Kristo Käärmann, co-fundador da Transferwise, está atrasado para o jantar. O motorista da Uber apanhou-o na sede da empresa e seguiu pelo caminho mais longo até ao Art Priori, um restaurante trendy situado num emaranhado de ruas empedradas no centro histórico de Talim, capital da Estónia.
O motorista reconheceu Käärmann e queria ter tempo para lhe falar da ideia que teve para uma nova app. No restaurante, Taavet Hinrikus, co-fundador e presidente executivo da Transferwise, esperava pacientemente por Käärmann e fez um comentário mordaz depois de ouvir a explicação do seu sócio: “A Estónia é um país pequeno. É natural que as pessoas conheçam a Transferwise. O lado mau é que já temos motoristas da Uber a fazer fila”.
A reacção deve-se ao simples facto de também ele ter passado por situações idênticas com outros motoristas. É o que acontece quando um país pequeno do Báltico, com 1,3 milhões de habitantes, perspectiva o seu futuro como incubadora tecnológica e quando a pessoa em questão é o fundador de uma start-up unicórnio (valor acima dos 1000 milhões de euros).
Digamos que Käärmann e Hinrikus são uma espécie de Mark Zuckerberg e Jeff Bezos estónios com acesso a investidores premium que podem financiar o hype que se vive actualmente no país. No ano passado, o private equity Andreessen Horowitz injectou cerca de 51,7 milhões de euros no projecto, o que permitiu a Käärmann e Hinrikus ampliar a equipa para 600 pessoas. Na verdade, esse dinheiro e mão-de-obra vão ser-lhes úteis.
Ao criarem uma plataforma peer-to-peer (P2P), que opera transferências internacionais de dinheiro – uma espécie de Skype para transferências –, concorrem directamente com os bancos globais, incluindo gigantes há muito estabelecidos no mercado, como a Western Union. “Temos um argumento conceptual: não é forçoso que as transferências de dinheiro tenham custos elevados. No fundo, limitamo-nos a mover electrões de um lado para o outro”, diz Käärmann.
A avaliação actual da Transferwise diz-nos que se trata de uma teoria bilionária. Se se provar que está certa, há fortes probabilidades de os dois fundadores, cujas participações rondam 20%, virem a ganhar uma fortuna considerável. Além disso, pode legitimar a estratégia digital da Estónia e ajudar à queda do oligopólio que controla fluxos monetários de 2,6 biliões de euros em todo o mundo.
Incubadora de start-ups
A Estónia, situada no ângulo que separa a Letónia e a Lituânia da Rússia, deve o estatuto de Silicon Valley do Báltico aos antigos opressores: os soviéticos. Durante a Guerra Fria, o Kremlin tentou sufocar o movimento independentista que então ganhava forma, restringindo o ensino de filosofia e ciências sociais nas universidades estónias.
A ênfase foi colocada nas áreas de informática e das tecnologias de informação, ao ponto de os programadores de software estónios desempenharem um papel central quer no programa espacial soviético quer de espionagem para o KGB.
Em 1989 deu-se a queda do Muro de Berlim, e a independência da Estónia teve lugar dois anos depois. Volvidos três anos, aparecia o browser Netscape. Libertos da burocracia soviética, os estónios – que falam um idioma da família de línguas urálicas, à qual também pertence a língua finlandesa – criaram uma “e-república” empreendedora, contornando assim as limitações do país ao nível das infra-estruturas convencionais.
Na Estónia, praticamente tudo é digital e descentralizado. As pessoas raramente têm de deslocar-se a instituições públicas para tratar de burocracias e tanto as redes wi-fi como o acesso à internet em banda larga são uma realidade em todo o país há mais de uma década.
Os estónios votam on-line e usam o telemóvel para efeitos de identificação desde 2007. Desde 2000, pagam o estacionamento por sms. A Estónia não só apostou na programação como disciplina nuclear do currículo escolar, como tem mais start-ups per capita do que qualquer outro país na Europa – factores que lhe permitiram dar ao mundo sucessos tecnológicos como o Skype e o popular serviço de partilha de música Kazaa.
Foi neste ambiente – imerso na convicção de que nenhum sistema é sagrado ou imutável – que Hinrikus e Käärmann, hoje com 35 anos, cresceram, bem como toda a equipa da Transferwise. Apesar de a sede e a unidade de vendas estarem em Londres, dois terços dos colaboradores, incluindo a maior parte dos programadores, vivem em Talim.
Um negócio de uma necessidade
Käärmann, que cursou engenharia informática, tornou-se conhecido com a criação da versão báltica e escandinava do Yahoo Finance. Mais tarde, viria a desenvolver uma ferramenta de consultoria centrada na actividade bancária e financeira para a Deloitte, em Londres.
Foi aí que conheceu o seu compatriota Hinrikus, um programador que, durante a universidade, trocou as aulas pela construção de sites. A dada altura foi contratado pelos fundadores do Skype e acabou por ser expulso da faculdade. Mais. Hinrikus foi a primeira pessoa que o Skype contratou.
A epifania da dupla teve lugar em 2007, enquanto expatriados em Londres. O então director de estratégia do Skype – que operava a partir da Estónia, logo, recebia em euros – percebeu que precisava de libras para pagar os seus gastos, enquanto Käärmann, pago em libras, precisava de euros para o empréstimo que financiava a sua formação académica e para a hipoteca da casa em Talim.
Como os bancos cobram comissões nas transacções e aplicam margens sobre as taxas de câmbio, e a dupla tinha de fazer transferências frequentes, concluíram que gastavam uma pequena fortuna neste processo. A dada altura, Käärmann chegou a pensar que o HSBC perdera parte do seu bónus de Natal pelo facto de terem entrado menos 500 euros na conta do que o esperado. “O banco fica com 10%, ou mesmo 12%, do dinheiro transferido. Quando passei por isso, pus-me a pensar: ‘Não haverá alternativa?’ No fundo, percebemos que não é preciso movimentar o dinheiro. Não é preciso fazer uma transferência internacional porque o dinheiro existe onde tem de existir”, explica Hinrikus.
Os dois engenheiros de software descobriram uma solução simples: Hinrikus passaria a transferir euros da sua conta na Estónia para a conta bancária de Käärmann num banco estónio, ao passo que Käärmann passaria a transferir libras da sua conta britânica no HSBC para a que Hinrikus tinha no Lloyds.
Eis a solução para não pagarem comissões sobre as transferências internacionais nem serem penalizados ao nível das taxas de câmbio, uma vez que ficariam sujeitos às taxas de câmbio reais. Num abrir e fechar de olhos, outros estónios fizeram saber pelo chat do Skype que gostariam de poder transferir dinheiro da mesma forma. Este fórum de transferências de dinheiro ligado ao Skype terá, eventualmente, contribuído para o que viria a ser mais tarde a Transferwise.
Em 2011, deixaram os respectivos empregos e conseguiram autofinanciar-se durante um ano até enveredarem por uma ronda de investimento semente (seed capital), na qual reuniram cerca de 1,2 milhões de euros. Até à data, a Transferwise conseguiu cerca de 81 milhões de euros nos fundos de capital de risco.
“A confiança foi aumentando à medida que a adesão ia crescendo, pois dava a ideia de que estávamos, de facto, a resolver um problema”, realça Käärmann, para quem transferir dinheiro digitalmente deve ser tão simples como enviar um e-mail. “É um enorme problema e só poderá ser resolvido procurando soluções”, acrescenta.
Como funciona a Transferwise
Antes de me deslocar à Estónia, descarreguei a app e transferi perto de 270 euros via Transferwise para converter em euros. A Transferwise utiliza um sistema semelhante ao que as grandes instituições financeiras usam para a realização simultânea de compra e venda de acções (cross-trade), sem incorrer em custos ou comissões, através de um sistema interno de correspondência entre compradores e vendedores.
Neste caso, o preço mid-market oficial oferece clareza – nenhum dos lados está a especular –, pelo que se trata de um simples ajuste no balanço, uma vez que os computadores da Transferwise verificam simultaneamente se ambas as partes têm dinheiro para a permuta.
Na prática, o sistema faz com que os fundos raramente atravessem as fronteiras internacionais: a start-up tem estas “rotas monetárias P2P” operacionais para 30 combinações de países. E eis que, 90 minutos depois, 270 euros estão numa conta europeia. Não foi aplicado nenhum spread, apenas uma comissão de 3 euros, cujo valor é calculado em função do montante transferido.
Por exemplo, numa transferência de 100 mil dólares (cerca de 89 mil euros) aplica-se uma comissão de 710 dólares (cerca de 634 euros).
Os meus 300 dólares não passam de uma ínfima parcela dos cerca de 670 milhões de euros que a Transferwise movimenta todos os meses. Cerca de um milhão de pessoas em aproximadamente 60 países envia ou recebe dinheiro através deste serviço.
As pequenas comissões começam lentamente a dar frutos. A empresa gera receitas mensais de cerca de 4,5 milhões de euros, comparando com os 890 mil euros de há um ano.
Num país em que as temperaturas no Verão não vão além dos 15ºC, e onde o Inverno, além de gélido, não oferece mais do que seis horas de luz solar, a sede da Transferwise em Talim – um edifício de vidro, aço e betão – não podia ser mais contrastante. Aqui prevalece o espírito “Gymboree”, as cores garridas, o conforto e os clichés bem-humorados.
Há trotinetes para as pessoas se deslocarem pelos diferentes espaços, uma mesa de pingue-pongue, sauna e uma sala no sexto piso repleta de bolas de plástico para as pessoas descontraírem. Isto a somar à “sala dos unicórnios”, decorada com Pequenos Póneis de peluche e um arco-íris gigante esculpido na parede.
Ironias à parte, há um aspecto importante que pode passar despercebido neste universo algo infantil: a Transferwise até pode brincar no recreio dos grandes bancos mas, em última instância, os seus clientes são os consumidores individuais. Uma transferência bancária pode ser dez vezes mais cara do que a Transferwise, mas as grandes transacções continuam sujeitas a erros de arredondamento, sendo que se trata de um método testado e, regra geral, seguro. Por ora, porém, a maior parte dos bancos que usam a rede SWIFT para transferir dinheiro têm ignorado a Transferwise.
O volume anual de operações cambiais representa mais de 130 biliões de euros, dos quais 2,7 biliões de euros correspondem a operações realizadas por consumidores individuais. Estamos a falar de um mercado com uma dimensão razoável, que gera receitas superiores a 40 mil milhões de euros.
E se pensarmos que há cada vez mais pessoas a trabalhar noutro país que não o de origem – hoje, 230 milhões em todo o mundo –, rapidamente constatamos o enorme potencial de crescimento. Os clientes da Transferwise usam o serviço essencialmente para transferir dinheiro entre as suas contas bancárias, para cobrir despesas no país de origem, como a hipoteca da casa ou a conta de telemóvel. Outros optam por fazer aquilo a que a Transferwise chama “use um amigo como multibanco”.
Quando cambiei dólares por euros para usar na Estónia, por exemplo, utilizei a app para transferir dinheiro para a conta de um habitante local, visto não ter uma conta em euros.
Na sombra dos gigantes
No curto prazo, os verdadeiros concorrentes serão a Western Union (WU) e a MoneyGram. As transferências feitas através do site e app da WU geram receitas de cerca de 268 milhões de euros, muito embora as lojas físicas da empresa – cerca de 600 mil em todo o mundo – assegurem a maior fatia das receitas.
Para competir de forma eficaz, a Transferwise tem de fazer a diferença tanto ao nível do interface (confesso que foi mais fácil enviar dinheiro pela sua app que pela da WU) como dos preços. Hinrikus e Käärmann são adeptos da segunda vertente. Por toda a empresa se vêem slogans como “Cobrar o menos possível” ou “Cliente > equipa > ego”.
Para criar escala, a equipa tenta cobrar menos 80% do que os bancos locais. Uma nova parceria na Índia permitiu baixar os custos nas transferências dali para os EUA, e Hinrikus usou a poupança para reduzir as comissões nesta rota de 1,5% para 0,9%. “No banco, o mote seria ter mais lucro”, realça Wade Stokes, director operacional da Transferwise e ex-executivo do Swedbank.
No longo prazo, a Transferwise enfrenta uma ameaça existencial, visto a sua tecnologia P2P datar dos anos 1990. A tecnologia blockchain, que está por trás da Bitcoin, é muito mais sofisticada e tem o potencial de criar rupturas quer ao nível das transacções individuais quer empresariais. Gil Luria, analista da Wedbush Securities, estima que, dentro de uma década, 20% das transferências internacionais P2P serão feitas via blockchain, assente no registo público de transacções.
Esta tecnologia poderá eliminar intermediários e executar transferências de dinheiro praticamente instantâneas. Para Luria, a app da Transferwise é apenas “uma fase intermédia”.
Ben Horowitz, da Andreessen Horowitz, principal investidor da Transferwise, sublinha que a start-up está protegida pelo facto de ser um negócio de nicho.
“Sou daqueles que defende que os pagamentos de pessoa-para-pessoa no mundo desenvolvido não requerem a implementação de uma ‘solução Bitcoin’. A blockchain é uma tecnologia inovadora e particularmente relevante, pois pode ser usada num vasto leque de aplicações, mas aquelas que vão aparecer primeiro são precisamente as que ainda não existem hoje.”
Hinrikus acrescenta que, “nos tempos que correm, e no que respeita às transferências internacionais, a blockchain não passa de uma discussão teórica. A versão prática existe numa empresa muito pragmática chamada Transferwise, que todos os dias a põe em prática!”.
É verdade, mas se começar a render dinheiro, é natural que os grandes bancos deixem de ignorá-la e que outras start-ups, como a WorldRemit e a Xoom (detida pela PayPal), revejam a sua estratégia. Os estónios têm de acelerar.
A ambição de Hinrikus e Käärmann é conseguir que a sua tecnologia permita pagamentos instantâneos. Actualmente, garantem que uma transferência entre o Reino Unido e a Zona Euro é executada em 17 segundos, mas, no caso dos EUA, a operação é mais lenta devido à lei Dodd-Frank, que exige uma margem de 30 minutos para eventuais cancelamentos por parte dos clientes.
Apesar de tudo, os fundadores não se mostram preocupados. O primeiro sucesso tecnológico estónio, o Skype, conquistou 30% do mercado internacional de chamadas de voz sem ameaçar a existência das grandes operadoras de telecomunicações, como a Verizon e a AT&T.
“Transferir dinheiro de A para B não é a coisa mais estimulante do mundo, mas temos conseguido fazê-lo de uma forma que traz satisfação aos nossos clientes num local onde não esperavam que isso acontecesse”, diz Hinrikus.