O município de Idanha-a-Nova, no distrito de Castelo Branco, vai ter de pagar mais de 300 mil euros à artista plástica Cristina Rodrigues, pelo facto de as obras de arte que lhe foram devolvidas estarem “inutilizadas”.
Num acórdão datado de 02 de maio e consultado pela agência Lusa, o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) revogou a decisão do Tribunal Cível de Castelo Branco e admitiu a conversão da execução para entrega de coisa certa em execução para pagamento de quantia certa.
Em causa está uma decisão judicial que condenou o município a restituir à autora sete obras de arte, assim como a pagar-lhe a quantia de cinco mil euros, a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial.
A autora alegou, contudo, que as obras que lhe foram entregues pelo município, em março de 2022, são apenas “restos daquilo que em tempo seriam obras de arte” e que constituem “um conjunto de materiais mutilados e degradados que no passado integraram obras de arte, que estão completamente desvirtuadas, irremediavelmente irrecuperáveis e sem qualquer valor comercial”.
As obras em causa…
Entre estas obras estão três versões da icónica instalação da artista intitulada “A Manta” construída a partir de adufes produzidos em Idanha-a-Nova, e que são as peças mais valiosas do conjunto.
As obras a restituir eram: “A Moura Vestida I”, com o valor de 35.000€; “A Moura Vestida II”, com o valor de 35.000€; “A Moura Vestida III”, com o valor de 35.000€; “A Manta – Versão Mude”, com o valor de 88.142€; “A Manta – Versão Idanha”, com o valor de 100.000€; “A Manta – Versão Egerton”, com o valor de 25.000€; a “Guardian Angels”, com o valor de 15.000€
O perito, que assistiu à entrega das obras, diz que várias delas apresentavam-se “incompletas” e com “vários danos”. Num dos casos, chega mesmo a dizer que a obra foi entregue “completamente mutilada”, adiantando que “toda a obra de arte perdeu todo o seu valor comercial”.
… e o estado em que foram deixadas
A descrição do perito, que consta do Acórdão da Relação, é, de resto, expressiva quanto ao estado de cada uma das obras entregues:
“A Manta MUDE, incompleta, [surge] com vários danos, nomeadamente quatro adufes separados da obra e faltando seis adufes da obra”: o perito, no relatório que apresentou, refere, que “aquilo que foi entregue à autora não é sequer a ‘obra’ na sua forma original, é um conjunto de elementos que integraram, no passado, uma obra, que já não existe, porque esta se encontra com várias mutilações e diversos danos. Assim, é impossível restaurar a obra de arte para o seu estado original, tendo a obra de arte perdido todo o seu valor comercial”.
Sobre “a Manta Versão IDANHA”, o perito no relatório que apresentou, refere “que a obra foi entregue irremediavelmente irrecuperável. Esta obra estava completamente danificada, com vários adufes arranhados e raspados, outros manchados e outros ainda, com bolor. O que foram entregues à autora foram um conjunto de materiais completamente degradados, em suma, não foram entregues obras de arte, foram entregues restos de materiais que em tempos pertenceram a uma obra de arte”
A respeito de “a Manta Versão EGERTON”, o perito afirma que “todos os adufes que integram esta obra estão danificados, um inteiramente desfigurado, dois com a pele deformada, e os restantes arranhados, raspados e endentados. Esta obra não é recuperável. Está irremediavelmente irrecuperável, o que foram entregues à autora foram um conjunto de materiais completamente degradados”.
Sobre “Guardian Angels”, a peça foi devolvida “incompleta, com vários danos, estando em falta um dos anjos em faiança, as flores de papel de seda e as fitas de cetim”. O perito conclui que “a obra foi entregue completamente mutilada, toda a obra de arte perdeu todo o seu valor comercial”.
A descrição do Acórdão prossegue, sendo referido que nos estaleiros do município foram entregues várias obras: “Moura Vestida I, incompleta, com vários danos, estando em falta toda a parte de tecidos”, com o perito a sublinhar no seu relatório, “que a obra foi entregue mutilada e, como tal, já não existe; “Moura Vestida II, incompleta, com vários danos, estando em falta a cinta interior, designada por ‘vestido’”, apontando o perito “que a obra foi entregue mutilada e adulterada – no topo do vestido têxtil foram acrescentados uns nagalhos de nylon azul que estavam a segurar as rendas de algodão e as fitas de cetim entrançadas. O que foi entregue à autora. foram um conjunto de materiais completamente degradados”; “Moura Vestida II, completa, com vários danos”, repetindo, neste caso, o perito “que a obra foi entregue mutilada e completamente degradada e como tal, já não existe”.
Escreve a Relação que “para além das obras já não existirem, o que foi entregue, que não foram obras de arte, não tem qualquer valor comercial, ou seja, já não existe sequer a possibilidade da autora/recorrente poder retirar qualquer vantagem económica de uma exploração dessas obras o que, sob um ponto de vista económico é o objecto fundamental da proteção legal”. Nó Acórdão, lê-se que “o que foi entregue são restos de materiais que em tempos integraram os suportes” das obras de arte.
Nesse sentido, a artista requereu que a execução para entrega de coisa certa fosse convertida em execução para o pagamento de 333.142 euros, por ser este o valor das obras de arte que lhe deveriam ter sido ser entregues.
O pedido foi indeferido na primeira instância, mas a autora recorreu para o TRC, que lhe deu agora razão.
Autarquia vai recorrer
O município de Idanha-a-Nova afirmou, entretanto, que vai recorrer da decisão judicial que o condenou.
“A decisão da Relação [Tribunal de Coimbra] foi diferente da primeira instância [Tribunal Cível de Castelo Branco] e nós, como é evidente, vamos contestar, porque achamos que não faz sentido nada disso. As peças, como nós argumentamos, estiveram sempre ao dispor da artista para as levantar quando quiser. Se elas se degradaram, foi porque a artista não as quis levantar”, afirmou hoje o presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto (PS), à agência Lusa.
O autarca de Idanha-a-Nova salientou que a artista Cristina Rodrigues “teve sempre toda a disponibilidade do mundo para as levantar [obras de arte]”.
“Portanto, sobre essa matéria, nós vamos recorrer, como é evidente, para a instância superior”, concluiu.
Perfil de Cristina Rodrigues
Nascida no Porto, Cristina Rodrigues, artista plástica e arquiteta, divide a vida entre Manchester, em Inglaterra, e Idanha-a-Nova, onde possui o seu atelier em Portugal, tendo exposto, nos últimos anos, em cidades como Sevilha, Rio de Janeiro, Manchester, Berlim, Guangzhou, Lisboa, Alcobaça, Amarante, Viseu e Idanha-a-Nova.
A artista também fez uma parceria com a Fly London, tendo desenhado a linha Interstellar, composta pelas primeiras botas de assinatura da marca de calçado.
* com Lusa