Victor Hugo Cardinali é o proprietário do maior circo em Portugal e tem uma enorme responsabilidade: a de gerir uma empresa em movimento que, a qualquer deslize, pode tornar-se deficitária.
Quando a FORBES visitou o circo Cardinali, estava ele instalado no Rossio de São Brás da cidade alentejana de Évora, na orla da muralha da cidade. Nesse fim-de-semana, uma parafernália de carros, carrinhas, roulottes, tendas e camiões TIR preenchiam, como um puzzle, o recinto, perfeitamente organizados.
A tenda de circo como centro de gravidade, as instalações onde cavalos, lamas, póneis, entre outros animais pachorrentos, estavam logo atrás – o fluxo natural do estábulo para o palco, as caravanas em torno do camião principal, o do dono. Estava tudo organizado a pensar num funcionamento ágil.
É uma pequena aldeia móvel dedicada a trazer o maior espectáculo do mundo a todo o país. Um negócio cujas receitas provêm exclusivamente da bilheteira. Não têm patrocínios nem subsídios do Estado, contrariamente ao que acontece com as restantes artes do espectáculo em Portugal e em muitos países da Europa, onde fundos estatais subvencionam os espectáculos itinerantes. “Dependemos exclusivamente do público pagante”, diz Victor Hugo Cardinali, proprietário do circo com o mesmo nome, à FORBES.
“Este ano foi um ano fraco, e não é a primeira vez que me acontece”, diz Victor Hugo, muito devido às restrições que estão a ser impostas principalmente pelas câmaras, os principais interlocutores do Estado junto dos empresários do circo, muito mais do que a Administração Central.
“Dependemos exclusivamente do público pagante”, diz Victor Hugo Cardinali, proprietário do circo com o mesmo nome, à FORBES.
À entrada do seu circo estão as cancelas ainda fechadas e a bilheteira à espera de pessoas. Uma folha colada no vidro mostra os preços das entradas – entre os 15 e os 30 euros – com o aviso “se necessitar de factura com número de contribuinte tem de solicitar antes do pagamento do bilhete!”
A matinée, marcada para as 17h, estava em preparação: a equipa vestia-se e maquilhava-se a rigor, os animais eram escovados, o equipamento a postos. Pelas 16h30, começam a entrar as pessoas.
A bancada da frente enche, com mais algumas famílias, com crianças polvilhadas aqui e ali nas bancadas laterais. A casa estava composta, dentro do habitual, assegura Victor Hugo.
O espectáculo de duas horas iria começar: palhaços, trapezistas, cavalos, camelos, cães, póneis, três motards (e uma bola da morte) iriam entrar naquela pista circular para entreter o tal público pagante que vai financiando este espectáculo centenário. Por isso, os artistas não podem vacilar: o público tem de sair dali satisfeito, para que volte. “The show must go on”.
Por sobreviver apenas com o dinheiro da bilheteira – muito imprevisível – tem de fazer as escolhas certas quando decide a povoação para onde vai deslocar a sua aldeia. Sabe, pela experiência, que há zonas do país mais rentáveis do que outras, como o Norte e a cidade de Lisboa. E vai fazendo o seu percurso, depositando o destino do seu circo no público. “Pratico sempre o bom. Gosto do bom”, assume.
E em prol do bom gasta muito dinheiro. Na digressão normal montam uma tenda com capacidade máxima para 600 pessoas. “Mas nunca enche”, assume Victor Hugo. Só no espectáculo de Natal, em Lisboa, é que há a montagem de três tendas – sendo que a principal alberga perto de 3000 espectadores.
Assentam arraiais na capital durante o mês de Dezembro, onde fazem espectáculos para o público em geral e para empresas. Estas últimas são a maior fonte de financiamento do circo Cardinali.
Ao ponto de, quando alguns pontos da digressão falham em trazer as receitas esperadas, colmata o buraco financeiro com o “saco do Natal” – isto é, o dinheiro posto de lado no fim de Dezembro para eventuais situações de maior aperto.
O circo é um negócio que já viu melhores dias, e não só em Portugal, país com pouco poder de compra e de mercado pequeno. A mítica companhia norte-americana Ringling Bros., fundada em 1871, foi mudando de mãos nas últimas décadas (chegou a ser propriedade da empresa de brinquedos Mattel nos anos 1970) até à machadada final: a cortina caiu este ano, pondo fim a quase 150 anos de história.
Em Portugal, os circos estão resignados. Vão fazendo o seu negócio à mercê do interesse de um público que lhes dá de comer e de um Estado que nem sempre empatiza com esta actividade.
É um autêntico desafio de gestão, manter uma companhia saudável financeiramente enquanto se movimenta uma estrutura pesada pelo país, à procura de um público disposto a pagar para ver o que têm para oferecer.
Estado ausente mas controlador
A grande marca do circo contemporâneo é o Cirque du Soleil. Detida maioritariamente pelo conglomerado chinês Fosun – também proprietário da Fidelidade, da Luz Saúde e accionista do BCP – desde 2015, a companhia canadiana é uma máquina de fazer dinheiro.
Apesar de não revelarem dados sobre facturação, deverá ter ficado um pouco abaixo, segundo os dados mais recentes avançados por meios britânicos, dos mil milhões de euros em 2011.
Segundo informações fornecidas pelo Cirque à FORBES, em 2016, perto de 10 milhões de pessoas foram a espectáculos desta companhia. Os números que movimenta actualmente o Cirque du Soleil são de outro planeta. Mais ainda quando comparados com a realidade portuguesa.
Miguel Chen é o fundador do Circo Chen, outra das companhias mais conhecidas em Portugal. Continua a liderar, aos 78 anos, o projecto que fundou em 1981.
“O circo é o negócio mais mal organizado do mundo. Já lutei muito pelo circo em Portugal. Mas já não vale a pena. É lutar pelo impossível”, lamenta à FORBES na manhã em que a sua equipa montava a estrutura, preparando-se para três dias de espectáculo em Massamá, uma das zonas mais populosas do município de Sintra. “O que é que faz um artista? Não sabe fazer outra coisa, tem de fazer circo”, diz.
Miguel já está mais do que habituado às flutuações do negócio. Também está habituado à discricionariedade do Estado no tratamento desta actividade.
Em Portugal, os circos estão resignados. Vão fazendo o seu negócio à mercê do interesse de um público que lhes dá de comer e de um Estado que nem sempre empatiza com esta actividade.
Tinham uma pequena benesse, a isenção do Imposto Único de Circulação (IUC), por não estarem equiparados em termos de distâncias percorridas aos restantes proprietários de veículos pesados. Acabou em 2007, quando o Governo liderado por José Sócrates decidiu incluir as companhias no rol de entidades pagantes. “Fazemos 3 mil quilómetros por ano. Um TIR faz 5 mil numa semana. Até isso nos tiraram”, detalha Miguel.
“Pagamos todos os impostos e mais alguns”, lamenta. Além do IUC – que alcança as centenas de euros por pesado – pagam as licenças camarárias de recinto e de ruído, requerimentos para apreciação do projecto, as contas da água e da luz. Antes de começarem com o primeiro espectáculo, já estão a pagar centenas de euros.
As câmaras são o principal interlocutor do Estado com quem os circos têm uma relação constante. Tanto Victor Hugo como Miguel enviam um representante dos seus circos aos municípios escolhidos para tratarem das burocracias.
Como cada um está por si – isto é, sem regulação de uma entidade superior – os circos em Portugal podem ter o azar de solicitar espectáculos num mesmo sítio na mesma altura, o que esvazia a capacidade de atracção da companhia que vem depois. Além de terem de pagar as taxas exigidas aos espectáculos itinerantes, que variam de município para município, vêem-se obrigados a lidar com as idiossincrasias de quem trabalha em cada câmara. “Se quem está a atender no guichet da câmara é antipático, já não montamos o circo”, caricaturiza Miguel.
Este carácter itinerante do circo é uma das grandes incógnitas do negócio. Nunca sabem quanto vão facturar, ou se irão facturar o que quer que seja. Já sabem – sem grande sistematização, apenas baseados na experiência prévia – onde o público responde mais ao apelo do maior espectáculo do mundo. “O Norte é mais rentável. O Minho gosta de circo, por exemplo”, diz Victor Hugo.
Conta que foi para o Algarve este ano e arrependeu-se. “Para o ano já não vou. Temos de fugir dos sítios onde somos maltratados”, lamenta, aludindo à proibição que certos municípios da região com potencial de público, como o de Loulé, que impõem a circos com animais.
A grande bóia de salvação dos circos é a época natalícia, onde angariam dinheiro suficiente para colmatar eventuais falhas durante o ano seguinte.
O tal “saco do Natal” de Victor Hugo, com espectáculos contratados por empresas para os funcionários. O circo Cardinali já tem um conjunto fiel de clientes, como o banco BPI e a Autoeuropa, que lhes contrata espectáculos na quadra. São os mecenas do circo.
Os espectáculos contratados por Victor Hugo para 3000 pessoas podem significar um encaixe até 8 mil euros, o que resulta em pouco mais de 2 euros por cabeça, exemplifica. O Circo Chen tem também acordos com empresas, revela Miguel, com valores contratados a orçar entre os 2500 e 5 mil euros, também com um público a rondar as 3000 pessoas.
Nos tempos áureos, o Circo Chen fazia 30 espectáculos para empresas no Natal. Hoje, passar dos 10 é bom. E brinca: “Oitenta cêntimos para ir ao circo! É um café”.
Viver sem apoios
Ao contrário do que sucede em países com grande tradição circense, como Itália, Alemanha e França, em Portugal não há apoios estatais ao circo tradicional.
Em Itália, por exemplo, o Orçamento Geral do Estado consagrou 5 milhões de euros a apoios a circos e outros espectáculos itinerantes para 2017. Mas por cá, o circo tradicional não é contemplado nas linhas de apoio do Ministério da Cultura.
Contactado pela FORBES, o Ministério – que abriu este ano uma linha de apoio a projectos de circo contemporâneo e artes de rua no valor total de 1 milhão de euros – defende que o circo tradicional tem “uma dimensão estritamente comercial, regulada pela legislação específica para a prática circense tradicional, que não é contemplada enquanto critério de atribuição de apoios.”
Apoio estatal seria, no entanto, uma enorme ajuda para companhias de teatro mais pequenas, como a do Circo Dallas, naturalmente com menos meios. Só com a perda da isenção do IUC, tiveram de começar a reduzir a estrutura, entre vendas de veículos e penhoras do Fisco.
“Perdemos sete camiões. Temos só cinco agora, o mínimo para um circo funcionar”, revela Renato Alves, líder do Dallas, à FORBES. “Não temos apoios absolutamente nenhuns. Só para nós abrirmos a porta [numa localidade], gastamos mil e tal euros”, entre taxas, impostos, combustível. E nada garante que o público venha: “Há espectáculos em que só facturo 200 euros”, exemplifica.
Ou terras onde não aparece ninguém. Num documento de trabalho da Comissão Europeia que data de 2003 sobre o sector do circo nos Estados-Membros da União Europeia, o circo em Portugal era apresentado como uma actividade “em fase de declínio” e defendia que era “urgente que o Estado criasse todas as infra-estruturas necessárias (legais e financeiras) para proteger e promover esta forma de expressão cultural no país.”
Isto é, mecanismos de regulação e financiamento desta actividade. Contudo, ao contrário do que seria de esperar, tanto Victor Hugo, Miguel e Renato contentar-se-iam com um Estado menos burocrático e injusto. “Se eu tenho o que tenho sem subsídio, é prova evidente que o circo, quando tem qualidade e se faz com verdade, não precisa deles”, defende Victor Hugo.
Este Natal, o líder do circo Cardinali mantém a fasquia nos espectáculos que está a dar na capital na época natalícia. Victor Hugo convidou uma companhia de Pequim para fazer um espectáculo sobre o gelo. São 200 mil euros para pagar à companhia de 22 pessoas, que trouxe consigo equipamento especial da China para espectáculos que decorrem em duas pistas.
A lotação máxima é de 3 mil pessoas. Vai continuar a dar o mesmo tipo de espectáculo a todo o país “tal e qual como o que faço para o público de Lisboa”, defende Victor Hugo. Mas o circo dá lucro afinal?
“Tem de dar lucro. Para investir. Se não, o que é que eu ando aqui a fazer? Também não sei fazer mais nada…”. diz Victor Hugo. A aguentar até já não poderem mais.