Transporte tão fiável como água corrente. Este é o mote da Uber, a start-up pioneira no novo modelo de transporte de passageiros que está a mudar a mobilidade nas cidades. Antes, conseguia-se um táxi com o braço no ar ou chamando através de uma central. Hoje, estão ao dispor de todos serviços que permitem detectar carros perto dos clientes, saber de antemão estimativas de preços, conhecer o condutor, transacções sem dinheiro à vista.
O “unicórnio” co-fundado por Travis Kalanick foi pioneiro neste tipo de modelo. Está presente em 67 países e já está avaliado em cerca de 62 mil milhões de euros. Um valor colossal para um unicórnio (o maior do mundo), que consegue superar a capitalização bolsista de empresas históricas como a FedEx ou a General Motors. Entrou no mercado com rapidez para aniquilar a concorrência e captar o máximo de utilizadores. Hoje, segundo Kalanick, a aplicação tem 40 milhões de clientes mensais activos. Contudo, nem tudo tem sido brilhante.
Segundo a agência Bloomberg, a Uber teve prejuízos de cerca de 1,16 mil milhões de euros nos primeiros seis meses de 2016. A isso somam-se os vários desafios legais e laborais que tem encontrado nos diferentes países e a própria replicabilidade do modelo de negócio, que pode fazer com que a concorrência fique cada vez mais acirrada, como exemplificam os casos de países como a Índia e a China. Neste último teve, inclusive, de bater em retirada, vendendo a operação ao principal concorrente, Didi Chuxing, depois de ter perdido quase 2 mil milhões de euros no “combate” pelo mercado do Império do Meio em apenas dois anos.
Em Portugal, tal como no resto do mundo, a Uber tem enfrentado complicados desafios, como ficou bem espelhado na manifestação de 10 de Outubro em Lisboa. Rui Bento, director-geral da operação da Uber no mercado nacional, defende que o credo da empresa é somente “o compromisso de melhorar a mobilidade nas cidades”. Mas esse objectivo tem sido dificultado por desafios legais. Num parecer final à actividade destas plataformas pedido pela Assembleia da República à Autoridade da Mobilidade e dos Transportes, ao qual a FORBES teve acesso, o regulador do sector é taxativo ao dizer que a plataforma está ilegal, que não permite uma verdadeira liberdade de escolha devido à opacidade do mecanismo que “decide” os preços, e recusa a convivência de dois sistemas paralelos – um com preços convencionados e outro sem.
“A Uber está ilegal e lesa não só os interesses dos privados, mas também o interesse público. Neste contexto, espera-se que as entidades com competências de fiscalização, incluindo a polícia e as forças de segurança, actuem em conformidade com a declaração de ilegalidade do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa”, lê-se no documento.
Apesar destes contratempos, o negócio parece estar a correr de vento em popa. A empresa chegou em Julho de 2014 a Portugal com o serviço Uber Black, dando início a uma guerra com o sector dos táxis que dura até hoje. Em Dezembro, apresentou o UberX, com automóveis de gama mais baixa e preços menores.
O volume de utilizadores disparou com este lançamento, revela o director-geral da empresa, sem precisar números. Para Rui, o ano de 2015 foi de “consolidação” e 2016 “foi um ano em que procurámos trazer novos serviços inovadores ao mercado de mobilidade”, explica. Exemplo, o lançamento mundial do Uber Green, serviço assegurado por uma frota de 20 carros eléctricos com tarifa igual à do UberX.
Para este mês, por altura da Web Summit, será também lançado o UberPOOL, proposta que permite dividir a corrida com outros passageiros, “apanhados” a meio do caminho, e que promete beliscar o transporte público tradicional, como os autocarros ou o metropolitano.
Trabalhar com e “contra” a Uber
Luís Martins é proprietário da ObviousIgnition, uma empresa fornecedora de serviços para a Uber. Tem apenas um carro que é conduzido 24 horas por dia por cinco pessoas. “Em média, cada turno de oito horas faz entre 12 a 15 viagens”, conta Luís à FORBES. Do bolo total, a Uber fica com 25% da facturação diária. Luís avança que a sua empresa encaixa, em média, às sextas, sábados e domingos, entre 150 e 200 euros por dia.
Mas a manutenção, gasolina, limpeza, seguros, impostos de actividade são todos suportados pela ObviousIgnition. Fora salários, gasolina e manutenção, a empresa fica com uma margem de lucro entre os 35% e os 40%. Os salários dos motoristas são pagos à comissão: cada condutor ganha 30% da facturação bruta que fez no seu turno.
Para ser parceiro da Uber é essencial as empresas estarem registadas junto do Turismo de Portugal como empresa de transporte de passageiros para turismo. “Sem essa licença, nunca poderíamos operar”, assume o empresário. O sistema de pagamento é igualmente simples: no final de cada semana, a Uber paga ao parceiro a quantia facturada, já descontada a parcela devida à plataforma de 25%. Quem passa as facturas aos clientes é a prestadora de serviços, que liquida IVA. Quem passa a factura (numa base semanla) ao parceiro da Uber é a Uber BV, que está sediada na Holanda.
Tal como muitas outras multinacionais portuguesas, também a Uber recorre a uma holding, que está sediada num país fiscalmente mais vantajoso, para facturar. Contudo, nas contas da Uber Portugal analisadas pela FORBES, a subsidiária registou vendas na ordem dos 715 mil euros no ano passado, apesar de o encaixe ser feito na Holanda. Rui explica que este montante é referente a capital injectado pela casa-mãe na empresa portuguesa por conta de serviços prestados no mercado local ao nível de apoio e divulgação da plataforma junto de utilizadores e operadores. No fundo, a Uber International paga à Uber Portugal por serviços de marketing e logística.
Do lado oposto à plataforma de ride-hailing e dos seus parceiros está o sector tradicional dos táxis. Florêncio de Almeida, presidente da Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL), diz que, nas negociações com o Ministério do Ambiente, que tutela o sector dos transportes, o seu maior cavalo de batalha foi a criação de contingentes para os novos serviços de transporte de passageiros em veículos descaracterizados, para evitar a saturação do mercado. “Pode ser até um contingente fixado à parte dos táxis”, diz, sugerindo um número: 300 carros, ou 10% do contingente de táxis existente na cidade de Lisboa.
A fixação das tarifas é algo que Florêncio também exige que seja revisto. “Porque é que o Governo não retira os preços aos táxis?”, pergunta-se, revelando que propôs essa medida ao Executivo. “Assim não há taxímetro, cada qual cobra o preço que quiser, e vamos ver onde é que o público fica defendido”, diz, fazendo referência às “subidas de preços” praticadas pela Uber em alturas de maior procura, como a passagem de ano. “Mas tudo é negociável”, reconhece.
Poucas barreiras à entrada
Uma das razões para a ascensão das plataformas de transporte de passageiros de carros não identificados no mercado mundial é o facto de o modelo lançado pela Uber ser facilmente replicável: basta criar uma plataforma digital para competir neste mercado desregulado pela tecnologia. Nos EUA, por exemplo, existem já vários players, como a Lyft ou a Juno, empresas que lutam por quota de mercado.
Em Portugal, uma dessas plataformas é a Cabify. Nuno Santos, director-geral da start-up de origem espanhola em Portugal, revela à FORBES que quando o serviço foi lançado no país, passou a ser um dos casos de sucesso da Cabify a nível internacional. Contudo, não consubstancia o “sucesso” em números, defendendo-se com o facto de ser “informação de mercado”.
Nuno revela apenas que já superaram o milhar de viagens diárias nas três localizações que têm em território nacional (Lisboa, Porto e Madeira), e adianta que houve interesse formal de motoristas de táxi para entrar na plataforma, tanto a nível individual como de empresas já estabelecidas no mercado.
O modus operandi da Cabify é em tudo igual ao da Uber. Esta replicabilidade pode ser uma séria ameaça à sustentabilidade da pioneira Uber. É nesse sentido que aponta um relatório da consultora canadiana BCA Research. Segundo o documento, “conduzir pessoas é uma tarefa que exige competências baixas e exigências de capital extremamente baixas e, por isso, o retorno do investimento deverá ser negligenciável”.
De acordo com Brian Piccioni, co-autor do relatório, “a fraqueza fundamental no modelo de negócio da Uber é simplesmente o facto de as barreiras à entrada serem baixas e estarem a diminuir: várias empresas desenvolveram aplicações semelhantes à da Uber e todas as empresas desse género beneficiam de quaisquer batalhas regulatórias ou legais que a Uber tenha levado a cabo.” Para o especialista, “mal as barreiras caiam para um serviço de transporte, estas caem para todos os serviços de transporte. Em economia, poucas barreiras à entrada implicam um baixo retorno do investimento”, diz.
O sector dos táxis não tem ficado parado. Acompanha os tempos e já há soluções criadas especificamente para ele. É o caso da MyTaxi, uma plataforma que se diferencia da Cabify e da Uber num ponto essencial: só agrega táxis tradicionais. Começou por ser uma start-up de origem alemã, fundada em 2008, e em 2014 foi totalmente adquirida por uma subsidiária da construtora automóvel Daimler – actualmente está num processo de fusão com a plataforma de origem britânica Hailo, criada em 2011.
Em Portugal, a MyTaxi opera segundo um modelo de comissão aplicada aos taxistas que entrará em vigor, prevê-se, em Janeiro. Por enquanto, estão em processo de lançamento e já contam com mais de 600 carros em Lisboa, segundo Antonio Cantalapiedra, director-geral da MyTaxi para Portugal e Espanha. O número de utilizadores não revela, mas avança que até agora foram feitas 82 mil descargas da aplicação.
Um dos problemas que tem vindo a afectar as plataformas de transporte de passageiros em viaturas descaracterizadas é a crescente litigância laboral no mundo inteiro, relativa à precariedade e aos baixos salários associados a este tipo de serviços. Por exemplo, em Londres, motoristas do serviço UberEats, de entrega de refeições, fizeram uma greve em Agosto passado exigindo mais protecção laboral. Em Nova Iorque, foi criada uma associação de motoristas independentes que já logrou uma pequena melhoria das condições dos trabalhadores, segundo o The New York Times. Contactada pela FORBES, a Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (FECTRANS), revela que não tem registo de queixas ou pedidos de apoio da parte de motoristas de empresas associadas a plataformas como a Uber e a Cabify.
Brishen Rogers é um académico norte-americano da Temple University Beasley School of Law e autor do estudo “The Social Costs of Uber” (“Os custos sociais da Uber”), onde analisa o impacto deste tipo de tecnologias no mundo do trabalho. De acordo com a sua análise, o especialista antecipa uma “crise no horizonte próximo no mercado de trabalho de baixos salários”, acrescentando que “a sociedade está impreparada para lidar com ela”. À FORBES, o académico diz que uma das formas de proteger os trabalhadores é o Estado entrar na equação. “Sem reformas legais, os trabalhadores vão perder, ter salários baixos, poucos benefícios e pouca protecção”, explica.
O director-geral da Uber Portugal defende que a sua empresa tem sido “uma fonte de criação de emprego”. Apesar de a Uber Portugal só empregar directamente 8 pessoas, com mais 10 orientadas exclusivamente para o apoio a parceiros e a utilizadores em regime de outsourcing, defende que a plataforma já deu origem a vários novos postos de trabalho: se até Fevereiro de 2016 eram 1000 os motoristas parceiros da Uber, hoje, segundo Rui, existem mais de 2500. “Contribuímos para uma oportunidade para o sector”, remata.