“A igualdade é a nossa origem, é o nosso destino comum. Nascemos e morremos exactamente da mesma maneira, independentemente de como teremos vivido as nossas vidas e das opções que tivermos feito. E o que sugiro é concentrarmo-nos naquilo em que somos iguais, e não nas pequenas ou grandes diferenciações que ao longo da história nós fomos construindo e que de certa maneira cristalizámos.” Graça Machel dixit. Em tom pausado, sereno e… firme. Quase como uma verdade absoluta. Afinal, ela é uma das maiores activistas africanas de direitos humanos, uma destacada líder política e uma das cem pessoas mais influentes do mundo.
E, no entanto, a sua simplicidade é desarmante numa entrevista em que a sua visão para África não deixou margem para dúvidas. Educação. Igualdade de género e luta contra a pobreza. Mas para tal não há fórmulas mágicas, há um caminho que tem de ser perseguido e que deve ter por base uma premissa simples: os recursos do continente devem servir para melhorar a vida dos africanos: “Nós temos matérias-primas, negoceiem com quem quer usar os nossos recursos de forma a que os transformem aqui, beneficiem em primeira mão os africanos, e só depois exportem. O que está a acontecer é que nós exportamos tudo, e depois compramos manufacturados num valor 5 a 10 vezes superior, e por isso nunca temos dinheiro. As nossas economias não cresceram e não crescem por culpa nossa.” Esta não é uma história recente. Sempre foi assim. “Não há dúvida alguma de que a culpa é dos governos sucessivos, não estou a apontar só para os actuais, que não têm sabido valorizar os recursos que temos no continente de maneira a negociar a nosso favor. Impor as nossas prioridades, impor a nossa vontade, porque os recursos são nossos.”
Segundo relatório das Nações Unidas, o continente africano continua a enfrentar um aumento do nível da dívida pública e uma redução do crescimento económico, sendo crucial neste momento haver liquidez para enfrentar reformas sérias já previstas, assim como os inesperados efeitos nefastos da pandemia que “veio expor diversas tragédias que temos no nosso continente. Umas mais expressivas, outras mais silenciosas. Mas a pandemia acelerou de tal forma, que não era possível aceitá-las como silenciosas”, refere a líder africana. “Para onde caminha África? Temos de aproveitar a crise e fazer dela uma oportunidade para repensar linhas fundamentais do continente africano. Essa é a resposta curta. É uma crise que nos obriga a fazer dela uma oportunidade de repensar o que já vinha acontecendo, mas que agora já é tão gritante, que já não podemos ignorar. E aproveitar para atacar as causas dos nossos problemas, e não os sintomas.”
A educação e a pobreza
O FMI projecta que o número de pessoas na África Subsariana que vivem na pobreza extrema tenha aumentado em mais de 32 milhões em 2020; o número de dias de instrução perdidos é mais do que quatro vezes superior ao das economias avançadas, e o emprego caiu cerca de 8,5% em 2020. Em termos de padrões de vida, o rendimento per capita retornou aos níveis de 2013. Um quadro que Graça Machel comenta: “Temos no continente índices inaceitáveis de pobreza para largos, bem largos, milhões de africanos. Temos sistemas de educação em que, embora se tenham expandido para as crianças se inscreverem, elas aprendem muito pouco. Saem do ensino primário sem os conhecimentos básicos exigidos pelos currículos aprovados. Temos sistemas de saúde que marginalizam milhões dos nossos cidadãos. E temos economias que mais e mais se informatizam. Em vez de trazer a economia informal para o formal, o informal desce cada vez mais. Milhões de jovens que saem das nossas universidades não só não têm emprego como não têm as capacidades para eles próprios iniciarem a sua actividade económica, tornarem-se empreendedores e resolverem os básicos problemas de uma vida digna.” O conhecimento enquanto principal instrumento para a igualdade falha redondamente, pelo que urge a reformulação dos sistemas de ensino, que “continuam a formar e a conduzir pessoas de acordo com as necessidades do mercado do século XX″.
Ministra da Educação e da Cultura de Moçambique (1975-1989), a primeira do país, a Graça Machel se deve o aumento exponencial das matrículas no ensino primário, de 40% para 90% no caso dos meninos, e para 75% no caso das raparigas. Na sequência desta sua proactividade, foi indicada pelo secretário-geral da ONU Boutros Boutros-Ghali como especialista independente para realizar uma avaliação do impacto do conflito armado nas crianças, documento apresentado em 1996 e até hoje considerado um guia para países em situações de conflito. Volvidas mais de duas décadas, o tema da educação mantém-se como prioridade, mas Graça Machel não considera que o problema esteja nos pequenos orçamentos públicos: “Em boa verdade, os países africanos têm feito investimento significativo na educação. Mas os sistemas não são efectivos. Há muito desperdício escolar. Muita desistência. Crianças que estão na escola mas aprendem pouco. O investimento financeiro está lá, mas o resultado não compensa, porque a qualidade do ensino, dos professores e das infra-estruturas escolares não permite melhores resultados.”
O impacto da pandemia
Outra tragédia silenciosa que a pandemia veio provocar e de que Graça Machel fala é a da saúde. “Muitos dos nossos países são independentes há mais de 40 anos, e a crise da pandemia fez-nos acordar para a realidade de que nenhum está a produzir vacinas, e por isso estamos à mercê de os mais desenvolvidos decidirem quando e como vão disponibilizar que vacina para África.” Neste sentido, a repercussão da pandemia foi positiva: “Estamos a correr e a dizer que já não é possível esta dependência, e já se está a olhar para países africanos que estão mais perto em termos de capacidade para produção. Suponhamos que não tinha existido a pandemia. Atacar os problemas de raiz não é dizer que o G20 e o G7 devem facultar vacinas para nós. Atacar o problema de raiz é termos de produzir vacinas para os africanos, procurar mobilizar a capacidade humana que temos e atrair investimento para sermos nós a produzir e decidir que vacinas, para quem e como as distribuir.”
Quando deixa o palco político em 1996, Graça Machel continua a sua cruzada social fora da esfera partidária. “Logo que saí da política, iniciei a Fundação e decidi continuar a contribuir para o desenvolvimento do meu país. Criei a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade, que tem um foco local grande ao nível das aldeias, e o seu maior feito foi abrir caminho para outras organizações não governamentais se instalarem no país. Temos tido uma intervenção incisiva na promoção dos direitos das mulheres. Promovemos a rapariga na educação, incentivamos a criar os seus próprios negócios, é uma intervenção mais virada para grupos organizados, e neles focamo-nos nas mulheres e, mais recentemente, nos adolescentes.”
Já a Graça Machel Trust foi criada em 2010 em Joanesburgo, actua ao nível do continente, onde está presente em 13 países, e lidera acções de inclusão financeira.
“Funcionamos com redes de mulheres na área das finanças. Damos treinamento para fazerem crescer o seu negócio, e olhamos para as potencialidades de certos países em promover negócios de que as mulheres possam tirar maior partido. As nossas redes têm sido muito activas na procura de oportunidades que ampliem o número de mulheres que façam negócio formal. Porque o informal funciona por si próprio. Procuramos engajar governos e bancos centrais para que as mulheres penetrem nos negócios. Por exemplo, que 30% do procurement nas obras deveriam ser prioritariamente entregues às mulheres. Temos de fazer um lobby activo que obrigue os governos a aceitar no papel que vai sair do papel para os orçamentos e dali para a concretização de negócios para as mulheres.”
Graça Machel integra ainda os Elders, organização fundada por Nelson Mandela em 2007 e em que líderes globais se unem em prol da paz e dos direitos humanos: “Nós, os Elders, tratamos de assuntos globais, o reforço do multilateralismo, o combate à fragmentação da raça humana em pequenos grupos, o reforço de instituições que facilitam o negócio, que lutam pela protecção do planeta, e em todas as causas envolvemos jovens a trabalhar connosco. Os jovens não são um grupo separado. Identificamos organizações juvenis para trabalharem connosco. Os jovens têm de se apropriar das causas dos senhores de cabelos brancos e continuarem, pois o presente e o futuro lhes pertencem.”
Graça Machel foi capa da revista número 3 da Forbes África Lusófona.