandir para Lisboa “já vinha de 2011”, mas a crise económica acabou por adiar esses planos.
Hoje, a ARCO procurou testar o mercado português, sem feiras de arte regulares, mas com um considerável grupo de investidores e galeristas interessados em entrar no universo de um dos eventos da área mais importantes do género na Europa.
Foi na ARCOLisboa, entre desenhos e pinturas, que encontrámos João Esteves de Oliveira, galerista desde 2002, com um espaço em nome próprio depois de ter feito carreira durante décadas na banca.
Saído do Banco Comercial Português na década de 1990, resolveu investir numa das suas paixões: obras sobre papel, uma disciplina artística que “muitos consideravam menor”, recorda.
Foi na sua galeria, situada na Rua Ivens, no Chiado, na cidade de Lisboa, que o reencontrámos para conversar acerca do mercado da arte. Sobre a sua presença na ARCOLisboa, diz que vendeu bem – e tem o mesmo feedback de outros galeristas.
Quem foi à Cordoaria Nacional, no passado mês de Maio, corresponde ao perfil médio do comprador de arte português: “pessoas com relativa cultura, algum desafogo material, com preocupações intelectuais” e “sensibilidade que as leva a gostarem de estar rodeadas por desenho, pintura, escultura”.
E também, diz, são “pessoas que gostam de mostrar que sabem o que se está a passar” no mundo da arte. Falamos, no fundo, de gente que sabe comprar.
Um jogo sem árbitro
Luiz Teixeira de Freitas é um coleccionador de arte apaixonado. Advogado da sociedade Teixeira de Freitas, Rodrigues & Associados, de origem brasileira sediado em Lisboa, é, contudo, bastante abrasivo nas suas críticas ao estado actual dos mercados da arte.
Numa conferência do International Committee for Museums and Collections of Modern Art (CIMAM), no Qatar, na qual foi orador em 2014, disse que “os únicos mercados totalmente não-regulados [além do mercado da arte] são ilegais, como o das drogas, tráfico de armas, de pessoas e de órgãos”.
Até os mercados da pornografia e jogo on-line são mais regulados do que o da arte, disse na altura. Quando contactado pela FORBES, apresentou imediatamente as suas condições: se quiséssemos falar de arte como investimento, que não contássemos com ele.
A colecção de obras de arte que construiu em mais de quatro décadas é fruto de uma paixão – e não suporta ouvir falar de arte como uma commodity. Conhecedor do mercado da arte de forma profunda, é alguém que não se importa de falar das grandes distorções que o caracterizam hoje.
Segundo Luiz, o sistema é assente na seguinte estrutura: o artista cria e recorre a um galerista para comercializar e promover as suas obras de arte. Hoje em dia, há mais gente a fazer arte, há mais galerias, a concorrência é maior.
Cria-se, assim, uma perversão na própria origem. “Há uma pressão sobre o artista para que este produza obras de arte. Ele é, de certa maneira. pressionado, ou ele mesmo tem interesse, em produzir. Acabou essa pureza de pensar que o artista é alguém que só cria quando tem alguma vontade de se expressar.”
O que faz com que o mercado esteja a ser, segundo o coleccionador, invadido por obras sem qualquer valor artístico – simulacros de arte. “Não é difícil de imaginar que mais de 90% do que hoje se vende como arte, daqui a 20, 30 anos todos já esqueceram. Vai ser jogado no lixo.”
O coleccionador recorda que este mercado é profundamente desregulado, que não protege quem compra. Não há uma entidade que garanta o cumprimento das regras, como existe no mercado accionista com a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).
E dá exemplos da falta de ética que grassa no meio, apontando a promiscuidade entre galerias e museus públicos.
Luiz aponta o dedo a galerias que financiam exposições em museus públicos “que vão [por sua vez] legitimar o artista que ele vai mostrar”, ou responsáveis de instituições públicas que, “no dia seguinte, sem quarentena, vão trabalhar em instituições privadas com toda a informação que trazem lá de dentro”, como a programação e o programa de aquisições do museu.
Basta pensar no que seria se um dirigente de um banco central ou responsável do governo da área das finanças se demitisse para trabalhar imediatamente a seguir num banco privado para perceber a “promiscuidade” do mercado da arte. Se houvesse as mesmas leis que se aplicam aos mercados financeiros no mercado da arte “estariam todos presos”, sublinha.
A ligação entre o mercado da arte e práticas ilícitas foi recentemente explorada, a título de exemplo, aquando da revelação dos chamados Papéis do Panamá, que puseram a descoberto esquemas de lavagem de dinheiro através da compra e venda de obras de arte como a utilização de empresas offshore para ocultar a propriedade de obras de arte obtidas por meios ilícitos.
A arte de saber adquirir
Tanto um investidor inveterado que vê um quadro ou uma escultura como um investimento, como um amante do objecto artístico, têm em conta o valor da obra e o seu potencial de valorização futuros. Afinal, ninguém quer perder dinheiro.
E João Esteves de Oliveira diz que, ao comprar, uma das regras que se deve seguir é nunca adquirir nada só porque é “giro” e “barato”, sob pena de se comprar “gato por lebre”, ou ser vítima de fraudes artísticas.
Contudo, sublinha que é possível fazer bons investimentos com 500, 600 euros, mesmo de artistas consagrados.
A melhor forma de não ser enganado e realizar um bom investimento (artístico e também financeiro) passa por fazer o trabalho de casa.
João recomenda a visita a muitas exposições em instituições públicas e privadas, ler muito sobre o tema, investigar e aconselhar-se junto de quem percebe, como um bom galerista, por exemplo – mas nota que estes podem ter “uma visão um pouco enviesada”, porque têm tendência a promover os artistas que trabalham consigo, admite.
Porém, é importante não esquecer que mesmo fazendo tudo bem e segundo as “regras”, nada garante a valorização futura da obra de arte. “Isso nunca está garantido”, refere Adelaide Duarte, especialista em Museologia e investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa.
Adelaide refere que por mais que um investidor novato se cultive, calcorreie galerias e museus por esse mundo fora e se aconselhe com os melhores, há variáveis que lhe escapam: “[O mercado da arte] funciona por mecanismos que não são exclusivamente a qualidade artística”, diz.
“Também pesam a capacidade de promover um artista junto do público, questões de gosto, de moda, e até técnicas, com a pintura a ser ainda a escolha preferida dos coleccionadores”, acrescenta.
Por mais fundamentadas que sejam as escolhas, nunca está assegurada a valorização futura. Também artistas que nunca criaram expectativas elevadas podem, em dado momento, valorizar-se.
“O imponderável faz parte deste processo”, sentencia Adelaide. Na verdade, não é nada diferente do que acontece em outros activos, como as acções.
Na arte, como em tudo, é preciso saber assumir riscos.