A fotógrafa Dagmar van Weeghel tem vindo a desenvolver o trabalho “For Sarah – The African Princess”, inspirada em Sarah Forbes Bonetta (1843), uma princesa africana do povo Yoruba (atual Nigéria), que foi levada da África Ocidental para Inglaterra e que se tornou afilhada da Rainha Vitória da Grã-Bretanha que lhe pagou a educação e o estilo de vida, numa altura em que se estava a abolir a escravatura. Doente com tuberculose, Sarah Forbes Bonetta viajou para a ilha da Madeira em 1880 na esperança de que o clima lhe restaurasse a saúde. Faleceu, contudo, em agosto, aos 37 anos. Num momento em que se procura promover o processo histórico de trasladação dos seus restos mortais da ilha da Madeira para o seu país natal, na Nigéria, entrevistámos Dagmar van Weeghel que nos falou do seu projeto e da princesa africana.
O que a motivou a explorar a vida de Sarah Forbes Bonetta e como é que este projeto mudou a sua visão sobre a representação de pessoas africanas na Europa ao longo da história?
Na altura (2015) em que encontrei pela primeira vez a fotografia da Sarah num raro Carte de visite, já estava a criar a minha série fotográfica Diaspora. O meu casamento com um homem do Zimbabué e a criação de dois filhos juntos, depois de regressados aos Países Baixos, deram-me uma visão das dificuldades que muitos migrantes africanos enfrentam quando se mudam para a Europa. A sua experiência já tinha aberto a minha investigação sobre a forma como os africanos vivem fora de África e, especialmente, sobre a forma como as imagens dos africanos foram construídas e desconstruídas na Europa ao longo do tempo, e acendeu a minha linha de investigação sobre a nossa história humana comum.
Depois de criar o retrato do meu marido, estabeleci contacto com outros africanos da diáspora na Europa, que viveram emoções semelhantes de solidão e deslocação na Europa, e juntos criámos retratos para a série Diaspora.
Por isso, quando tomei conhecimento da história da figura de Sarah Forbes Bonetta e, compreendendo como é incrivelmente difícil, já no nosso mundo contemporâneo, estabelecer-se na Europa, perguntei-me como teria sido para ela no século XIX. Os poucos retratos fotográficos arquivísticos de Sarah demonstram que a sua figura se destinava a uma agenda real, nobre, a uma realidade altamente construída e limitada. Retratam uma jovem mulher negra de alto nível, vestida com a última moda vitoriana, representativa da sua posição social. Mas não oferecem nada do tumulto interior que ela deve ter sentido como alguém que foi roubada da sua terra natal e trazida para a Europa, onde seria constantemente vista como uma estrangeira.
Fiquei espantada por nunca me ter deparado com a sua história antes e por a sua história ter sido posta de lado em favor de outras narrativas.
Aprender sobre ela também expande o nosso conhecimento sobre aspetos e figuras ocultas da história (europeia) sem visibilidade e que não são coletivamente recordadas do ponto de vista social. Com esta série de retratos, quis dar visibilidade a este facto.
Para mim, enquanto fotógrafa, também foi interessante explorar questões relevantes. Qual é o papel que a fotografia tem desempenhado na preservação da nossa história e cultura? Que papel pode ter agora para colmatar as lacunas históricas e normalizar uma narrativa alternativa? Era isto que eu queria explorar e o debate que queria iniciar com esta série.
Pode falar mais sobre o processo criativo por trás da série “For Sarah – The African Princess”? Como selecionou os momentos e como foi colaborar com a modelo Kajote Barbara?
“For Sarah – The African Princess” é a minha interpretação da vida de Sarah Forbes Bonetta. Nascida com o nome de Aina, ela era um membro titulado do povo Yoruba da África Ocidental, crê-se que uma princesa, que ficou órfã devido à guerra e que se tornou cativa de um rei dahomeano. Foi entregue por esse mesmo rei a um comerciante britânico como um “presente” à Rainha Vitória, que a apresentou à sociedade britânica como sua afilhada. As imagens de arquivo de Sarah Forbes Bonetta retratam uma jovem mulher negra ligada à alta sociedade, mas, como já mencionado, não oferecem nada do tumulto interior que ela deve ter experimentado.
Quis realçar a sua “dupla” personalidade com uma luz exuberante e contrastes de cetins pretos que promovem ideias de luto e realeza. Kajote Barbara, do Uganda, tem uma vida que apresenta vários paralelos e semelhanças com a história de Sarah. Kajote ficou órfã muito jovem e foi rainha da beleza, representando o Uganda no concurso Miss Mundo. Mudou-se para a Europa e teve dificuldades em adaptar-se. Esta série tem como objetivo relacionar a vida de Sarah Forbes Bonetta durante a era vitoriana com a vida da jovem contemporânea. Os retratos apresentados neste projeto são uma colaboração entre mim e Kajote, que considero a coautora desta série. Esta coautoria implica também a participação de Kajote nos lucros obtidos com a série.
Como equilibra a representação histórica precisa com a sua interpretação artística ao criar retratos quase especulativos de figuras históricas como Sarah Forbes Bonetta?
Nunca poderia produzir uma representação histórica completamente fiel, mesmo que quisesse. Embora as referências visuais históricas estejam presentes, seja nos trajes antigos vitorianos, nos adereços, no cenário e na iluminação, este não é exatamente o objetivo: mimese. O projeto artístico explora toda uma dimensão emotiva sobre o sentido e o sentimento da não pertença ao lugar onde se habita. Sobre a fragmentação da identidade através do território que se habita e sobre o sentimento e, de alguma forma, o ressentimento da não-comunidade na história europeia.
E sobre isso – perceções e emoções – tive o meu marido, assim como outras pessoas que encontrei na Europa, para espelharem esta dimensão com veracidade.
A vida de Kajote Barbara, a figura contemporânea nesta série, mostrou vários paralelos e semelhanças profundas com a história de Sarah. Kajote também ficou órfã numa idade muito jovem e foi uma rainha de beleza, representando o Uganda no concurso Miss Mundo. Mudou-se para a Europa e enfrentou dificuldades de integração e, portanto, interpreta a realidade de Sarah de forma mais honesta. Através de ambas, acredito que mantemos uma ligação permanente com uma nova geração que vive estas mesmas emoções no nosso mundo contemporâneo. Assim, esta série pretende conectar as vidas de Forbes Bonetta durante a era vitoriana e a vida das diásporas africanas contemporâneas na Europa.
A expansão da história neste contexto específico é, em parte, um ato de re-imaginação do passado à luz das noções inveteradas da historiografia ocidental.
Nestas obras, há um passado e um presente que se entrelaçam. Trata-se de, através do processo artístico, reconstruir um arquivo associado à História de África, às suas comunidades na Diáspora na Europa e à memória coletiva.
É um trabalho profundamente conectado com a memória e a identidade, a manipulação da história e a esterilização da cultura.
A sua investigação sobre Bonetta levou-a a descobrir informações importantes sobre a sua vida e legado. Como foi esse processo e qual foi a descoberta mais impactante?
O meu processo criativo é meticuloso e orgânico, envolvendo minúcia na pesquisa, experimentação e execução. As fases iniciais do meu trabalho são muitas vezes discretas, exigindo uma quantidade considerável de tempo dedicado à pesquisa histórica e social através de várias fontes, incluindo plataformas online, arquivos, bibliotecas e avaliações no local. O meu trabalho reflete este compromisso de apresentar um relato abrangente e preciso do assunto em questão. A investigação sobre Sarah levou-me a Lagos, na Nigéria, em 2017, após o que demorei muito tempo a encontrar os seus descendentes diretos. Quando finalmente consegui, fiquei a saber ainda mais sobre a sua vida, o seu legado e os seus familiares mais próximos. A minha pesquisa também me levou à sua sepultura no antigo cemitério inglês localizado no Funchal, na ilha Madeira, onde, para minha consternação, em vez de uma lápide, não havia mais do que uma pedra a assinalar a sepultura de Sarah.
A descoberta do seu túmulo, abandonado e solitário, sem lápide, foi deveras impactante, bem como a descoberta dos seus pertences pessoais, que residem com os seus descendentes diretos em Lagos. E ainda os detalhes sobre a sua vida e sobre os arredores de Lagos, no período em que lá viveu.
Surpreendeu-me igualmente a desconexão dos descendentes de Sarah com a família real britânica após a morte da Rainha Vitória. Também soube que na Nigéria quase ninguém conhece a história e o legado de Sarah.
Exibi os meus retratos em Lagos durante o Lagos Photo em 2017 e ninguém conhecia Sarah, a imprensa deu-lhe muita cobertura mediática, mas posteriormente voltou a cair no esquecimento. Ela precisa de ir para casa, para ser lembrada também ali, também na cultura iorubá.
Menciona a falta de representação de pessoas negras na Europa nos arquivos de fotografia do século XIX. Acredita que a sua arte pode ajudar a preencher essa lacuna na história visual europeia?
Espero que os meus projetos possam simplesmente contribuir para abrir um debate e uma reflexão sobre a nossa história humana comum e sobre a fluidez da história. É emocionante. Ao olhar para aspetos e figuras ocultas da nossa história humana comum, estamos a expandir o nosso conhecimento e a nossa história. A nossa história não é definitiva, é fluida. Não é o passado, é o presente.
Acredito no poder da narrativa – do storytelling – para trazer à luz estas narrativas ocultas e para contrabalançar alguns desenvolvimentos que me parecem preocupantes na sociedade e exploro a importância fundamental da fotografia para a história humana. A fotografia deu às pessoas comuns a capacidade de serem recordadas. Abriu também uma janela para épocas mais recentes da história que nos permite ter uma melhor empatia com aqueles que vieram antes de nós.
Além de Sarah Forbes Bonetta, está com outros projetos, como “BLOOM” e “Let a Thousand Flowers Bloom”, que abordam lacunas históricas. Pode contar-nos mais sobre estes projetos?
BLOOM e Let a Thousands Flowers Bloom são inspirados e são uma continuação da minha representação de 2015 da vida de Sarah Forbes Bonetta. Como a rainha Vitória foi uma das primeiras a adotar a nova invenção que era a fotografia, as fotografias de Sarah Forbes Bonetta nos Arquivos Fotográficos Reais tornaram-se a prova visual de que ela existia.
A raridade, a deslocação e o anonimato das mulheres de cor nos arquivos fotográficos europeus, melhor exemplificados pela própria Sarah Forbes Bonetta, levaram-me a examinar melhor os arquivos fotográficos europeus e a refletir sobre as diferenças raciais e de género na nossa história comum e no presente.
No livro de Esi Edugyan, Out of the Sun (2022), encontrei uma passagem que ressoou em mim, uma vez que ela descreve maravilhosamente o fio condutor que estou a explorar. Edugyan menciona que queria explorar a vida das pessoas que têm permanecido invisíveis ao longo da história da Europa. Pessoas que eram frequentemente marginalizadas, que raramente surgiam na arte europeia dos séculos XVIII e XIX como indivíduos e cidadãos. Em vez disso, eram usadas como representação de preocupações culturais, vistas através da lente da moralidade cristã e dos padrões da sociedade branca.
Nestas séries, recorro também às cartes de visite do século XIX de mulheres de cor que eram desconhecidas, contemporâneas de Sarah Forbes Bonetta na Europa vitoriana e, mais tarde, eduardiana. As cartes de visite foram inventadas na década de 1850 e, pouco depois, tornaram-se uma moda mundial. Muitos dos traços que associamos às nossas selfies também estavam presentes neste popular e antigo formato fotográfico.
Os retratos que integram esta série não são meras reencenações. São projetos colaborativos em que são retratadas as vidas dos verdadeiras retratadas e cujas próprias histórias estão implicadas em preocupações específicas sobre a ideia de raça na sociedade europeia, enfrentadas pelo sujeito histórico que retratam. Incluo também retratos da minha filha.
Todas as mulheres retratadas, migraram de diferentes países africanos para a Europa na última década e partilham as suas histórias através dos seus retratos. Em conjunto, estabelecemo-las como cidadãs num arquivo, em vez de meros corpos marginais, perdidos no tempo. Florescem com dignidade, tal como as suas antepassadas – as mulheres das verdadeiras cartes de visite do século XIX que aparecem como adereços em forma de joias sobre os vestidos ou repousam nas mãos das modelos.
E, tal como as flores, as modelos, retratadas em tamanho real, surgem deslumbrantes na sua beleza, efémeras, surreais e, no entanto, sustentadas no seu próprio ser. Enquanto os retratos de Sarah Forbes Bonetta estabelecem que a sua figura se destinava a uma agenda real, uma realidade altamente construída e restrita, com os retratados anónimos das cartes de visite, ou presumivelmente cidadãos comuns, desenrolam-se histórias diferentes 160 anos depois. Quais são as suas histórias? Quem eram os retratados, quem era o fotógrafo ou comissário? E como é que vemos estes retratos agora? As flores e as noções de floração tornaram-se um novo locus nestas séries como metáfora da natureza humana, assinalando uma história que traça movimentos de pessoas e movimentos da natureza.
Está a programar uma cerimónia de retorno dos restos mortais de Sarah Forbes Bonetta para a Nigéria, e criar retratos dos seus descendentes. Qual é a importância desse ato?
Quando os restos mortais de Sarah regressarem à sua família em Lagos, na Nigéria, a família deseja organizar uma cerimónia iorubá adequada, uma passagem para celebrar o seu regresso a casa após quase 150 anos. E colocá-la no seu lugar de descanso final.
Os seus descendentes diretos são uma família muito alargada que vive ainda ativamente do legado de Sarah e James Davies, em Lagos. Os restos mortais de Sarah serão finalmente sepultados ao lado dos seus parentes no complexo familiar, dos seus filhos e netos, o que tem um significado absolutamente importante para os seus descendentes. Não foi por escolha de ninguém que Sarah foi enterrada em 1880 na Madeira. Foi ordenado pela família real britânica devido à doença de Sarah.
Como foi escrito em depoimentos. O seu enterro foi feito sem a presença da família. Foi enterrada sozinha sem que ninguém pudesse visitar a sua campa nos anos seguintes.
Uma vez que não consegui fotografar a Sarah, é um desejo fotografar os seus descendentes no complexo familiar em Lagos, agora que finalmente os encontrei. Inicialmente, criei os retratos de Kajote Barbara em 2015 e aprendi muito mais desde então.
É meu desejo usar este conhecimento e retratá-los numa série de homenagem aos seus descendentes diretos. Utilizarei também pertences pessoais (artefactos?) que foram oferecidos pela família real britânica no século XX durante uma visita a Lagos e que aí permaneceram arquivados com a família.
Quando terminar esta série. Considero a minha investigação e homenagem a Sarah terminada e sinto que ela está em paz eterna com os seus parentes mais próximos em Lagos.