Ana Borges, jogadora do Sporting e da seleção nacional, é uma das Navegadoras que está na capa digital de julho da Forbes Portugal (leia a reportagem completa aqui). Esta é a segunda parte da conversa com a atleta que soma 187 internacionalizações e uma carreira cheia de conquistas e experiências nacionais e internacionais.
Como surgiu a oportunidade de ires jogar para o estrangeiro?
Foi através da seleção, eu comecei a ir à seleção nacional nas sub-19 e na altura foram vídeos. A equipa contactou com alguém da Federação e eles entraram em contacto comigo para me dizerem que havia uma possibilidade, um clube interessado.
A experiência lá fora é muito diferente do que é a realidade em Portugal?
Sim, hoje em Portugal já há mais condições, o facto de as equipas grandes terem apostado no futebol feminino é uma mais-valia. Claro está que ainda estamos um bocadinho atrás daquilo que, por exemplo, é em Espanha, que já aposta no futebol feminino há muito mais tempo. Acho que nós estamos a dar passos pequenos, mas estamos no caminho certo, não digo para chegarmos ao mesmo nível que Espanha porque acredito que não seja fácil, no entanto para estarmos ali muito perto delas. Depois claro que os Estados Unidos são um país completamente à parte e Inglaterra também.
O que é que a presença num Mundial significa para o futebol feminino português?
O facto de nós estarmos numa fase final de um Mundial e termos estado em duas [do Europeu], isso é um trabalho que tem vindo a ser feito pelos clubes, associações, a própria Federação. Agora vamos a uma fase final de um Mundial com as jogadoras praticamente todas a jogar em Portugal e isso quer dizer que a jogadora portuguesa tem muita qualidade, porque se não era impensável tão cedo chegar a uma fase final de um Mundial.
O que é preciso ser revisto?
Acho que o facto de nós estamos numa fase final já está a mudar muita coisa, já há mais foco em nós, já querem saber mais do futebol feminino, já querem saber da jogadora portuguesa. Agora muita gente conhece as jogadoras, antes isso não era possível. O facto de haver mais transmissões de jogos na televisão, o facto de haver mais informação nos próprios jornais desportivos e não só. Claro está que ainda temos que caminhar muito porque nós conquistámos uma fase final e, no entanto, ainda continuamos a vir num troço pequenino de um jornal desportivo em relação ao masculino. Nós não nos estamos a comparar, mas acho que isso poderá mudar e poderão ver o futebol feminino e esta ida ao Mundial de outra maneira.
Isso foi algo que vos surpreendeu?
Sim, porque sabemos que se fosse a equipa masculina não ia ser assim, se calhar de 20 páginas iam estar 15 deles. Nós aparecemos num bocadinho. Não é por aí, porque nós também nunca conquistámos as coisas para aparecer no jornal. Mas só isso faz a diferença entre Portugal e Espanha.
Jogar nos estádios principais dos clubes é uma vitória para as jogadoras ou é algo que ainda sabe a pouco?
São vitórias. Nós estamos a conseguir jogar seja em Alvalade, seja na Luz, ou pela Federação agora em Guimarães. São vitórias, são coisas que nós estamos a conquistar, mas também é porque seja o Sporting, seja a Federação, também nos dão essas condições. Sabemos que é muito caro abrir um estádio, mas se eles nos dão isso é porque também confiam em nós e estão a acreditar naquilo que é o nosso valor.
Os recordes de audiência dizem o quê?
Não sei o que é que eles possam dizer, agora sei que cada vez há mais pessoas interessadas no futebol feminino. O futebol feminino já tem uma procura, já gera dinheiro, e cada vez há mais gente a acreditar no futebol feminino. Obviamente que há muitas coisas que nós jogadoras temos de ter cuidado porque hoje em dia há muitos agentes que nem sequer são agentes, mas se dizem agentes. O facto de cada vez estarmos a crescer mais, também temos de ter atenção a certos aspetos e esse é um deles. O futebol feminino está realmente a crescer, há cada vez mais pessoas envolvidas, há cada vez mais gente a assistir aos jogos, mas também há situações de fraude ou enganar jogadoras. Da mesma maneira que se trabalha para ter muita gente no estádio, têm de saber ajudar as mais novas a saber o que é e o que não é. Muitas vezes elas são levadas por promessas e depois já não conseguem sair dali.
É necessário garantir a educação e segurança das mais novas?
É mais a segurança. Acho que elas próprias muitas vezes vão na inocência delas, querem atingir os patamares mais altos e cada vez há mais jogadoras portuguesas a terem muita qualidade. É mais por elas e pela segurança delas.
Como é que foram os momentos finais do jogo do play-off intercontinental?
Para já nós estamos a ganhar praticamente o jogo todo e elas acabam por fazer um golo, empatam o jogo já perto do fim, e foi aquela sensação que todas tivemos que também se não fosse assim parece que não seríamos nós, metemo-nos sempre a jeito disso, a jogadora portuguesa gosta de sofrer até ao fim. A partir do momento em que árbitra vai ao VAR e que assinala penalti nós sabíamos perfeitamente que a Carole não ia falhar. Claro está que são momentos difíceis, poderia acontecer, mérito dela que tem essa frieza e essa coragem, eu não teria. Depois continua ali uns minutos, vai que não vai, e quando ela apita claro que é uma alegria enorme porque sabíamos que já não havia uma segunda volta, já não havia outro jogo, era aquele. Eu já nem me lembro como é que foi nem nada, sei que nos agarramos todas umas às outras, havia jogadoras a chorar, havia jogadoras que só já queriam festejar. Porque sabemos que alcançamos uma coisa inédita e uma coisa que se calhar no início do trajeto pouca gente acreditava. É muito difícil nos classificarmos para o Mundial sendo um clube europeu, porque só se classifica um por grupo. Fizemos 13 jogos para isso acontecer, não podia ser de outra maneira. Foi um momento incrível.
As pessoas têm noção do quão difícil é o apuramento?
Acredito que as pessoas que estão ligadas ao futebol e que se interessem minimamente sim. Há muita gente que não tem noção porque… Nem têm noção das dificuldades que foram, como não têm noção de que também custa muitas vezes ser jogadora de futebol porque ok, nós somos umas sortudas porque vimos duas, três, quatro horas por dia trabalhar e há pessoas a trabalharem oito horas de pé. Agora há momentos que também são duros. Nós não temos sempre a nossa família por perto, nós andamos sempre de um lado para o outro, é muito cansativo mentalmente e acho que às vezes as pessoas não têm noção disso, acham que nós jogamos futebol, estamos aqui quatro horas por dia, viajamos, vamos a outros países, só que as coisas também não são um mar de rosas, acreditando que a [vida das pessoas] delas seja muito mais difícil que a nossa, claro.
Há várias seleções pelo mundo em luta com as próprias Federações, em busca de melhores condições. Como olhas para isso?
Isto é tudo conquistas delas. Não é o caso da nossa Federação porque nós sentimos o apoio deles, mas se elas lutam e se elas sentem que devem e que podem ganhar mais, acho que sim, que devem lutar. E acho que nós enquanto mulheres devemos apoiá-las. Nós também não sabemos o nosso dia de amanhã e sabemos que isto é uma luta de todas. Elas na Federação delas, mas isto é uma luta das mulheres. A igualdade salarial, o facto de seleções começarem a fazer isso e conseguirem conquistar a igualdade com o masculino é uma vitória delas, do futebol feminino, das mulheres e cada vez nos estamos a afirmar mais.
É possível sonhar com essa igualdade na seleção?
Não sei se será possível sonhar com a igualdade, acho que podemos dar passos grandes em relação a isso. Temos a plena noção e consciência que o futebol masculino é o que gera o bolo todo da Federação, sabemos que nós estamos agora a iniciar este processo todo de fases finais, conquistar muitas coisas. Por isso é que acho que de hoje para amanhã podemos não digo igualar, mas poderemos estar mais próximas daquilo que se calhar foi impensável há uns anos. Mas lá está, é um processo, são conquistas e não podemos querer as coisas do dia para a noite porque também não é assim que se faz.