Como é que descreve o seu processo criativo?
Este foi como o meu primeiro comic mais longo. Tinha feito uma versão mais curta deste mesmo livro, que foi publicado apenas na Galiza, tinha 48 páginas, a preto e branco. Ele ganhou um prémio na minha cidade, na Coruña, e foi aí que comecei a ampliá-lo. Estudei design industrial, então era a primeira vez que me deparava com este processo. O que fiz foi trabalhar a partir da memória para escrever algumas histórias, porque é uma auto ficção, então tinha muito da minha história de vida. Comecei a plasmar essas memórias e a acumular histórias curtas, de uma a três páginas, e quando já tinha bastante brincava a organizá-las e aí já se gerava uma narrativa. Essa foi uma forma de começar, mas era como se eu nunca tivesse um guião estruturado, embora tivesse algumas temáticas claras, como a saúde mental, cuidados, crenças, psiquiatria. Eu ia inserindo histórias de uma forma muito desordenada, então o processo foi muito de tentativa e erro. Na parte gráfica tinha claro que queria que houvesse um contraste entre a dureza da história e um parte gráfica mais colorida, mais ingénua. Porque acho que isso por si só já dava um dramatismo e uma força à história. Por outro lado, porque a psicose e os delírios, digamos que é um tema que ainda é tabu, e eu achava que essa estética poderia facilitar a aproximação a ele. O bordado também cumpre essa função, porque o bordado é algo suave, é algo que nos remete mais ao maternal, ao lar, que geralmente está nas flores de uma toalha de mesa.
É a escrita que tem mais influência na ilustração ou o contrário?
Acho que me sentia mais confortável e segura com a parte gráfica, a parte da escrita intimidava mais. Na verdade, usar a voz da menina também foi um recurso para usar uma linguagem muito sintética e que me ajudasse a avançar. Agora, depois de ter passado por esse processo, sinto-me de outra maneira, mas naquele momento a questão da escrita realmente intimidava-me muito.

Como surgiu a ideia de utilizar o bordado?
Não estava previsto desde o início. Na verdade, quando o incorporei, o livro já estava bastante avançado. Mas em casa tenho uma coleção de arpilleras bolivianas, uma forma de criação que vem da América Latina. São como colagens feitas de tecido e bordados. Durante a pandemia, decidi fazer uma das páginas da banda desenhada com essa técnica e fiquei fascinada com o processo do bordado, que é um processo lento, que obriga a parar, o que para mim é muito relaxante. Por outro lado, pesquisei um pouco sobre a origem das arpilleras e descobri a história das arpilleristas chilenas, que eram mulheres que, durante a ditadura de Pinochet usavam essa forma de criação para denunciar a violência que havia no país: assassinatos, desaparecimentos, sequestros. Achei muito revolucionário usar a costura, que é um ofício que durante muito tempo foi imposto às mulheres, mas nunca teve uma finalidade expressiva ou criativa. É um ato político, na verdade, e para mim foi uma forma de dizer que quero seguir este legado, usar esta linguagem, que além disso sempre esteve na minha família porque a minha mãe é costureira. Ela nunca quis ensinar-me, porque queria que eu estudasse algo que me garantisse um futuro melhor, então também se tornou uma forma de reivindicar uma classe social operária, que é de onde eu venho.
Neste livro fala sobre temas como a religião e a saúde mental, o que a levou a escolher estes temas?
Para mim era um tema a explorar porque cresci, digamos, sob a influência da religião cristã, tendo uma mãe muito crente, com certas superstições. Na adolescência isso gerou em mim muita rejeição, porque acho a religião cristã muito repressiva e também porque, quando íamos a essas curandeiras, muitas delas eram pessoas que tentavam tirar proveito de uma pessoa muito vulnerável. Mas, ao mesmo tempo, olhando um pouco mais de perto, há o outro lado, que para ela era o único espaço onde era ouvida. Porque quando ia ao psiquiatra, ele dedicava-se a dar-lhe a medicação, mas não levava em conta as suas circunstâncias, o seu passado, todo o seu contexto social e cultural. No livro, vemos também que o marido da Adela tenta fazê-la mudar de opinião e a religião era o único lugar onde essa história de um demónio que a persegue e a magoa fazia sentido como tal. Então, entendo que ali havia um espaço de tranquilidade. E isso também me leva a refletir sobre como eu mesma, ou como sociedade, vivemos hoje a vida espiritual. Quando rejeitamos em grande parte a tradição que temos, que é a católica, acho que ficamos um pouco órfãos de uma vida espiritual que não precisa estar associada a nenhuma crença religiosa, mas que é uma experiência mais íntima. Por exemplo, acredito que preencho esse espaço com a criação artística, que está mais ligada à intuição. Fazer o livro também me transformou nesse nível.
E como foi todo o processo de investigação?
Há vários temas sobre os quais pesquisei. Um deles é a saúde mental, sobretudo delírios e psicoses, porque é um tema muito atual, e outras questões, como ansiedade ou stress. Mas é verdade que a psicose continua a ser um tabu e, no início, eu tinha uma visão bastante limitada. Tinha a ideia de que a minha mãe tinha um diagnóstico e que o que ela tinha de fazer era tomar a medicação e pronto. Quando ela recusava a medicação, o que é muito comum, era como se fosse culpa dela. Acho que o diagnóstico tem muito essa abordagem, que coloca o problema de forma individual, como se houvesse uma falha na pessoa, mas raramente vê mais além, e a investigação levou-me a abrir essa visão. Por exemplo, há um livro que me marcou muito, chamado “Trauma e Recuperação”, de Judith Herman, que faz um estudo sobre o trauma: quais são os sintomas, como se começou a estudar. Conheci a história das mulheres diagnosticadas com histeria durante os anos 30 em França. Eram mulheres que tinham espasmos, perdas de controlo, desmaiavam e, durante os anos 30, despertaram muito interesse na comunidade científica. Chegou-se à conclusão de que quase 90% dessas mulheres tinham sofrido abuso sexual no contexto familiar, foi uma ideia muito controversa e que a comunidade científica decidiu rejeitar ou ignorar. Isso faz-me pensar que, na verdade, a psiquiatria tem um passado muito sombrio que acaba por despersonalizar os pacientes e que muitas vezes abusa da medicação sem compreender que esses delírios respondem ao que entendemos como o fenómeno da dissociação. É um mecanismo mental pelo qual, quando sofremos uma realidade demasiado impactante ou dolorosa para assumi-la tal como ela é, surge essa narrativa mágica e simbólica, como a dos sonhos. Compreendendo isso na história, o demónio que persegue Adela ganha outro sentido e, na verdade, existiu. Também não quero revelar a história, mas ajudou-me a ver com muito mais empatia o que poderíamos entender como um doente mental, para entendê-lo mais como uma pessoa ferida.

O livro foi bem recebido por todos?
A resposta tem sido, em grande parte, muito positiva. Foi traduzido para seis idiomas e vendeu muito bem. Recebo muitos testemunhos de pessoas que vivem situações semelhantes e se sentiram acompanhadas, porque normalmente vivem com a vergonha do silêncio. Mas, por exemplo, em Espanha houve um coletivo que se sentiu um pouco ofendido com o título. Acho que foi por não terem lido e compreendido que, na verdade, tudo é tratado com respeito. Mas foi uma situação pontual em comparação com todas as respostas que costumam ser muito positivas.
E uma vez que o livro chegou a diversos países, com culturas diferentes entre eles, alguma vez teve medo que a história não fosse recebida da mesma forma quando chegasse a uma sociedade diferente?
Quando estava a fazê-lo não foi algo em que pensei. Mas, quando as traduções foram sendo feitas, é curioso como são recebidas de um lugar para outro. Sinto que Portugal, sobretudo o norte, que é o que conheço por viver na Galiza, tem muitas semelhanças. A presença da religião ou uma grande parte da vida rural, que se pode identificar com o local onde Adela cresce, as suas circunstâncias. Mas, por exemplo, em França tem outro título porque eles abandonaram a religião cristã há muito tempo. “Corpo de Cristo” é algo que lhes parecia muito arcaico.
Ainda não sei muito bem porquê, mas o livro agrada a pessoas muito diferentes, como leitores de banda desenhada, mas de repente a uma mulher de 57 anos que nunca leu banda desenhada identifica-se com esta e abre-se um mundo para ela, ou pessoas mais jovens. No final das contas, a doença e o cuidado são temas universais e que todos nós já fomos dependentes em algum momento da infância, ou seremos se adoecermos ou quando envelhecermos. Acho que é isso que faz com que se conectem um pouco.
Disse numa entrevista que “ainda há muito por fazer e por falar sobre a saúde mental”. Em que momento estamos em relação a este tema?
Acho que avançámos, porque há alguns anos ir à terapia ou pedir ajuda era algo vergonhoso. O facto de estar na atualidade e aparecer nos meios de comunicação, de se falar de stress ou de diferentes problemas, é positivo. Mas acho que no que diz respeito a doenças mais graves, delírios, psicoses, ainda precisamos de saber o que fazer quando isso acontece, quando uma situação dessas chega às nossas casas. Quando alguém tem um discurso incoerente, o mais intuitivo talvez seja dizer que está errado, que tem de mudar de opinião, que isso não é verdade, e isso faz com que a pessoa se sinta muito mais isolada. Isso por um lado, mas depois há também o nível da saúde pública. Não sei como funciona em Portugal, mas em Espanha faltam meios, porque uma consulta com um psiquiatra pode durar entre 10 e 15 minutos, e podem passar entre 3 e 6 meses entre uma consulta e outra. Sinto que cada vez há mais profissionais sensíveis que gostariam de fazer o seu trabalho de outra forma, mas não têm os meios, ou os que estão lá estão muito sobrecarregados e quase não conseguem oferecê-los.
Quais são as principais lições que espera que as pessoas tirem deste livro?
O que mais gostaria é que, depois de lerem, tivessem uma visão mais empática com alguém que possa estar a passar por uma crise, porque acho que o imaginário coletivo nos remete mais para um filme de terror do que para alguém que gostaríamos de ter por perto. Gostaria que o livro ajudasse a ver que chegar a uma situação assim normalmente tem algo por trás e que ninguém está livre de passar por algo semelhante em determinado momento. Que fosse visto com um pouco mais de empatia e amor.
O livro tem inspiração biográfica. Escreve-lo ajudou-a a entender melhor alguns aspetos da sua vida?
Sim, sem dúvida. Na verdade, comecei porque tinha muitas perguntas: porque tinha sido uma criança cuidadora? O que tinha levado a minha mãe à loucura? Como cada membro da família tinha agido? Então, foi uma busca por compreensão e, nessa busca e no exercício de escrever, distancias-te da história, vês-te de fora e isso dá-te clareza. Fui encontrando respostas e isso mudou muito a minha visão. Ajudou-me muito e compartilhar isto também se tornou uma espécie de ativismo, que sinto que dá permissão para que outros também o exponham.




