Quando se conheceram em Londres, a portuguesa Francisca Meneses e a alemã Ina Koelln souberam de imediato que estava a nascer uma grande amizade. Mas foi preciso uma viagem a Freiburg, na Alemanha, terra natal de Ina, para que a amizade se transformasse também em sociedade.
Na cabeça das duas amigas, de 29 e 30 anos, respectivamente, germinou então a ideia de trazer para Portugal as tradicionais salsichas alemãs num formato de mobilidade. A combinação das duas culturas sente-se até no nome: em 2014 nasceu a Maria Wurst e começou a aventura de Ina e Francisca na street food.
“Os portugueses são exigentes com o que comem. Querem pratos deliciosos, baratos e de qualidade e já se renderam à street food”, diz à FORBES Francisca, que se despediu de um trabalho por conta de outrem para abraçar este projecto. “O nosso orgulho são as nossas salsichas: feitas à mão por um talhante alemão, com carnes DOP de uma herdade alentejana”, diz a empreendedora. Actualmente, a Maria Wurst conta com um carro em funcionamento e outro a ser desenvolvido.
Até 2014, os negócios associados à street food, vulgarmente conhecida como venda ambulante de comida, praticamente não existiam. Eram raras as excepções, diz Luís Rato, presidente da Associação Street Food Portugal (ASFP) e da Kiosque Street Food, a fábrica responsável pela transformação dos food trucks e desenvolvimento dos conceitos (ver caixa). “O sector começou a crescer depois do primeiro evento, o Festival Europeu de Street Food, em Abril de 2015”.
Hoje, Luís avalia o negócio em 7 milhões de euros e estima um crescimento de dois dígitos face a 2015, quando a facturação global em Portugal foi de 2,5 milhões de euros. O presidente da ASFP acredita que, no médio prazo, o negócio valerá 30 milhões de euros, até porque todos os meses chegam à sua fábrica do Cartaxo 200 pedidos de consulta. “Só 10% a 15% destes têm seguimento e são transformados em negócio”, revela.
São valores auspiciosos, mas que fica abaixo do que já se vê lá fora. Na Bélgica, por exemplo, a street food representa já um negócio de 30 milhões de euros, e nos EUA, bastião do sector, a street food tem crescido a um ritmo médio anual de 12,4% no último quinquénio, movimentando mais de 1,2 mil milhões de euros.
A ASFP tem actualmente 50 membros, desde empresários em nome individual a marcas já implementadas, como a Brasileira do Chiado ou a Panidor, o maior franchisado com 15 carros de bolas de Berlim e pastéis de nata. “O conceito consolidou-se com o programa ‘Chakall e Pulga’.
Em 2010 estávamos numa feira, a Alimentária, e o chef Chakall estava lá com a mota Piaggio Ape 50 que já tinha um fogão. Fui ter com ele e disse-lhe que gostava de fazer uma mota diferente para o projecto dele. Ele achou boa ideia e assim fizemos”, conta Luís.
José Borralho, vice-presidente da ASFP e presidente da Associação Portuguesa de Culinária e Economia (APCE) lembra que “a street food como oferta estruturada tem apenas dois anos e segundo os dados que temos cresceu no último ano 391%, ou seja, passámos de cerca de 55 negócios para 270 à data de hoje”.
O responsável aponta o espírito empreendedor, a mobilidade para viajar entre eventos, a rapidez no retorno do investimento e ainda o crescimento do turismo como factores que potenciam a aposta neste negócio. Em motas Piaggio ou em atrelados, os empresários vão alargando o seu negócio. Fonte oficial da Piaggio admite à FORBES que as vendas das motorizadas usadas pelo chef Chakall aumentaram, “especialmente entre 2014 e 2015”. O ano passado o impacto foi de 5% na facturação da Piaggio em Portugal e os modelos mais procurados são a “Ape clássico, por ser o modelo mais vintage, ou o Ape 50, porque reduz o valor do investimento”.
O investimento médio dos empresários, pelas contas da ASFP, ronda os 20 mil euros na transformação do food truck, a que depois acrescem os custos de seguros, licenciamento, energia, combustível, estruturas de apoios, inscrições em eventos e os custos habituais de exploração do negócio. Tudo somado, a factura pode atingir os 35 mil euros. Não é um valor muito elevado, sobretudo se as previsões da APCE, que apontam para a continuação de um crescimento de 20% do sector, se concretizarem.
Os espinhos do negócio
O crescimento do sector nos últimos anos tem exigido criatividade aos empresários. Para vingar neste meio é, cada vez mais, necessária uma boa dose de autenticidade. O conceito do negócio revela-se assim essencial para vingar na street food. Quem o diz é Boris Arruda, fundador da Lambreta. “O nosso projecto é de crepes gourmet.
Inspirámo-nos nas ruas de Paris para criar uma receita original francesa com um toque nosso e os recheios são uma fusão dos sabores e vivências dos lugares por onde passámos”, explica o empreendedor. Boris e a sócia, Sofia, são tripulantes de bordo e mantêm a sua profissão. À FORBES revelam que a possibilidade de viajar trouxe ideias para implementar no negócio dos crepes. Lançaram-se em Dezembro de 2014 e não têm um ponto fixo. “Fazemos eventos pontualmente e o investimento inicial foi entre 20 mil a 25 mil euros.”
As dificuldades na obtenção de licenças para ter um food truck estacionado na via pública levam a que alguns empresários estejam apenas em eventos privados. Outros já conseguiram ultrapassar as dificuldades burocráticas. É o caso da Chamo’s Hot Dog, do venezuelano Lucas Lopes, engenheiro civil de formação e filho de pai madeirense (que se mudou com a família para Portugal em 2014), tem a sua food truck fixa em frente ao El Corte Inglès, em Lisboa. José explica que “o decreto-lei que rege a venda ambulante onde a street food se encaixa é de 1979 e está completamente desfasado da realidade actual”.
Mas o principal problema está mesmo no poder local, responsável pelo licenciamento, na subjectividade de apreciação das autarquias ou Juntas de Freguesia, “já que não existem critérios definidos se não os da própria interpretação de cada autarca”, refere José. Essa realidade faz com que, muitas vezes, seja praticamente impossível conseguir uma licença. No entanto, o presidente da APCE salienta que, nos últimos meses, tem tentando reverter esse pensamento junto de muitos autarcas, tendo inclusive começado a ter já alguns resultados. No entanto, salienta que essa mudança “levará algum tempo”.
Para a exploração de um negócio de street food são necessários dois procedimentos distintos: um que permite o acesso à actividade de vendedor ambulante e outro destinado à ocupação do espaço público. O primeiro procedimento é automático e o segundo é da competência dos municípios. Fonte oficial do Ministério da Economia revela que “o regime jurídico de acesso e exercício de actividades de comércio, serviços e restauração foi aprovado e entrou em vigor apenas em 2015, encontrando-se o Ministério da Economia a acompanhar a sua aplicação e execução”, pelo que ainda há trabalho a fazer nesse sentido.
Questionada sobre o impacto económico desta tendência, a mesma fonte diz que “a rápida adesão às novas tendências e a aceitação do mercado aos novos modelos de negócio revela dinamismo económico e abertura à inovação, com ganhos efectivos para a economia do país, um factor fundamental para a atractividade dos centros históricos, com sinergias muito positivas, por exemplo, para o comércio tradicional”.
Saturação do mercado
O crescimento da street food em Portugal nos últimos anos poderia ser encarado como um potencial foco de fricção com os empresários da restauração. Porém, nada disso se concretizou. Pelo menos ao nível do que ainda hoje assistimos entre os taxistas e a Uber, em Lisboa e no Porto.
Parte da “amistosidade” entre os donos dos restaurantes e os empresários de street food ocorre por a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) considerar o negócio complementar ao da restauração. “Esta nova tendência veio trazer um novo enquadramento de dignidade ao mercado”, diz Mário Pereira Gonçalves, presidente da AHRESP. Contudo, não deixa de salientar que, “infelizmente, ainda prevalecem e proliferam as roulottes de comes e bebes, que não são mais do que uma inaceitável concorrência desleal.
A diferenciação positiva que o street food está a trazer ao mercado é vital porque tem como alvo várias ofertas gastronómicas.” Para Mário, o principal desafio é a diferenciação e lidar com a “concorrência desleal” das roulottes, procurando ultrapassar as questões de “reconhecimento legal, sobretudo por parte das autarquias.”
Apesar do bom momento que atravessa a street food por todo o país, está longe de ter a capacidade de oferta da restauração tradicional.
Contudo, é importante criar limites. Isto é, não se pode dar, por exemplo, uma licença para gelados quando num raio de 200 metros existem geladarias. E, neste ponto, o licenciador é fulcral para o bem-estar da indústria. É nesse sentido que José Botelho, da ASFP, salienta a necessidade de “haver bom senso na atribuição da licença”. Mas não só. Para os empresários, a diferenciação da oferta é essencial para a sustentabilidade do negócio, sobretudo nos eventos de street food, que agregam dezenas de pontos de venda.
André Ferreira, da The Wrepe, que oferece produtos saudáveis e biológicos, critica o excesso de concorrência. “Os promotores já perceberam que é uma boa fonte de receitas e muitas vezes há um excesso de conceitos para o número de pessoas presentes”, diz. José Sapeira, do La Boca, de grelhados argentinos, refere que “algumas organizações falham estrondosamente na estruturação dos eventos”, seja por inexperiência, repetição e exagero de determinados conceitos, falta de divulgação ou programação cultural. “Muitas vezes temos a inviabilidade da venda de bebidas, o que baixa substancialmente a nossa facturação”, exemplifica.
Os casos de ruptura de stock nestes eventos não são raros, deixando transparecer algumas falhas no planeamento.
Francisca Meneses queixa-se da falta de condições dadas pelos organizadores. A Maria Wurst só está em festivais e eventos privados. “Este ano escolhemos muito bem onde vamos, para apostar no nosso público-alvo porque há muitos players a perder dinheiro em eventos”, refere. Boris Arruda, da Lambreta, diz que “há um aproveitamento por parte das organizações de eventos que pedem valores demasiado exagerados” na inscrição.
André Ferreira vai mais longe e diz mesmo que “este ano ficou provado que 90% dos eventos só de street food não correram bem para ninguém. Só quem se conseguir adaptar às novas regras de mercado vai conseguir manter-se”, avisa.
Mudança de paradigma
Todos os empresários contactados pela FORBES têm boas perspectivas para o seu negócio. Parte da estratégia de crescimento de muitos deles deverá passar por complementar os food trucks com um espaço físico. A Maria Wurst já arrancou com o seu plano de expansão, com um investimento global de 35 mil euros. “Saltámos da street food e abrimos uma loja que funciona em simultâneo com o food truck, num centro comercial. Estamos a desenvolver mais outra para chegar a outro tipo de público e outros locais e eventos, mais pequenos”, revela Francisca.
O salto da rua para espaços físicos é um caminho natural, e uma forma até de combater alguma da sazonalidade deste negócio, que vive do sol e do calor. Contudo, a crescente populariedade da street food gerou também um movimento contrário, com um crescimento significativo da restauração tradicional pela street food, como forma de promoção do restaurante ou até de individualizar uma ou outra oferta e promover o negócio.
É o caso da Brasileira do Chiado. João Silva é sócio do centenário café e investiu, a título individual, numa moto da Brasileira, estacionada no miradouro da Nossa Senhora do Monte, na Graça, em Lisboa. “Começou como um hobby e está a tornar-se num negócio, além de fazer publicidade à Brasileira”, explica. Para já, tem apenas uma mota em operação e outra a caminho, porque ainda não conseguiu ter o licenciamento necessário para o segundo food truck. Quanto ao negócio, corre lindamente: arrancou em Julho do ano passado e este ano espera dobrar a facturação. Percurso semelhante fez o The Wrepe, que surgiu do restaurante The Cru, de comida saudável, biológica, sem glúten e sem açúcar.
Criado por cinco sócios, o The Wrepe “é a extensão sobre rodas do The Cru”, situado num centro comercial. No segmento de street food têm três unidades e não prevêem, para já, reforçar o investimento de 120 mil euros no negócio. Há um ano na rua, a street food representa já 30% da facturação global, e face ao ano passado o crescimento foi de 20%.
O La Boca foi mais radical: com um conceito inspirado nas cores do Caminito, no bairro La Boca, em Buenos Aires, deixou de ter espaço fixo e saiu para a rua com carnes e empanadas argentinas.