Professora, investigadora e autora do aclamado livro, Clothing the Colony: Nineteenth-century Philippine Sartorial Culture, 1820-1896, a filipina-chinesa Stephanie Marie Coo tem sido a recipiente de vários prémios internacionais que a destacam no mundo académico e literário.
Em 2021, o seu livro foi reconhecido como o ‘Melhor Livro de Humanidades em Língua Inglesa’, no Mundo, com o prémio International Book Prize 2021 (IIAS-ICAS), atribuído pela Universidade de Leiden e por um consórcio de sessenta Universidades de todos os continentes. No concurso global, que contou com 497 entradas sobre o tema ‘Humanidades’, o livro de Stephanie começou por ser o único de toda a Ásia a ser nomeado e shortlisted. Rapidamente, foi considerado o vencedor do concurso e o melhor no Mundo. Em 2022, Clothing the Colony, foi também o vencedor do 39th National Book Award e do John C. Kaw Prize, ambos nas Filipinas, tendo sindo considerado o melhor livro de História dos dois anos anteriores, 2019 e 2020. Devido à pandemia, estes últimos foram-lhe atribuídos apenas no ano passado.
Internacionalmente reconhecida como pioneira em estudos sobre Sartorial History da sociedade colonial filipina, Stephanie tem um doutoramento em História, atribuído pela prestigiada Université Nice Sophia Antipolis, em França, com a mais alta distinção do sistema universitário francês. Já o seu pós-doutoramento – que começou por ser financiado pela Comissão da União Europeia que a agraciou com o título de Marie Curie Postdoctoral Fellow – fê-lo na Universidade de Granada, em Espanha, numa parceria com a Universidade Nova de Lisboa. As Fellowships Marie Curie são das mais prestigiadas da Europa.
A FORBES teve a oportunidade de falar com Stephanie, que atualmente reside em Lisboa, onde está a levar a cabo a sua mais recente investigação, apoiada por uma bolsa de seis anos que lhe foi atribuída (em concurso público e internacional), pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) portuguesa. Em primeira-mão avançou-nos que vai publicar mais dois livros, já em 2024, e lançar uma quarta monografia em 2025 ou 2026. Esta última, confidenciou-nos, será um estudo comparativo da roupa colonial, também como uma expansão da cultura material colonial dos séculos XIX e XX, nas Filipinas, em Espanha e Portugal. Com o apoio e sob a supervisão de um académico português, Stephanie vai assim escrutinar essa dimensão da nossa História, que considera riquíssima.
Em exclusivo, Stephanie contou-nos como tudo começou. Das suas raízes chinesas ao papel atual da sua família na cidade de Bacolod, na ilha de Negros, que pertence ao arquipélago central das Ilhas Filipinas. Stephanie é neta de veteranos Wha-chi (as Forças de Guerrilha Filipino-Chinesas Antijaponesas), que lutaram pelas Filipinas juntamente com os norte-americanos, durante a Segunda Guerra Mundial. Falámos, entre outras coisas, sobre a educação jesuíta católico-chinesa de Stephanie, dos negócios e fortuna da sua família, no interesse que têm quanto à filantropia e desporto, e nas ‘mecânicas de sucesso’ que encara como um legado dos seus antepassados. De origem chinesa, Stephanie orgulha-se de ter nascido cidadã filipina.
Stephanie, o seu percurso académico é de louvar. Mas gostava de voltar um pouco atrás e de falarmos sobre como tudo começou. Sei que a história da sua família e as suas raízes são por si consideradas como muitíssimo importantes.
Stephanie Coo (SC): Claro. Na verdade, eu própria sou um produto da história colonial. O meu bisavô era chinês e mudou-se para as Filipinas quando muito novo. Depois, fez fortuna na indústria de ferragens. É interessante, porque, ainda hoje, a China continua a ter uma posição muito forte na economia e até mesmo na política das Filipinas. Aliás, 60% da economia do país é controlada pelos 2% da população chinesa que lá vive. Na altura em que o meu bisavô decidiu emigrar, estavam sob um governo colonial norte-americano e, nesse período (que terminou em 1946 com a independência das Filipinas), a prosperidade do país era outra – tal como, de resto, a demografia, que desde então tem tido um crescimento explosivo.
SC: Foi em 1903 que os meus bisavós chegaram ao arquipélago filipino. Numa época conturbada como a de então, muitos eram os chineses que tinham uma ‘mentalidade de peregrinação’ (localmente apelidada ‘sojourning mentality’): não fazia parte do plano estabelecerem-se de maneira permanente nas Filipinas ou em qualquer outro espaço do Sudeste Asiático. O foco era fazer dinheiro e voltar à China. Mas eu pertenço a uma família Filipino-Chinesa de uma terceira geração – tendo já sobrinhos de quarta geração.
Apesar dessa propensão de peregrino, o seu bisavô decidiu ficar nas Filipinas.
SC: Sim. Mas, antes de o fazer definitivamente, construiu uma casa com 64 quartos (em 1931), na China, para a nossa família. O que é interessante e demonstra como os chineses pensam num futuro para mais de oito gerações – daí os 64 quartos. Como a casa foi construída no litoral, perto do mar e à vista de navios, foi destruída duas vezes. Durante a Segunda Guerra Mundial, depois dos japoneses a terem ocupado, e, mais tarde, durante a Revolução Cultural que tanto assolou a China. A destruição da casa da minha família foi metódica e persistente: como havia falta de ferro no país, removeram-no todo da nossa casa!
Hoje em dia a sua família, agora nas Filipinas, está muito focada em filantropia.
SC: É verdade! Principalmente na indústria dos fogos e na do desporto: duas áreas muito distintas. Há um interesse particular em basketball, confesso. É um desporto muitíssimo popular nas Filipinas que em muito se deve à influência histórica norte-americana no país; uma história colonial que durou de 1898 a 1946. Vivemos como que numa espécie de “fusão multicultural”. Para complicar as coisas, os uniformes que a minha família usa, nos jogos, têm caracteres chineses!
Sim, é uma família multicultural com influências de vários países e da história dos mesmos.
SC: É verdade. A minha família já está nas Filipinas há quatro gerações, com casamentos interculturais, etc. Apesar de sermos chineses de origem, hoje considero que a minha nacionalidade e identidade também é filipina. Sou multicultural e, sim, com várias influências de todos os tipos. Por exemplo, a escola em que estudei, St. John’s Institute, nas Filipinas, é dirigida por padres chineses católicos! E o início da minha carreira académica teve lugar numa universidade também jesuíta: a Ateneo de Manila University. Todos estes aspetos moldaram esta minha diversa identidade.
E em que parte das Filipinas vivem?
SC: Em Negros, uma ilha que pertence às Visayas. A minha família vive no lado ocidental da mesma. Negros tem uma cultura única, é uma ilha muito fecunda e cultivada, sendo conhecida pelas suas plantações de açúcar. Até tem a reputação de ser um sítio onde ‘se escava dinheiro do solo’. Como a terra é muito fértil, esta é uma piada local recorrente. Os responsáveis pelas plantações na ilha são os chamados gentleman farmers; os hacenderos. Gostam de manter os seus terrenos limpos e são muito organizados – o que não é fácil, estamos a falar de vários hectares.
E esses terrenos devem pertencer a uma mão cheia de clãs familiares, certo?
SC: Exatamente. Diria que são cerca de uma dezena de famílias as que são donas da maioria dos terrenos, dos latifúndios. Historicamente, os chineses não têm o costume de ser proprietários de terra; pertencem a uma classe que se considera como mercantil. O objetivo era mais o de comercializar bens. Acho que ter propriedades terrenas extensas é muito europeu. Muitas das famílias que as têm, nas Filipinas, são de origem espanhola e francesa.
O ter propriedades terrenas extensas é muito europeu. Muitas das famílias que as têm, nas Filipinas, são de origem espanhola e francesa.
E a sua família, depois do seu bisavô, já trabalhou nas mais variadas indústrias.
SC: Sim! O meu avô, por exemplo, trabalhava na indústria do cinema. Não a fazer filmes, mas a gerir salas de cinema. Acabou por, de certa forma, introduzir o film marketing na ilha. Lembro-me que vestia o staff com roupa que aludia aos filmes que estavam a passar nos cinemas dele, e que alugava carrinhas para publicitá-los fora da cidade. Fez com que o cinema chegasse a províncias nos arredores da ilha de Negros. E, para ajudar o negócio, essas carrinhas traziam e levavam de volta a casa os clientes das localidades mais remotas. Apenas deixámos de trabalhar nessa indústria quando apareceram os Centros Comerciais. O panorama do mercado mudou.
SC: Hoje, a geração que está no business do açúcar, também se vê envolvida noutras indústrias. O nosso papel é o da distribuição de mercadorias. Há muito comércio porque o arquipélago central das Filipinas é composto por 7100 de ilhas (embora o número dependa das marés), e os produtos têm de sair, fazer transbordos, aportar, ir para centrais, etc.
Segundo me contou, o seu bisavô tinha feito fortuna, mas o seu avô, filho dele, cresceu sem esta.
SC: Sim. O meu bisavô morreu aos 42 anos, muito novo. Tinha a tal casa de 64 quartos, na China, mas de facto vivia nas Filipinas, por causa dos negócios. Quando morreu, abruptamente, e apesar do plano da família sempre ter sido idealizado como o de um eventual regresso para a China, a família do meu avô quis permanecer nas Filipinas. Sentiam que o país já era a casa deles; e, na verdade, tinham crescido lá. Mais ainda, os negócios estavam na ilha, os amigos deles vivam lá, etc. Mas como o meu bisavô morreu muito novo e a minha bisavó não sabia como gerir os negócios dele, perderam tudo o que tinham, ou assim pensaram; trinta anos depois recuperaram os documentos da propriedade. A minha bisavó era da geração que tinha os chamados ‘pés de lótus’. Aliás, ela própria tinha os pés deformados. Eram tempos diferentes.
A minha bisavó era da geração que tinha os chamados ‘pés de lótus’.
E foi o seu avô quem voltou a reconstruir tudo, depois de um ‘episódio místico’…
SC: Exatamente. Ele e a minha avó eram Chinese Guerrillas que lutaram com os norte-americanos, na Segunda Guerra Mundial, em prol das Filipinas, contra os japoneses que a tinham invadido e conquistado aos norte-americanos. Ainda hoje, vou às reuniões da Whachi Veterans Descendants Association Inc. E, quando se casaram, já em adultos, não tinham muito dinheiro.
SC: O meu avô sabia que não tinha dinheiro nenhum e um amigo dele convidou-o a ir falar com uma fortune teller. Ele brincou com o amigo e disse-lhe que nem para isso tinha dinheiro! Já tinham dois filhos. O amigo lá o convenceu e foram juntos. Quando disse à mulher, com toda a sua honestidade, que não podia pagar, ela disse-lhe para não se preocupar: se as previsões dela se tornassem verdade, ele que voltasse e lhe pagasse então o dobro! A vidente disse-lhe, ao meu Avô, que sabia que ele iria conseguir construir as casas que quisesse com todo o dinheiro que ia fazer, em menos de dois anos. Mais de uma casa por semana, se assim tencionasse! Claro que ele ignorou e se esqueceu desta ‘previsão’ feita pela mulher.
O meu avô sabia que não tinha dinheiro nenhum e um amigo dele convidou-o a ir falar com uma fortune teller.
Mas…
SC: Mas, pouco tempo depois, surgiu a oportunidade de se juntar ao tal negócio das casas de cinema! Os então donos pediram-lhe que ficasse como manager das mesmas, de imediato. Um dos primeiros entendimentos dele, quando o negócio atingiu muito sucesso, foi, claro, o de ir falar logo outra vez com a fortune teller. Queria contar-lhe o que tinha acontecido! De facto, em menos de dois anos, tinha feito imenso dinheiro. Mas, quando tentou voltar descobriu que ela já tinha morrido… E ele, que já estava preparado para lhe pagar o triplo do que lhe devia, ficou desolado!
Quer tivesse acreditado, ou não, na previsão dela, eu própria também teria lá voltado – nem que fosse pela diversão ou o absurdo da situação! Mas e os irmãos do seu avô?
SC: Durante a Segunda Guerra Mundial, o irmão mais novo do meu avô tinha já voltado para a China. Verdade seja dita, foi torturado durante a Grande Revolução Cultural Proletária, pela Camarilha dos Quatro de Jiang Qing. Posteriormente, ganhou destaque como um alto funcionário do governo, responsável pelo Turismo, Comunicação e Transportes, em Pequim. Reformou-se em 1991 e foi o Chairman do China Travel Service que mais tempo esteve nesse cargo (1985-1994). O meu avô e este irmão dele não se viram durante 30 anos!
O seu avô nunca quis voltar para a China? A Stephanie vai lá muitas vezes?
SC: Sim, vou à China com muita frequência. Quando o meu avô era vivo, ia com ele muitas vezes para verificar o andar das coisas nas propriedades da família. Desde do começo da pandemia que lá não vou; outros membros da família fazem-no. E os descendentes da família Filipina que originalmente foi contratada para cuidar da casa ainda o fazem.
SC: Na China, sou da província de Fujian. Muitos dos chineses nas Filipinas, são aí provenientes. Em casa, em Negros, falamos num dialeto chinês chamado hokkien; não falamos muito mandarim. Aliás, falamos uma combinação de hokkien, ilonggo e inglês. Ilonggo é considerada uma ‘língua obscura’ local, que apenas se fala em duas das ilhas nas Visayas. A sua versão mais formal chama-se hiligaynon. Em Negros não se fala muito o tagalog, uma língua vernacular de Manila.
Ensinam hokkien e ilonggo às novas gerações mais novas, para as preservar?
SC: Sim. Claro que não consigo escrever textos académicos nas línguas, pois não sou fluente nelas; apenas as uso para conversas. Em boa verdade, aprendi hokkien ao mesmo tempo que aprendi o Mandarim, na escola católica chinesa que referi no início. Mesmo assim, na prática, acabamos sempre por misturar as três línguas.
O que é compreensível. E diga-me, quando é que a sua família entrou no mundo da filantropia, nas Filipinas?
SC: Quando foi decidido fundar a Amity Fire Brigade; a minha família fê-lo com amigos, e o meu avô era o Presidente, até morrer. Têm vários voluntários e amigos a trabalhar com eles, e ajudam os bombeiros ‘oficiais’ da cidade. Têm o seu próprio equipamento, uniformes de bombeiros e carrinhas próprias. Agora já expandiram para ‘resgates’ em casos de incêndios, também. Trata-se de um voluntariado ativo, com a participação constante de todos: quer em financiamento, quer em assistência direta quando há fogos. O contacto da brigada é o equivalente local do 911, nos Estados Unidos. Fazemo-lo sempre em prol da cidade.
Tradições confucionistas?
SC: Claramente: “tudo o que fizeres, fá-lo com sinceridade”. É-nos muito importante que assim seja. Há que pensar no greater good, na sociedade como um todo. Atualmente, acho que a opinião sobre ter legado chinês está muito polarizada. Mas acredito que quanto mais ao passado se for, mais fácil fica perceber as boas intenções comunitárias por trás dos nossos ideais. Paz era central.
“Tudo o que fizeres, fá-lo com sinceridade”. É-nos muito importante que assim seja. Há que pensar no greater good, na sociedade como um todo.
SC: Embora seja católica, também pratico o culto dos meus antepassados. Rezo a Guan Gong, o deus chinês da guerra, dos negócios, e da literatura. Cá em Portugal, vou todos os domingos à Igreja de Santo António de Lisboa; e, uma vez por ano, visito um dos locais de peregrinação, como Fátima. Um àparte: o Menino Jesus de Praga “muda” de roupa, e usa piña, uma fibra feita a partir das folhas do ananás, tradicional das Filipinas.
Há que ter um bom compasso moral… São essas as linhas pelas quais a sua família se cose?
SC: Diria que por sinceridade e humildade. A minha família nunca quis que sentíssemos que as coisas nos são dadas de bandeja. Aliás, é normal dizer-se que “a primeira geração ganha dinheiro, a segunda trabalha por ele, a terceira esbanja-o”. O meu avô deu-nos apenas as ‘sementes’ necessárias, levando-nos a crescer sozinhos.
A mecânica do vosso sucesso parece ser a de constante (re)adaptação às circunstâncias em que se encontram. Uma classe mercantil que rapidamente se tem adaptado às mudanças no mercado. E a trabalhar em diversas frontes.
SC: Isso mesmo! Sem nunca dar às gerações seguintes mais do que apenas as ‘sementes’ necessárias. Quando o meu avô deixou de trabalhar na indústria do cinema, veio a geração a seguir, que começou a ter as plantações de açúcar, a trabalhar no setor de distribuição de aperitivos, açúcar, etc. Foram edificando armazéns e restaurantes, por exemplo. Não parámos.
E o interesse em desporto? Como surgiu? Está relacionado com alguma filosofia de balanço, de equilíbrio, de trabalho de equipa, e/ou ter estratégia?
SC: Está! É exatamente isso mesmo. Pensamos todos muito no papel do desporto em manter um balanço, um equilíbrio, entre o mental e o físico. Faz-nos bem, ajuda-nos a pensar de forma clara. Até para a nossa vida pessoal, o desporto é-nos muito importante. Eu própria, cá em Portugal (como fiz em Espanha e na França), vou ao ginásio nadar para pensar melhor, raciocinar com clareza, e para chegar a essa limpidez de pensamento.
E quando estudou, já na Universidade, também fazia desporto.
SC: É verdade. Estava na Ateneo Rifle Pistol Team, a equipa oficial da Ateneo de Manila University. Sempre quis fazer tiro porque se trata de um desporto de precisão e a solo, embora sempre dentro de um contexto de equipa. Gosto de ter independência e autonomia dentro de uma equipa. Mas a grande razão porque me juntei à mesma, foi… porque gostava dos casacos deles! Queria muito conseguir os tão ambicionados Varsity Jackets, da Adidas. Não se podia comprá-los, era preciso merecê-los. Desporto influenciou-me muito, ainda hoje tendo a focar-me na minha própria corrida, fico na minha pista, e esqueço-me da competição.
Uma história engraçada e de persistência: aprendeu a disparar o suficiente para entrar na equipa, entra e fica com o casaco, e ainda fica qualificada. Mas, voltando atrás, e sem perder o nosso fio condutor, qual o papel dos jesuítas na sua vida?
SC: Sempre estudei numa escola chinesa católica, da qual o meu avô foi um dos fundadores. Toda a minha família passou e passa por essa escola; e um tio meu foi Presidente da Board of Trustees da mesma. Foi lá que entrei (e ganhei!) competições de caligrafia e oratória. Depois das aulas propriamente ditas, tinha lições de ballet, arte, declamação, oração, etiqueta… Era uma criança muito ocupada.
SC: Mais, a Universidade onde andei, na qual perfiz a licenciatura e o mestrado, é privada e dirigida por jesuítas. Foi com eles que aprendi que dinheiro não é tudo, nem o é o talento. É uma combinação das nossas aptidões, são os laços familiares, o apoio, a educação, cultura, os círculos sociais… Não é a ‘largura de banda’ da nossa rede de contatos que interessa, aquilo que conta, no fim, é a profundidade dos mesmos. Educação é capital. Ser ‘rico’ não é só ‘ter dinheiro’. Também me incentivaram à excelência, a conseguir ser líder num sentido pleno, a abrir novos trilhos e a ser agente de mudança.
Não é a ‘largura de banda’ da nossa rede de contatos que interessa, aquilo que conta, no fim, é a profundidade dos mesmos. Educação é capital. Ser ‘rico’ não é só ‘ter dinheiro’.
E é uma Universidade muito concorrida.
SC: É verdade. Num país com mais de 100 milhões de habitantes, tentam ‘atrair’ só os 1% melhores alunos do ensino secundário. Julgo que recebem cerca de 40 mil candidaturas para 1500-2000 vagas. É muito prestigiada pela excelente educação que oferece, e está muito virada para o desporto. Foi-me essencial sair da minha ilha, Negros. Ajudou-me a ‘compor’ uma identidade própria.
E deve ter sido interessante sair de uma ‘bolha’ e ir para a capital, Manila. Mas também vem com a sua dose de discriminação. A dicotomia existe um pouco por todo o lado…
SC: Completamente. Viva numa residência de estudantes com famílias parecidas com as minhas, muitas das quais também vinham de províncias. Os outros estudantes, que eram da capital, viam-nos de uma maneira muito diferente. Erámos os ‘do campo’, os ‘não cosmopolitas’. Estávamos numa cidade nova, sem acesso direto aos recursos a que estávamos habituados. Assumiam muitas vezes que éramos pouco internacionais ou viajados. Mas a verdade é que sempre evitávamos ir a Manila (o trânsito é notoriamente horrível) – preferíamos ir a Hong Kong. O regional era, na verdade, o global.
SC: Nas primeiras duas semanas chorava todos os dias com saudades de casa. Pedi à minha família para estudar em Negros, mas não me deixaram por o Ateneo ser uma universidade de topo. Só o meu avô deixou, dizendo-me que só podia voltar depois do primeiro semestre, que já estava pago. Claro que ele sabia que, quando chegasse essa altura, já ia eu estar ajustada e com novos amigos.
O regional era, na verdade, o global.
A Stephanie vinha de um sítio “muito fértil”, onde “se desenterrava dinheiro do chão”, mas, esse pensamento (ou piada), sugere que muitos pensam que é uma ilha com um estilo de vida mais laidback.
SC: Muitas pessoas da capital assumem o mesmo. Sem ser uma mansão, chamada The Ruins, em Negros (construída por empresário, da indústria do açúcar, em honra à sua mulher portuguesa, Maria Braga), não existem muitos pontos turísticos na ilha. Negros é mais conhecido pela sua gastronomia, com um lifestyle ‘gentil’ e de muito alta qualidade.
SC: O rumor parece-me estar ligado à indústria do açúcar. A natureza das indústrias na ilha é de trabalho árduo, mas sazonal: plantámos e esperamos que cresça. E é um negócio muito volátil, influenciado pelo mercado global. Vivemos num mundo fast-paced (em que tudo tem de acontecer rápido), e estar numa indústria em que esperar é essencial, exige de nós um slow-living.
SC: As Filipinas são o segundo maior produtor de açúcar no Sudeste Asiático. Mas é uma espécie de trabalho sazonal, que, na verdade, às vezes se vê refletida na nossa personalidade. Gosto de trabalhar smart, não querendo isto dizer que não trabalhe hard, apenas que ajusto a minha produtividade às estações do ano. Para mim, aproveitar o processo é a melhor maneira de alcançar o que quer que seja.
Claro. Voltando agora à sua educação: estudou, em Manila, para a sua licenciatura e mestrado. E o doutoramento?
SC: Sim. Fiz uma licenciatura em Gestão, e um mestrado em História, ambos em Manila. Enquanto estudava para o meu mestrado dava aulas, em paralelo, em História Ocidental e História Asiática. Entre os dois, fui um ano para a China para aprender mais sobre a minha herança cultural. Estudei Language and Culture, em Pequim. Já o meu doutoramento foi em História, também, em França.
SC: Venho de uma família de empreendedores, e fui a única que decidiu enveredar por uma carreira académica. Os outros decidiram-se por graus universitários de Gestão ou Engenharia. Mas o meu background em negócios contribuiu muito para aquilo que escrevi, especialmente no que toca à distribuição de bens e no contexto de História Económica.
E como é que começou o interesse em roupa?
SC: A minha avó colecionava têxteis para os oferecer às futuras noivas dos seus cinco filhos. É uma tradição chinesa, chamada Ting Hun (em hokkien). Mas, sempre chegava a altura de o oferecer, já os tecidos não estavam na moda. Por isso as noivas já não os queriam. Como tínhamos costureiras in-house, e porque a roupa sempre foi importante para a nossa família, decidi ficar eu com os tecidos! Além disso, quando acabei o meu mestrado e antes do meu doutoramento, estive três anos a ir e a voltar frequentemente à Tunísia, para pintar e entrar mais no mundo das artes. Com toda esta inspiração, peguei nos tecidos e roupas da minha avó, e criei novas versões e roupas com uns e outras! Sempre tive queda para a coisa e o valor sentimental e cultural das peças sempre mexeu comigo. Chamo-lhe ter uma wearable inheritance.
O seu livro, Clothing the Colony, é baseado no seu douturamento. Doutoramento que terminou com Summa cum Laude.
SC: Sim. O meu doutoramento tinha um título diferente, claro, e estava marcado por uma prosa académica, comme il faut. Escrevi-o num estilo muito francês porque, para apreender sobre roupa, a história de fashion, a economia – que inclui aspetos morais, sociais, etc. – e toda a tradição por trás do que é visto apenas como uma peça de roupa, há que saber ser-se sensível ao escrever sobre o assunto. Comparado com a minha tese, o livro que escrevi é muito mais curto, mais fácil de ler; trata-se de uma versão mais comercial. A capa foi desenhada pelo premiado designer, Felix Mago Miguel. E o livro foi publicado pela editora Ateneo de Manila University Press, com a lendária Karina Bolasco, como Diretora.
SC: O meu interesse em roupa é genuíno, assim como o é o poder por trás das várias peças. Simbolizam e são, em parte, uma consequência da História. Relações de poder, reflexões de passados diversos, economias morais, a distribuição das roupas, etc. Para lidar com mais de 20 mil imagens e textos, usei técnicas de classificação, utilizadas em genética, aplicadas ao meu estudo de roupa colonial.
Porque é que quis escrever sobre a roupa das colónias? Um tópico que a levou um pouco por todo o mundo.
SC: Um amigo meu, o Randolph de Jesus, que era um brilhante historiador jovem, aconselhou-me a escrever sobre o tema porque nunca ninguém o tinha feito desta maneira. Ele tinha apenas 33 anos, foi meu colega na Universidade. Foi ele que me deu os meus primeiros materiais de investigação. Deu-me um álbum de desenhos de roupa tradicional filipina. Infelizmente, no meu último ano de doutoramento, esse meu querido amigo morreu…
SC: Já durante o mesmo, tinha perdido o meu irmão Winston, a minha mãe Liza, e o meu Avô Guillermo. Um depois do outro. Quando consegui chegar às Filipinas, já todos tinham sido cremados. Foram anos complicados. Foi quando acabei o meu doutoramento, que decidi voltar às Filipinas para dar aulas na Ateneo de Manila University. Fui feita Presidente do Comité para a Internacionalização e comecei a visitar várias Universidades por aí fora: sempre a prestar atenção ao que vestia, e ajustando o meu vestuário ao contexto e à cultura que visitava.
Foi assim que decidiu fazer o seu postdoc na Universidad de Granada, e que foi convencida a candidatar-se para, e a conseguir, a Marie Curie Postdoctoral Fellowship – que tem uma taxa de sucesso abaixo dos 10%…
SC: Exatamente. Espanha têm uma história colonial que me interessa para a minha investigação. Candidatei-me para a Maria Curie Postdoctoral Fellowship, com sucesso. Foi um programa de três anos. Tive acesso a imenso material, em arquivos europeus, sobre o país em que nasci, dos séculos XIX e XX. O meu projeto teve o apoio do Programa de Investigação e Inovação, do projeto Horizonte 2020, da União Europeia (num acordo chamado Athenea3i, que a minha Fellowship oferece em parceria com o Research and Knowledge Transfer Fund, da Universidad de Granada).
SC: Para o meu projeto, queria supervisores de Espanha e outros Filipinistas. Em Granada, estive no Departamento de História de Arte, e a minha supervisora era a Dr. Ana Ruiz Gutiérrez, que escreveu um livro notável sobre El Galeon de Manila (os galeões que iam e vinham do México a Manila, atravessando o Pacífico, durante o período espanhol).
SC: Também consultei um Professor francês, Prof. Xavier Huetz de Lemps, que tinha sido meu supervisor de doutoramento, em França, e que escreveu um livro sobre corrupção nas Filipinas, nos tempos coloniais. E, claro, um Professor português, o Professor Armando Marques Guedes, Catedrático de Direito que escreveu e defendeu o seu doutoramento sobre agrupamentos de caçadores-recolectores nas florestas tropicais das highlands, do extremo norte das Filipinas. Tenho a intenção de com ele escrever um outro livro. Com os três juntos, sinto que tive uma combinação perfeita de supervisores; todos muito estimados Filipinistas.
Quando esteve em Granada, Espanha, acabou por apanhar a pandemia. Mas, quanto sei, esteve entretida com basquetebol.
SC: Sim! Inspirada na ligação da minha família ao desporto, assisti a muitos discursos dos jogadores no Hall of Fame! É muito interessante e aprendi imenso sobre a importância de saber dominar o campo. Acho que todos podemos aprender com isso – não a dominar um court de basquetebol, mas a dominar os nossos próprios campos. Todos os jogadores tinham uma mentalidade de vencedores e achei-o muito inspirador. Acaba por ser sobre leadership e consistência – não se chega ao Hall of Fame sem uma ética de trabalho forte e consistente. Volto a dizer, há uma ligação muito grande entre o nosso corpo e ter clareza mental: a chamada inteligência corporal-cinestética.
Agora, e a viver em Portugal, muito do seu trabalho vai ser as colónias portuguesas, também. Aliás, e em exclusivo para a FORBES, conta-nos que se prepara para lançar um segundo livro.
SC: Exatamente. Já terminei o meu postdoc, em Espanha. O meu foco, agora, é na Península Ibérica. Estou a preparar um estudo comparativo entre os trajes coloniais (e sobre cultura material, num sentido mais genérico) nas Filipinas, e de umas poucas das antigas colónias portuguesas. Ainda estou a decidir se quero escolher Goa ou Macau. Para o fazer, terei de estudar a dinâmica de cada uma, individualmente, e depois pô-las em relação umas às todas. Faço-o com uma bolsa, de 6 anos, da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).
SC: Posso avançar que sim, que vou lançar um segundo e terceiro livro. Aproveito para adiantar, também e em primeira-mão, que o meu quarto livro será sobre Portugal e a minha investigação atual. Ou seja, dois livros novos em 2024 e, o meu quarto, em 2025 ou 2026.
Posso avançar que sim, que vou lançar um segundo e terceiro livro. Aproveito para adiantar, também e em primeira-mão, que o meu quarto livro será sobre Portugal e a minha investigação atual. Ou seja, dois livros novos em 2024 e, o meu quarto, em 2025 ou 2026.
Entretanto, noto que há um trend seu, que em muito me faz pensar no da sua família: o refrão de se adaptar rapidamente a novos países, culturas, experiências…
SC: É verdade. E estou sempre a tentar diversificar os meus estudos e áreas de interesse. Ao mesmo tempo que escrevo os meus livros, cá em Lisboa, estou a ter aulas de Geopolítica, na Universidade Nova de Lisboa, na NOVA School of Law, com o meu supervisor português. E colaboro com várias pessoas, em arte, teatro e filmes, de modo a garantir que as roupas que usam nas obras deles são, de facto, as da época. Também faz parte do meu papel ter uma relação forte com várias Embaixadas e/ou diplomatas. As Embaixadas têm, por norma, um programa cultural de diplomacia, a que costumo ter ligações pela via do meu trabalho académico. Sempre com um foco na dimensão internacional do mesmo.
SC: A minha fácil adaptação a novos países e culturas é, também, devida ao meu percurso internacional, desde cedo. Fui educada em Manila, Pequim e Nice; vivi na Tunísia; vivi e trabalhei em Espanha, na Alemanha, e, agora, em Portugal. Também já dei aulas na África do Sul, na Coreia do Sul, Singapura, nos Países Baixos, entre outros sítios.
Claro. Por fim, quais são os projetos futuros?
SC: Filantropia, escrever mais, produzir mais conhecimento… contribuir com o que sei e estou a aprender, para desenvolver mais trabalho original. Não quero repetir o que já foi dito, quero descobrir coisas novas. E quero, acima de tudo, usar o meu trabalho para despertar e manter a curiosidade entre todos nós. Vou escrever, como lhe disse, um terceiro livro sobre cultura material; não só sobre roupa, mas vários outros tópicos. As várias coleções de pinturas (das diferentes épocas) que as famílias tinham, os objetos e as coisas que traziam consigo nas suas viagens, etc.
SC: Conduzir esta investigação, em Portugal, é muito enlightening. A Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, tem sido muito atenciosa comigo e ajudam-me a ter acesso ao material de que preciso. Continuo a trabalhar com o meu supervisor português, o Professor Armando Marques Guedes e, mais episodicamente, com o Professor Pedro Cardim. Em termos de contatos e apoio administrativo, também a Universidade Nova tem sido impecável comigo. Portugal tem um excelente país neste aspeto. Como as Filipinas são um arquipélago, tenho muito a aprender com a riquíssima história marítima de Portugal.