A fachada branca com letras a vermelho carregado situada na freguesia da Maia, junto à estrada regional norte da maior ilha açoriana, revela que estamos na presença da fábrica de chá da Gorreana, a mais antiga da Europa e uma das duas sobreviventes de uma cultura que nos séculos XVIII e XIX foi preponderante na economia agrícola da ilha. Fundada em 1883 por Hermelinda Pacheco Gago da Câmara, uma morgada que ficou conhecida como “a Ferreirinha dos Açores”, foi uma ideia que surgiu da adversidade económica do momento e que registou um crescimento assinalável. “Chegaram a existir 16 fábricas em São Miguel”, conta Margarida Heinz, trineta da morgada. As estatísticas históricas dizem que a produção anual chegou às 700 toneladas por ano, mas o sucesso foi pouco duradouro. Hoje, existem apenas duas fábricas no arquipélago e a produção da Gorreana – a maior – não vai além das 50 toneladas, mas a ciência e o turismo vieram dar um novo aroma ao sector.
No período dos Descobrimentos e das grandes travessias atlânticas, não havia caravela que não parasse em São Miguel para abastecer os porões do melhor remédio conhecido para prevenir o escorbuto. Mas a “crise da laranja”, originada por uma praga importada do continente, dizimou a cultura e forçou os micaelenses a encontrar alternativas. O chá foi uma delas. Contudo, durou apenas até ao final da Segunda Guerra Mundial, quando António Oliveira Salazar decide impor um imposto ao chá dos Açores para proteger o chá de Moçambique. “Foi a nossa primeira batalha”, diz Margarida, explicando que o impacto da medida deixou apenas três fábricas na ilha: a Gorreana, a Barrosa – que acabaria por arder e ser abandonada – e a de Porto Formoso que veio a falir, embora tenha sido adquirida recentemente por um conjunto de jovens investidores.
A esperança regressou ao sector com a independência das colónias, mas com a entrada de Portugal para a Comunidade Económica Europeia, os agricultores viraram-se para a produção de gado, leite e derivados, incentivados pela forte política de subsidiação – que resultou no abandono e na conversão das plantações de chá em pastagens. “No final da década de 1980, o meu marido [Hermano Mota] foi falar com o secretário de Estado da Agricultura de então, pois o chá não se vendia e estávamos muito aflitos, mas a resposta foi ‘arranque tudo e dedique-se às pastagens e ao gado’”, explica Margarida, lamentando que “o sector nunca teve apoios [subsídios]”. Ainda assim, Hermano não desistiu e continuou o legado da família, em particular o de Jaime Heinz, a quem Margarida atribui a sobrevivência da Gorreana. “O meu avô era um visionário, com ideias muito avançadas para o seu tempo”, explica. Entre outras, criou bichos-da-seda para fazer peças de vestuário, gansos para produzir patê, capas e borras de pó de arroz com as penas, e criava vacas em estábulo ao som de Mozart, para as tornar mais produtivas. No entanto, a mais importante foi a construção de uma central hidroeléctrica que permitiu à fábrica ter energia própria e continuar a mecanização da unidade fabril. “Sem a central, a Gorreana não teria sobrevivido”, afirma Margarida.
Um museu vivo
À medida que avançamos pelas entranhas da fábrica, vamo-nos apercebendo da antiguidade da maquinaria, que foi adquirida, na sua maioria, pelo pai da actual matriarca da família, Fernando Heinz.
Algumas já nem estão em funcionamento e a ideia é criar um museu (para o qual estão a trabalhar para obter financiamento). Todavia, Margarida salienta que o processo de produção, selecção e secagem mantém-se fiel ao do passado. “A única coisa que já não fazemos à mão é colocar o chá dentro das saquetas [tea bags]”, diz, apontando para as máquinas importadas da Argentina há alguns anos e que fazem agora a tarefa.
O processo de produção, selecção e secagem mantém-se fiel ao do passado. A única coisa que a Gorreana não faz à mão é colocar o chá dentro das saquetas [tea bags].
No campo, as plantas estão agora dispostas em sebe, de forma a estarem preparadas para a poda mecânica, mas o modo de produção mantém-se biológico. “Não usamos quaisquer pesticidas ou herbicidas. Toda e qualquer erva é arrancada à mão”, explica. Após a colheita, realizada entre a Primavera e o Outono, as folhas do chá preto são deixadas a murchar até enrolarem e depois expostas ao ar, sujeitas a um processo de oxidação lento e natural. Já as folhas de chá verde são esterilizadas com vapor de água, para não perderem propriedades, e depois enroladas e secas. Terminados os processos, os chás são armazenados de acordo com a qualidade e variedades – sete de chá preto e três de chá verde.
A visita à instalação fabril termina na casa de chá concretizada por Hermano Mota, onde os visitantes podem contemplar a paisagem deslumbrante na companhia de um chá (gratuito). É neste ambiente relaxado que questionamos Margarida sobre a saúde financeira da Gorreana. A resposta surge após um suspiro de alívio. “Olhe, fomos salvos pela Ciência. A descoberta dos benefícios do chá verde para a saúde, devido à riqueza em antioxidantes, deu um impulso ao negócio”, confessa. A gestão da Gorreana é agora dividida entre Margarida e as duas filhas. Uma delas, Sara Mota, concorda com a visão da mãe. “Hoje, os consumidores bebem chá não só pelo sabor, mas também pelos benefícios que traz para a saúde”, explica. No entanto, a gestora aponta a liberalização do espaço aéreo em 2015 como principal catalisador das vendas. Com a entrada das companhias aéreas low-cost na rota açoriana, chegam mais turistas a São Miguel e são poucos os que não visitam a fábrica, que continua a ser o principal ponto de venda do chá, mas também de alguns produtos da região. “Vêm aqui tantos turistas que toda a gente nos pede para vender os seus produtos aqui. O atum de Santa Catarina é um exemplo.
Somos o maior ponto de venda deles”, diz Margarida.
A insularidade e a escassez de terras, aproveitadas principalmente para pastagens, dificultam a exportação – a maioria das vendas é feita na fábrica – e impedem grandes projectos de expansão, mas o espírito empreendedor da família continua. Além dos gelados, que começaram a produzir recentemente e distribuem através de hotéis e restaurantes específicos, Sara revela que vão lançar brevemente um chá com ervas aromáticas do Açores, mas apenas numa óptica de diversificação. “Vendemos pela qualidade e não pela quantidade”, defende a gestora, que agora encara o futuro da Gorreana com a tranquilidade que os seus antepassados não puderam experienciar.