À volta de Artur Bordalo acumulam-se partes de sucata, pedaços de plástico, ferro, pregos, brinquedos velhos, cabos, tubos que irão transformar-se numa obra de arte. Neste caso, uma zebra. “Vou organizando as peças para ver o que vou precisar de usar. Isto é quase como brincar a um Lego onde podemos alterar as peças”, explica à FORBES.
Com uma grande ilha de material à sua volta, vai escolhendo aquilo que precisa à medida que trabalha. Corta, martela, pinta, dobra, e aparafusa um conjunto de materiais aos quais poucos pensariam dar uma segunda vida. E, neste caso, bem mais nobre do que a primeira.
Artur Bordalo, mais conhecido como Bordalo II (o seu nome artístico nasce de uma homenagem ao seu avô, o pintor e artista plástico Real Bordalo), adoptou o lixo como matéria-prima para a construção das suas esculturas e instalações, transformando sucata e materiais diversos em elementos que darão forma a figuras novas.
Sucata variada num armazém em Xabregas, na zona ribeirinha oriental de Lisboa, zona que tem sido recentemente muito procurada pela comunidade artística para estabelecerem os seus ateliers e galerias.
O escultor, vestido com roupa velha de trabalho, conversa com a FORBES em frente àquela que vai ser uma das suas futuras obras. O espaço é caótico. A banda sonora do atelier é o ruído da serra eléctrica e uma playlist de vaporwave no Spotify a sair de uma coluna algures. É um atelier verdadeiramente contemporâneo. “Tenho bastante material, algumas estão cortadas, algumas estão em bruto. Vou trabalhando. Antes de começar a fazer a peça, tendo já a imagem definida, faço aqui uma pesquisa pelo estúdio por coisas que possam servir e corto outro tipo de peças em função daquilo que possa necessitar”, detalha.
Há peças que demoram semanas a construir. Outras demoram dias. É um processo criativo que exige naturalmente liberdade de pensamento e a tranquilidade de não haver prazos. A matéria-prima peculiar ganha uma vida nova, depois de ter sido condenada a desaparecer, dada como desnecessária e inútil.
É transformada em algo esteticamente válido e com uma estrutura grandiosa que não esconde a natureza dos materiais.
A exposição que Bordalo II inaugurou em Paris, na Galerie Mathgoth, no final de Janeiro, chamada “Acordo de Paris” – numa óbvia referência ao tratado que vincula centenas de países a diminuírem as emissões de gases estufa para a atmosfera de forma a amenizar as alterações climáticas – vinca o compromisso com esta luta contra o desperdício.
É uma luta pessoal que quer sair do círculo restrito dos mercados de arte. “Repito vezes sem conta que o meu trabalho não é elitista. Eu trabalho para o público. Interessa-me bastante que a minha arte seja entendida por todos porque acho que chegando a toda a gente, e com uma obra de arte que possa ser entendida, pode-se falar de imensos assuntos interessantes, nomeadamente de assuntos ecológicos, para mim fundamentais”, defende.
Criar sem olhar a meios
O tipo de artistas que mais aprecia e que o inspira é aquele com um trabalho que tende a comunicar com o público em geral “e que foge de um trabalho apenas decorativo”, diz. Artur estudou Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa – não acabou a licenciatura – mas não lamenta a escolha. “Toda a experiência é importante”, defende, “mas se tivesse ido para Escultura, tinha tirado mais proveito”, já que teria mais contacto com os materiais e menos teoria, algo que em Pintura não podia escapar.
A sua verdadeira escola é da arte pública – tendo começado a criar na street art, no universo do graffiti. As suas incursões por sítios abandonados levaram-no, até, a um contacto com o lixo que hoje é a sua matéria-prima. “Quando se faz graffiti na rua, fora de horas, com sítios com menos visibilidade, passa-se por um bocado por todo esse ambiente decadente, sítios onde vou buscar muito do meu material”, esclarece.
Bordalo II cresceu a ver graffiti na rua e omnipresentes trabalhos de design, e é daí que, defende, as gerações mais novas fizeram a sua aprendizagem de cultura visual. Tendem a apreciar mais este tipo de intervenções públicas por terem crescido com uma miríade de abordagens de design em diferentes suportes.
A parede é um deles. É na rua que pensa quando produz, e não na galeria ou no hall de entrada de alguém. Pelo que o mercado não é uma preocupação tão presente para o artista.
Isto é, não é a pensar no mercado que cria e que faz as suas obras. Não encara as suas peças como activos, garante.
“Há pessoas que investem em arte e é uma coisa que faz parte. Mas eu acredito num equilíbrio. Se o meu trabalho passar a ser um activo e nós passarmos a fazer menos peças para as valorizar mais, economicamente pode ser uma coisa bastante mais lucrativa, mas como artista não é suficiente. Porque o que eu gosto é de trabalhar, fazer coisas diferentes, acessíveis, algumas delas, a um público mais abrangente”, resume, antes de rematar com a sua postura face ao lado mercantil da arte: “É uma coisa quase que paralela e que me passa um bocado ao lado.”
Trabalhar nas ruas
A parte da recolha de lixo é “interessante”, diz Artur. Infelizmente há muito e não é difícil de encontrar.
“Leva-nos a buracos onde o comum mortal não vai”, acrescenta Artur, como a fábricas abandonadas, edifícios devolutos. Em 2016 – ano dos dados mais recentes do Eurostat – produziram-se 2,5 mil milhões de toneladas de lixo na União Europeia.
Destes, 14,7 milhões de toneladas eram de produção portuguesa. É um problema colossal, pensar como lidar com a sobreprodução e com o sobreconsumo que vem com a infinidade de produtos e serviços ao nosso dispor.
Bordalo II trabalha sem estar vinculado a galerias e a outras instituições, recusando para já um modelo que torna o artista dependente de uma ou mais galerias que chamam a si a responsabilidade de promover o artista junto de coleccionadores e instituições. “Sou completamente independente. Faço parcerias com galerias, ou com outras equipas de produção, conforme os projectos, mas sou eu que giro tudo, desde carreira ao trabalho que há para fazer. Tenho a minha equipa [de 4 pessoas além de Bordalo, mais freelancers pontuais] e nós damos conta do recado sozinhos.”
As pessoas que procuram as peças de Bordalo II são de todas as nacionalidades. A projecção, nota, começou a nascer primeiro fora do país do que domesticamente. A ligação com os públicos e com os compradores é feita de forma directa – e tudo graças a tecnologias de invenção recente, e hoje omnipresentes. “O fenómeno das redes sociais é muito positivo para os artistas, porque acaba por facilitar muito o facto de não estarmos dependentes de instituições mais restritas para conseguir que o trabalho tenha visibilidade”, diz.
O facto de ser um artista de rua, de ser essa a sua matriz, não o deixa tirar os olhos da sua verdade artística – apesar de produzir naturalmente peças que não se enquadram no espaço público.
“Há um equilíbrio entre uma coisa e outra”, assume, “uma coisa compõe a outra. Este tipo de trabalhos [para clientes particulares] leva-me a poder explorar séries diferentes, outro tipo de materiais que não posso utilizar na rua”, explica, encarando esses trabalhos como um complemento da arte pública.
Não teme uma mercantilização extrema das suas obras – “as pessoas que compram o meu trabalho é porque gostam e não tanto como investimento”, garante. Até porque vai continuar a cortar, soldar, picar, nesse enorme espaço de criação que é a cidade. “Vou continuar a trabalhar na rua, sem dúvida”, diz Artur.