Criada há dez anos por Carlota Ferreira, e organizada pela Win World, a Happy Conference é um evento anual que traz a palco a discussão de temas que envolvem os desafios do trabalho num mundo em constante mudança. A edição deste ano, a decorrer no dia 10 de julho, no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, será dedicada ao tema “Navegando a Inteligência Artificial, Ferramentas Duradouras, Smart Work e Gen Z”.
Em palco estarão oradores internacionais como David Rowan, especialista no impacto que as tecnologias emergentes podem ter nos negócios no futuro; Kristen Geez, especialista na Geração Z; e Julia Zhou, co-fundadora da Tidal Impact, uma consultora global nas áreas de sustentabilidade, gestão de impacto e investimento.
Do lado nacional serão oradores Bernardo Caldas, Sofia Castro Fernandes e Tiago Forjaz. Bernardo Caldas, especialista na área de dados e na sua utilização e transformação nas empresas, é líder das equipas de dados e Inteligência Artificial (IA) na Mollie, uma das maiores fintechs da Europa. Tem uma licenciatura em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores, feita no Instituto Superior Técnico, e um MRes em Computação Avançada realizado no Imperial College London. Especializado em data science, machine learning e IA, fundou ainda a associação Data Science for Social Good Portugal.
Em entrevista à Forbes Portugal, Bernardo Caldas explica de que forma a Inteligência Artificial terá impacto no mercado de trabalho e nas oportunidades que trará se for bem aproveitada.
A Inteligência Artificial (IA) está a revolucionar o mundo do trabalho. Quais as mudanças mais significativas que apontaria para os próximos cinco anos? O que esperar para o futuro?
A prudência recomendaria que não fizesse previsões com um horizonte superior a seis meses, e mesmo isso seria arriscado! A verdade é que sabemos muito pouco sobre o que será o futuro impacto da IA. A conhecida Lei de Amara diz que tendemos a sobrestimar o efeito da tecnologia no curto prazo e a subestimar o seu efeito no longo prazo. A dificuldade será dizer se cinco anos representa um curto ou longo prazo para a IA. Todos os anos é feito um inquérito a milhares de investigadores sobre as suas previsões acerca da evolução da IA nos anos seguintes e a dispersão nas suas respostas é enorme. Alguns creem que veremos trabalhos de elevada sofisticação intelectual a serem totalmente substituídos em breve, enquanto outros apontam o final do século como uma data mais provável. Sabemos pouco, mas há já alguns sinais que nos permitem intuir algumas possíveis mudanças.
Que mudanças são essas que refere?
As capacidades da IA não pararam ainda de aumentar e novas aplicações surgem todos os dias. A grande novidade desta onda mais recente de IA é a possibilidade de automação de parte do trabalho intelectual criativo, por oposição ao trabalho intelectual mais repetitivo que tem sido alvo de automação nas últimas décadas. Por trabalho criativo não me refiro apenas às tarefas artísticas, que envolvam a criação de imagem, música ou vídeo, mas ao trabalho que implique a ideação e invenção de soluções como, por exemplo, a programação. Estudos iniciais, como um recente da Universidade da Pensilvânia com uma grande consultora, mostram que a performance de humanos a utilizar IA é significativamente superior à dos que não a usam num conjunto alargado de tarefas (ainda que em alguns casos o efeito possa ser o contrário). É seguro dizer que assistiremos a uma procura de oportunidades de otimização em todas as áreas do trabalho durante os próximos anos e que, em muitos casos, tarefas que até hoje pareciam impossíveis de automatizar sejam radicalmente transformadas.
Muito se fala nos empregos que a IA vai destruir e nas novas profissões que daí virão. O que antecipa neste domínio?
É importante sermos honestos e não dourarmos a pílula ao falarmos dos impactos da IA. Creio ser muito provável o desaparecimento de algumas profissões com o aumento das possibilidades de automação. Curiosamente, naquilo a que alguns autores chamam a “vingança dos blue collar workers”, as profissões mais afetadas serão as profissões de escritório, nas áreas dos serviços.
Mas a história económica também recomenda alguma prudência quando prevemos os efeitos da automação. Em primeiro lugar, devido às limitações técnicas da tipologia de IA que temos disponível à data de hoje, não é possível eliminar os erros (vulgarmente chamados de “alucinações”) em tarefas que nos parecem simples, mesmo que tenham resultados muito positivos em tarefas que nos parecem altamente complexas. Por esta impossibilidade em garantir qualidade, a substituição completa de profissões é potencialmente mais difícil, sendo mais provável o aumento de produtividade de quem as desempenha, por assumir mais um papel de supervisor.
“Curiosamente, naquilo a que alguns autores chamam a “vingança dos blue collar workers”, as profissões mais afetadas serão as profissões de escritório, nas áreas dos serviços”, diz Bernardo Caldas.
Ao mesmo tempo, aumentos de eficiência e produtividade podem também resultar num aumento de necessidade de uma determinada profissão, fenómeno conhecido como o paradoxo de Jevon. Com a redução de custo, a procura agregada pode aumentar mais do que o efeito de redução por aumento de eficiência. Por exemplo, ao tornar a tarefa de programação mais simples e mais rápida de executar, podemos não assistir à diminuição do número de programadores, como poderíamos esperar, mas sim ao seu aumento. Neste exemplo, em muitas áreas da sociedade (por exemplo, no setor social) não havia capacidade de pagar a um programador seis meses para executar uma tarefa, mas conseguiam fazê-lo se demorasse apenas um mês, levando à procura de mais programadores.
Finalmente, sabemos também que algumas tarefas, que hoje já seriam automatizáveis mesmo sem IA, ainda não o são. Basta ver, por exemplo, os enormes departamentos de operações em indústrias mais tradicionais, em que muito do trabalho de validação de documentação seria facilmente automatizável recorrendo à digitalização. Há uma certa inércia humana e organizacional que atrasa os impactos da tecnologia, mesmo depois de se tornarem possíveis tecnicamente.
Assim, não excluindo reduções de emprego em áreas em que a produtividade muito aumentará com novas possibilidades de automação, não acredito em cenários de desemprego alargado no curto prazo.
Como tornar a IA num aliado do mundo do trabalho e não uma ameaça? Isso é possível de conseguir?
Creio que há um potencial muitíssimo positivo na IA de aumentar o espectro de tarefas que cada um de nós terá autonomia para realizar. A possibilidade de podermos experimentar uma nova ideia para o nosso trabalho utilizando IA para programar um protótipo, criar um logótipo e desenhar algumas ideias para fazer marketing dessa ideia é potencialmente muito transformadora. Ter um assistente que nos ajuda a fazer análise de dados, tarefa que até agora requeria a ajuda de um analista dedicado, pode trazer um aumento de qualidade de trabalho significativo. No cenário base que descrevi, em que algumas tarefas poderão ser substituídas com muito mais facilidade do que profissões inteiras, a IA será certamente um aliado do mundo do trabalho.
Por isso, gosto da imagem da IA como copiloto, servindo não como uma inteligência autónoma, mas como uma cointeligência com quem colaboramos. Mas o benefício da IA muito depende da atitude e adesão individual. Alguém que ache que isto é um tema para os técnicos ou para os informáticos está a colocar-se de fora desta revolução. Desengane-se também quem acha que precisa de educação formal para tirar partido destas novas tecnologias. Não há melhor método para as aproveitar do que ganhar experiência prática e testar se os resultados que conseguimos obter já são úteis para os nossos trabalhos de hoje. Nem sequer é preciso gastar dinheiro para se experimentar os melhores modelos de IA.
Boa parte das grandes empresas mundiais já têm funcionários que utilizam diariamente o ChatGPT. Que impacto isto traz para o mercado de trabalho? E que impacto tem nas competências dos novos trabalhadores?
O impacto nos novos trabalhadores é extremamente relevante, já que talvez sejam eles os mais afetados por estes primeiros impactos da IA generativa. Uma das imagens mais úteis para entender a forma de colaboração da IA é a de a imaginar como um estagiário sem experiência profissional: é capaz de fazer tarefas simples, bem especificadas, e devemos sempre validar o resultado antes de o utilizar. Ora, este tipo de tarefas era aquele que, tradicionalmente, era feito por pessoas em início de carreira. A dificuldade está no facto desse trabalho simples, mais fácil de automatizar, ser também a forma destes jovens profissionais ganharem experiência suficiente para executarem tarefas progressivamente mais complexas. Ao retirarmos estas tarefas aos estagiários ou jovens profissionais, já que é muito mais eficiente usar IA, estamos a dificultar o acesso destes ao mercado de trabalho e a impedir a sua formação. De alguma forma, já podemos ver este efeito nos anúncios de emprego, onde ultimamente já temos verificado uma diminuição das posições com menos experiência, mais juniores, e um aumento da procura por posições mais seniores. Resta saber como formaremos profissionais seniores suficientes para o futuro se lhes retirámos o caminho para ganharem experiência à data de hoje.
Como vêm as gerações mais jovens estas alterações no mundo de trabalho? Temem-nas ou assumem-nas como essenciais?
As gerações mais novas são normalmente early adopters de tecnologia, e a IA não é diferente. De alguma forma, a sua utilização já é tão natural que não há uma escolha consciente da sua utilização como uma ferramenta essencial. No entanto, a dificuldade de acesso a profissões como primeira consequência de uma vaga de automação causa-lhes alguma ansiedade justificada.
“Creio que isto abre um conjunto de possibilidades que pode contrabalançar a maior dificuldade de acesso ao mercado de trabalho”, diz Bernardo Caldas.
Por outro lado, o aumento das possibilidades de empreendedorismo com a utilização de IA traz muitas oportunidades para quem a saiba usar bem, dando uma grande vantagem às novas gerações. Se o custo da experimentação (desenvolvimento de software, marketing, design) baixa muito com a utilização de IA, então é mais acessível ser empreendedor. Tomemos por bom o cenário da não eliminação total de profissões, mas sim de tarefas, por não termos chegado ainda à tal inteligência artificial geral. Neste cenário, continua a ser necessário alguém que identifique um problema na sociedade que possa ser resolvido, que tenha procura pelo mercado, e que então use as ferramentas à sua disposição, incluindo IA, para construir um produto. Creio que isto abre um conjunto de possibilidades que pode contrabalançar a maior dificuldade de acesso ao mercado de trabalho.
De que forma estão a contribuir para alterar as dinâmicas no trabalho e para transformar as empresas?
A transformação das empresas depende da intensidade da inércia organizacional. Daí que as organizações que maior partido estão a tirar da IA são aquelas que têm mais estruturas de experimentação. Com isto não falo de departamentos de inovação, mas de uma cultura de experimentar ideias, criar ciclos de feedback muito rápidos e tolerar a falha, sem a dramatizar. Culturas hiper-hierárquicas e sobre
especializadas, em que cada pessoa só pode executar a tarefa que lhe foi atribuída, terão muita dificuldade em beneficiar da IA. Por outro lado, a sub-representação tecnológica nas comissões executivas das empresas (muito comum nas empresas nacionais) bloqueia a perceção das verdadeiras potencialidades da tecnologia. Teme-se aquilo que não se entende, e é especialmente importante entender inovações que têm um potencial transformador como o da IA.
“Culturas hiper-hierárquicas e sobre especializadas, em que cada pessoa só pode executar a tarefa que lhe foi atribuída, terão muita dificuldade em beneficiar da IA”, refere o especialista.
De qualquer forma, mesmo nos melhores exemplos, ainda estamos numa fase muito inicial, de experimentação, sem termos dados ou resultados definitivos para dizer que se alteraram de forma permanente as dinâmicas no trabalho. Mesmo que, nalguns casos, haja tarefas que já tenham sido totalmente substituídas, como a elaboração de atas de reuniões ou resumos de documentação, ainda falamos de uma automação muito superficial.
De que forma a IA já está a alterar a cultura empresarial nas organizações? Prejudica de alguma forma o engagement de equipa e com a empresa?
Um dos mais expressivos exemplos de alteração de cultura nas organizações mais avançadas é o da comunicação interna. Escrever emails ou documentos passou a fazer-se frequentemente com a ajuda de IA. Se, por um lado, melhora a qualidade média daquilo que é escrito, trazendo principais benefícios para quem tinha mais dificuldade em exprimir-se, também retira as características mais pessoais da comunicação e acrescenta conteúdo pouco informativo. Seria (sarcasticamente) interessante caminhar para um mundo em que os emails completos são escritos por IA a partir de um conjunto de tópicos e são depois resumidos para o leitor na forma de um conjunto de tópicos. A perceção de uma boa forma não substitui a necessidade de bom conteúdo, por agora produzido por humanos.
Num fenómeno descrito como o dos “ciborgues secretos”, colaboradores que tenham descoberto formas de utilizar IA para aumentarem a sua eficiência e produtividade não têm incentivo para partilhar a sua descoberta com a organização”, explica Bernardo Caldas.
Por outro lado, já podemos observar alguns desafios para as organizações. Por exemplo, num fenómeno descrito como o dos “ciborgues secretos”, colaboradores que tenham descoberto formas de utilizar IA para aumentarem a sua eficiência e produtividade não têm incentivo para partilhar a sua descoberta com a organização. Desta forma, podem manter ou até aumentar a qualidade do seu trabalho, diminuindo o número de horas trabalhadas, trazendo benefício para o próprio, mas não para a organização. Por utilizarmos o esforço (neste caso, o número de horas trabalhadas) como métrica, por oposição ao trabalho produzido, não criamos o alinhamento de incentivos para que os benefícios sejam propagados em toda a sua extensão para as organizações.
Quem não apanhar este comboio terá tendência para desaparecer? Ou poderá a IA conviver com métodos e formas tradicionais de trabalho?
Como vimos, quem usar a IA tenderá a ter melhores resultados, pelo que haverá uma espécie de “pressão evolutiva” (como descrevia Darwin) para que a utilização de IA prolifere. Por outro lado, parece-me provável que haja lugar para organizações “artesanais” em diversas áreas do mercado de trabalho. Vejo lugar para órgãos noticiosos mais automatizados, que resumem os acontecimentos em tempo real, assim como vejo lugar para redações que não recorram a IA, em que toda a curadoria e todo o conteúdo é feito por humanos, com uma qualidade e originalidade de análise superiores. Vejo lugar para ilustrações feitas por IA, rápidas e com muito baixo custo, assim como vejo lugar para ilustradores que usem processos manuais, para trabalhos que exijam verdadeira criatividade e não apenas uma mistura de ideias anteriores. Com a diferença de eficiência, no entanto, estas versões artesanais serão provavelmente um luxo, da mesma forma que a roupa feita à medida é um luxo quando comparada com o pronto a vestir. Por isso, ignorar esta transformação estrutural é uma ideia, no melhor cenário, arriscada.