Vitor Martins e Ana Carvalho estão juntos há 24 anos e têm em comum a paixão pelas viagens. Profissionais do ramo da ótica, montaram uma empresa, a Ótica Maxivisão, que tem duas lojas físicas, em Vila Nova de Poiares e em São Pedro de Alva, no distrito de Coimbra.
Este casal, que já percorreu sete dezenas de países, registando os locais por onde vai passando no seu blogue de viagens, dá corpo a um projeto solidário, cujo objetivo é a distribuição de óculos pelos países mais carenciados por onde passam.
O facto de terem dois filhos menores em idade escolar, Vitor com doze anos e Pedro com cinco, não os impede de se empenharem neste turismo solidário.
“Conseguimos mudar a forma de olhar” é a máxima que os move e o nome do projeto que fomos conhecer.
O projeto de distribuir óculos em países mais carenciados surgiu como e quando?
Vítor Martins (VM): O nosso projeto surgiu depois de várias viagens a países subdesenvolvidos. Como adoramos o contacto com os locais, quando íamos já levávamos material escolar ou roupa, mas ficávamos sempre com o sentimento de que era pouco e que podíamos ir mais longe, mas não tínhamos a alavancagem financeira necessária por parte da nossa empresa para uma missão desta natureza.
Pensámos em arranjar empresas parceiras, mas cedo percebemos que não seria nada fácil, pois apesar da confiança, muitos não acreditaram no nosso trabalho, e acima de tudo, alguns pensavam que iríamos ganhar dinheiro com isso. Talvez naquele momento, não tenhamos batido nas portas certas, mas nada estava perdido. Numa conversa com uma amiga, fundadora da ICreate Vila Nova de Poiares, e que acreditou em nós, elaborámos um projeto e conseguimos financiamento para doze óculos.
Quando e em que local foi a primeira viagem solidária que fizeram?
VM: A nossa primeira Missão Solidária foi em setembro de 2019 a São Tomé e Príncipe onde fomos entregar trinta e dois óculos graduados, sendo que doze foram entregues a idosos com a ajuda fundamental da ICreate e da Vera Carvalho, a quem estamos eternamente agradecidos.
Realizam as missões solidárias durante as vossas férias? Como se organizam em família?
VM: Sinceramente e apesar da enorme responsabilidade em ir mudar a forma de olhar a pessoas que de outra forma não conseguiriam, o processo é muito simples. Os nossos filhos habituaram-se a viagens diferentes do habitual e para eles é uma autêntica aventura.
O Vitor foi connosco na primeira Missão, e conseguiu perceber exatamente aquilo que sempre lhe tentamos transmitir. Afinal ele tem muito mais do que precisa na realidade do nosso dia-a-dia. Foram os nossos filhos que nos fizeram procurar este propósito, de olhar para o mundo e verem que o mundo tem pessoas que vivem muito pior que eles e que por vezes são mais felizes. Para nós não existem melhor aprendizagem que esta, in loco.
Quais os países pelos quais já passaram? Que tipo de países privilegiam?
VM: Nós já passamos por São Tomé e Príncipe, Peru, Cabo Verde e por último Macedónia do Norte. Neste momento estamos mais virados a centrar mais as nossas missões em África, mas estamos abertos ao mundo.
Qual é o critério que seguem para escolher os países que visitam?
VM: O nosso foco principal é entregar óculos em mão a pessoas que, de outra forma, não os conseguiriam obter. A partir daí tudo é possível. Só precisamos de voluntários de confiança nos países para onde vamos, como temos tido a sorte de ter. Eles fazem o trabalho de procura de pessoas com reais necessidades, levam-nas ao hospital central e passam-nos todos os dados necessários. Nós, deste lado tratamos do resto.
Quanto tempo dura em média uma missão?
VM: Normalmente conseguimos realizar uma missão em quatro dias. Quando chegamos vamos reconhecer o local ou os locais onde vamos entregar os óculos, por exemplo em Cabo Verde entregámos óculos em duas ilhas, e aí a logística foi maior, mas com a ajuda dos voluntários no terreno tudo fica mais fácil. Sem eles nada seria possível e queremos deixar-lhes aqui um enorme obrigado por tudo o que têm feito por nós pelos países por onde já estivemos.
A entrega gratuita de óculos pressupõe também uma consulta de oftalmologia. Em países com poucas condições, onde são feitas essas consultas?
VM: Sem receita de oftalmologia nunca entregaríamos óculos, pois cada pessoa que necessita de óculos possui uma graduação própria e quase exclusiva. Portanto, sem ela nunca poderíamos fazer um trabalho credível e que beneficiasse de facto quem vê mal.
Nos casos dos países onde fomos em que o acesso à saúde é quase nulo, por incrível que pareça existem equipamentos bons nos hospitais centrais, doados por benfeitores de outros países, mas infelizmente, não existem pessoas para os manusear por falta de formação, como foi o caso que encontrámos em São Tomé.
Por detetarmos essa falha, decidimos convidar, para um estágio na nossa empresa, a oftalmologista responsável por realizar cerca de duzentas consultas a pessoas necessitadas. E em dezembro de 2021, a Sandra, veio fazer o seu estágio nossa Ótica Maxivisão e foi uma experiência inesquecível.
De que forma é que obtêm óculos em cada país?
VM: Os óculos são todos feitos nas instalações da sede da Ótica Maxivisão, depois de termos recebido a prescrição médica, as medidas técnicas e uma fotografia do rosto de cada paciente. Cabe-nos escolher a armação mais adequada a cada rosto.
É uma sensação indescritível passarmos por todo este processo e no dia da entrega colocarmos os óculos em cada um.
De salientar também que devido ao enorme número de receitas, cabe a toda a equipa perceber as reais necessidades de cada um, e selecionar pela dificuldade visual quem poderá usufruir dos óculos.
O pagamento dos óculos é garantido por quem?
VM: A Maxivisão é o principal patrocinador neste momento, mas nas últimas duas missões tivemos a ajuda do nosso parceiro de lentes, Carl Zeiss, uma empresa com 175 anos e que se distingue como o principal fabricante a nível mundial de lentes oftálmicas e instrumentos oftálmicos de precisão, com quem temos estabelecido uma relação excecional. Em relação às armações, a Maxivisão apoia sempre com a sua marca Mundo by maxivisão e a marca portuguesa Jack Noble acreditou no nosso projeto da Macedónia e ajudou com seis armações novas. Sempre quisemos envolver os nossos clientes nas nossas missões, por isso decidimos fazer uma campanha em que na compra de uns novos óculos, valorizamos a armação antiga que esteja em bom estado e, muitas delas, estão nas caras de quem precisa por este mundo fora.
Quantos óculos até ao momento já distribuíram?
VM: Em quatro missões conseguimos distribuir noventa óculos, mas nós gostamos mais de dizer que conseguimos mudar a forma de olhar a noventa pessoas, simplesmente porque todas elas têm uma história e nós passámos a conhecê-la.
Nós estamos também a angariar padrinhos para acompanhar no seguimento das crianças, especialmente as que tem as deficiências refrativas mais graves.
Têm alguns episódios curiosos destas missões solidárias que gostassem de partilhar?
VM: Nós temos noventa histórias para contar. Depois de visitarmos setenta países ir já é algo normal. Aqui a enorme diferença está em que vamos com a missão de mudar a forma de olhar de alguém.
Este episódio, por mais anos que vivamos vai ficar para sempre nas nossas memórias.
Queremos contar-vos a história do pequeno Daniel, nome original Manuel da Silva. Em São Tomé é muito comum darem nomes aos bebés e depois mudarem quando são mais crescidos. Deve haver uma explicação, mas não conseguimos perceber.
O pequeno Daniel é o filho mais velho de uma rapariga com vinte anos já com três filhos. Vivem em Neves, uma vila distante cerca de 25 km da capital São Tomé, os acessos são terríveis e os transportes quase nulos. Ele era um dos que tinha sido selecionado para ir fazer a consulta meses antes de irmos entregar os óculos. A mãe, vendedora de peixe, atrasou-se no trabalho e ele não foi a tempo de ir no transporte que providenciamos para levar as crianças. Quando chegou a casa e percebendo que ele tinha perdido esta oportunidade, decidiu investir talvez o que tinha para o mês e pagar a uma pessoa para o levar ainda no dia. O que é certo é que o Daniel foi o último a fazer consulta de oftalmologia nos cerca de duzentos que a Sandra fez de forma gratuita.
Talvez com o cansaço do fim do dia, o pequeno Daniel foi fotografado com a receita mas com um nome diferente. Quando chegou o dia da entrega, ele nem sequer sabia que ia receber os óculos, pois não lhe disseram nada. Quando entregamos os óculos ao outro miúdo, ficámos logo a perceber que não eram dele, uns óculos com quase 8 dioptrias, para quem vê bem são impossíveis de usar, mas ele pela novidade e curiosidade de ver uns óculos dizia que eram dele. Reunimos com a nossa voluntária Fátima, uma orgulhosa portuguesa a viver em São Tomé e que tratou de quase tudo antes de chegarmos e vimos que não era ele.
Tratámos de ir à procura dele. Falámos com os responsáveis da escola e como tínhamos fotografias poderia ficar mais fácil. Depois de perguntarmos a várias pessoas, lá houve uma que disse que ele era vizinho dele e que devia estar em casa. Pegámos nas motos e lá fomos ter a casa do pequeno Daniel. Quando chegámos a mãe andava a secar peixe para ir vender e disse-nos que ele estava na escola.
Voltámos à escola e lá conseguimos encontrar o pequeno Daniel, na mesa do fundo da sala, triste, envergonhado. Era o seu primeiro dia de aulas! Quando lhe metemos os óculos a sua vida mudou, ficou meio zonzo, mas imensamente feliz e passados uns minutos já conseguia ler tudo o que estava no quadro. Foi arrepiante, chorámos muito de alegria, e ainda hoje passados quatro anos, a relatar, me dá arrepios.
Mas o mais importante é que conseguimos mudar-lhe a forma de olhar e estamos em permanente contacto. Ele precisa de renovar os óculos e nós já estamos a tratar disso.
Este é o verdadeiro sentido da nossa missão que estará sempre inacabada.
Quais os próximos passos que tencionam dar no âmbito do projeto: missões e datas?
VM: O projeto tem quatro anos, ainda é uma criança, tem muito para aprender e desenvolver. Tínhamos o sonho de fazer uma exposição de fotografia sobre o nosso trabalho nos quatro países por onde já passámos, e ela acabou de se concretizar.
A Exposição de Fotografia das Missões Solidárias da Maxivisão esteve patente na Casa da Mutualidade em Coimbra durante o mês de janeiro. A casa da Mutualidade pertence à Previdência Portuguesa, uma instituição que acabou de celebrar 94 anos de vida e que tem feito um trabalho notável em prol dos seus associados e dos mais necessitados. Foi um mês de grandes emoções, de partilha e de recordações que ficarão eternizadas. A exposição é volátil, por isso brevemente irá estar noutros locais e esperamos, já com nova Missão. Nesta exposição tivemos uma “caixa solidária”, que serviu para angariar armações novas ou usadas, mas em bom estado, doadas pelos visitantes para a nova Missão que está para breve no Quénia.
Falem-nos um pouco mais dessa exposição.
VM: Foram trinta e duas fotografias expostas na Casa da Mutualidade que relataram um pouco da nossa história de entrega dos óculos. Momentos mais marcantes das pessoas com mais graduação, quase vinte dioptrias, mas também o relato das formas como fomos recebidos em todos os países.
Na festa de inauguração tivemos um cantor de Vila Nova de Poiares, a terra onde vivemos, e uma intérprete de língua gestual portuguesa, o que tornou a nossa exposição ainda mais inclusiva.
Estivemos presentes em toda a comunicação social da nossa região e na Antena 1. Tivemos centenas de visitantes, todos eles nos incentivaram a continuar e uma grande parte ajudou-nos com o donativo das armações, que esperamos em breve, as vejam na cara de quem precisa.
Como foi possível chegarem até aqui?
VM: Só foi possível porque temos tido clientes que nos tem ajudado. De outra forma seria impossível. É a todos eles que queremos deixar uma palavra final de agradecimento profundo.
A nossa Missão só acabará quando todos os que precisam de óculos graduados no mundo, os conseguirem obter por meios próprios, até lá, queremos continuar a contar com vosso precioso apoio.