A nova classe média está a ficar sem rede

Durante décadas, a classe média foi apresentada como o símbolo do progresso económico, o espaço onde o mérito era recompensado, o trabalho garantia estabilidade e o futuro se construía com algum otimismo. Mas algo mudou. Hoje, mesmo com mais anos de estudo, maior produtividade e jornadas de trabalho mais longas, milhares de portugueses vivem no…
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Mesmo com mais anos de estudo, maior produtividade e jornadas de trabalho mais longas, milhares de portugueses vivem no limite – e não estamos a falar dos mais pobres. Estamos a falar da classe média. O que pode ser feito – a nível individual, empresarial e político – para evitar que esta base da sociedade colapse.
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Economia

Durante décadas, a classe média foi apresentada como o símbolo do progresso económico, o espaço onde o mérito era recompensado, o trabalho garantia estabilidade e o futuro se construía com algum otimismo. Mas algo mudou.

Hoje, mesmo com mais anos de estudo, maior produtividade e jornadas de trabalho mais longas, milhares de portugueses vivem no limite — e não estamos a falar dos mais pobres. Estamos a falar da classe média.

Famílias que não têm apoios sociais, mas também não conseguem poupar. Jovens qualificados que trabalham a recibos verdes e não conseguem comprar casa. Pais que fizeram tudo “bem feito”, mas vivem com a sensação de que estão sempre a um imprevisto de distância de tudo ruir. Esta é a nova classe média: mais frágil, mais endividada, mais ansiosa.

Neste artigo, vamos explorar:
– Quem é realmente a classe média em Portugal;
– Quais os fatores que a estão a empurrar para a corda bamba;
– E o que pode ser feito — a nível individual, empresarial e político — para evitar que esta base da sociedade colapse.

Porque se a classe média cair… quem segura o país?

Quem é hoje a classe média em Portugal?

A classe média já não se define apenas pelo rendimento. Define-se também — e talvez mais — pelo esforço necessário para manter um estilo de vida minimamente estável.

Tradicionalmente, um agregado familiar de classe média seria aquele que, sem depender de apoios sociais, conseguiria:

  • Pagar uma casa com dignidade (mesmo com crédito);
  • Sustentar os filhos com acesso a educação e saúde de qualidade;
  • Fazer face a imprevistos moderados;
  • Ter alguma margem para lazer ou poupança;
  • E, idealmente, planear o futuro com alguma confiança.

Mas em Portugal, esse equilíbrio está cada vez mais difícil de alcançar.

O retrato atual

Em 2023 o rendimento médio por adulto foi de 1246 euros, representando um crescimento superior a 4% quando comparado com o ano anterior. (Fonte: https://ffms.pt/pt-pt/estudos/rendimentos-e-desigualdade)

O que parece, à primeira vista, um rendimento confortável, hoje mal cobre despesas básicas:

  • Preço do metro quadrado, em arrendamento e venda, que subiram mais de 15% em algumas zonas do país num ano; (Fonte: https://www.idealista.pt/media/relatorios-preco-habitacao/)
  • Inflação acumulada de aproximadamente 17% desde 2020;
  • Custo de vida disparado em alimentação, energia, transportes e seguros;

Com todos estes fatores, considerados, entendemos que a tradicional classe média é um grupo que vive em tensão permanente. Sem apoios, sem reservas e com crescentes responsabilidades.

Os 4 fatores que estão a empurrar a classe média para a corda bamba

A nova classe média portuguesa não está em colapso apenas por um motivo. Está a ser apertada por várias frentes — todas ao mesmo tempo. E, ao contrário do que muitos pensam, não é por gastar mal. É porque a equação entre rendimento, estabilidade e custo de vida deixou de bater certo.

Vamos olhar para os 4 fatores que mais a pressionam.

Inflação e custo de vida: quando o salário já não chega

Nos últimos anos, Portugal assistiu a uma escalada silenciosa do custo de vida.
A inflação acumulada entre 2020 e 2025 foi de aproximadamente 17%, com impacto direto na alimentação, energia, combustíveis, transportes e seguros.

Mesmo quem teve aumentos salariais viu o poder de compra encolher.
Exemplo: um aumento de 4% num contexto de inflação de 6% é, na prática, uma perda.

Resultado?

  • As compras do supermercado tornaram-se um exercício de matemática.
  • As famílias deixaram de planear férias e passaram a adiar consultas médicas.
  • E o “fim do mês” começa, para muitos, na segunda semana.

Pressão sobre a habitação: o novo luxo da classe média

A habitação é hoje o maior peso orçamental das famílias portuguesas.
As rendas em todo o país atingiram valores históricos, com a média nacional a aproximar-se dos 17€/m2.

A alternativa de comprar casa também se tornou um desafio, com um preço médio nacional a rondar os 3.000€/m2, um aumento de quase 8% em apenas um ano.

Mesmo casais com dois rendimentos estáveis veem-se impedidos de aceder à habitação própria ou digna, o que afeta diretamente a mobilidade e o planeamento familiar.

Endividamento e ausência de poupança

Sem margem financeira, muitas famílias da classe média recorrem ao crédito para equilibrar o mês: cartões, prestações, soluções “sem juros”. O problema é que isso gera uma ilusão de estabilidade — e um ciclo difícil de quebrar.

Simultaneamente, a taxa de poupança das famílias continua em mínimos históricos. Metade dos portugueses não têm capacidade de fazer face a uma despesa imprevista (Fonte: https://sapo.pt/artigo/metade-dos-portugueses-nao-consegue-fazer-face-a-uma-despesa-inesperada-68b785588077fb4a74a65963)

A ausência de um fundo de emergência ou de uma almofada financeira é um sintoma claro de uma fragilidade estrutural — não de má gestão.

Estagnação salarial vs. aumento de qualificações

Portugal é hoje um país com altos níveis de qualificação média da população ativa… e também um dos que menos paga a esses mesmos profissionais.

Muitos jovens licenciados entram no mercado com:

  • Contratos precários;
  • Salários líquidos pouco acima do mínimo nacional;
  • E perspetivas de progressão lentas, quando existem.

Mesmo em sectores mais técnicos ou especializados, a remuneração não acompanha a responsabilidade. Formamo-nos mais, trabalhamos mais, produzimos mais — mas ganhamos pouco mais (ou até menos, em termos reais).

Os riscos de uma classe média sem rede de segurança

Quando a base da sociedade — a classe média — começa a perder estabilidade, os efeitos não se limitam ao orçamento familiar. Afetam o bem-estar psicológico, a coesão social e a própria dinâmica económica do país.

Vamos olhar para os riscos mais significativos.

Aumento da ansiedade financeira e problemas de saúde mental

Viver com medo do próximo imprevisto tem um custo emocional.
O stress financeiro crónico está diretamente associado a:

  • Ansiedade, insónias e depressão;
  • Conflitos familiares ou conjugais;
  • Redução da produtividade no trabalho.

Quando a preocupação com o dinheiro ocupa espaço mental constante, torna-se mais difícil tomar boas decisões, planear o futuro ou até aproveitar o presente.

Vulnerabilidade a crises: um pequeno abalo, grandes consequências

Numa classe média sem poupança e com elevada carga financeira, qualquer imprevisto pode tornar-se crítico:

  • Uma doença, e o orçamento estoura.
  • Uma separação, e já não há como pagar o crédito.
  • Um despedimento, e os encargos acumulam-se em semanas.

Sem rede de apoio pública nem margem privada, o risco de queda é real — e rápido.

Impacto intergeracional: quando os filhos herdam a instabilidade

Pais financeiramente frágeis têm menos capacidade de:

  • Apoiar os filhos nos estudos;
  • Ajudar na compra da primeira casa;
  • Servir de rede em momentos de transição (estágio, desemprego, parentalidade).

Resultado? Uma geração mais jovem com menos autonomia e mais medo de errar — o que perpetua ciclos de insegurança.

Efeito na economia nacional: menos consumo, mais dependência

Uma classe média estável:

  • Consome de forma previsível;
  • Investiga, investe, inova;
  • Contribui para o sistema fiscal sem exigir apoio permanente.

Mas uma classe média fragilizada:

  • Reduz drasticamente o consumo;
  • Evita riscos e decisões de longo prazo;
  • Aumenta a pressão sobre os sistemas sociais (subsídios, saúde, habitação).

A médio prazo, uma classe média instável significa uma economia mais frágil, menos competitiva e mais desigual.

É possível reverter esta tendência?

Sim, é possível. Mas não será rápido — nem virá apenas de cima para baixo. A recuperação da classe média exige uma abordagem integrada, com ações coordenadas ao nível individual, empresarial e político. Porque esperar apenas por reformas estruturais pode ser tarde demais. E agir isoladamente, sem contexto ou apoio, pode não ser suficiente.

Vamos explorar o que está ao alcance de cada parte.

Ações ao nível individual: da literacia à estratégia

A primeira camada de proteção começa em casa.

Mesmo com rendimentos limitados, há decisões que podem reduzir a fragilidade:

  • Criar um orçamento realista e segui-lo com consistência;
  • Priorizar a criação de um fundo de emergência
  • Investir tempo (e algum dinheiro) em literacia financeira;
  • Evitar o ciclo de crédito fácil e consumo emocional;
  • Fazer escolhas de investimento alinhadas com objetivos reais e o perfil de risco.

A estabilidade não nasce de fórmulas mágicas — nasce de estratégia pessoal, disciplina e informação.

O papel das empresas: remuneração e responsabilidade

As empresas não são apenas entidades pagadoras de salários.
São estruturas que moldam a vida financeira dos seus colaboradores.

Há cada vez mais organizações a:

  • Rever políticas de compensação, prémios e benefícios;
  • Investir em formação financeira interna;
  • Criar programas de bem-estar que incluem aconselhamento económico.

Num contexto em que a retenção de talento é crítica, ser parte da solução financeira dos colaboradores é também uma estratégia empresarial inteligente.

O papel do Estado: corrigir distorções, incentivar a estabilidade

Políticas públicas eficazes podem aliviar pressões estruturais sobre a classe média:

  • Reformar a fiscalidade sobre o trabalho e sobre o investimento;
  • Criar incentivos reais à poupança e investimento de longo prazo (ex: benefícios fiscais mais acessíveis e transparentes);
  • Aumentar a oferta pública e privada de habitação a preços acessíveis;
  • Reforçar a educação financeira nas escolas — de forma prática e contínua.

Sem estas reformas, continuaremos a assistir ao esvaziamento da classe média — e com ele, ao enfraquecimento da economia nacional.

Conclusão: quando a base cede, o topo abana

A classe média não está falida. Mas está cada vez mais desprotegida, vulnerável e invisível nas prioridades de quem decide.

Nos últimos anos, assistimos a um processo silencioso de erosão:

  • Aumento do custo de vida sem compensação real nos rendimentos;
  • Pressões financeiras que impedem a poupança e forçam o endividamento;
  • Um sentimento coletivo de que se trabalha mais, mas se vive com menos.

E o mais grave? Tudo isto acontece num grupo que sempre foi o motor da economia, da estabilidade social e da mobilidade intergeracional.

É urgente reconhecer que não basta sobreviver. É preciso criar condições — reais, estruturadas e sustentáveis — para que a classe média volte a ter:

  • Espaço para respirar;
  • Recursos para planear;
  • E confiança para investir no futuro.

Porque no fim, a pergunta não é apenas financeira. É estrutural, económica e social: “Se a classe média cair… quem segura o país?”

 

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