Conteúdo primeiro ou distribuição primeiro?: o dilema que se vai colocar com a “fusão” Netflix/Warner Bros

A Netflix anunciou a compra da Warner Bros. Discovery por cerca de 83 mil milhões de dólares, num movimento que inclui o vasto catálogo cinematográfico do estúdio e a integração do serviço de streaming HBO Max. O negócio, que aguarda aprovação dos reguladores e dos acionistas, gerou reações imediatas em Hollywood e na Europa, com…
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A compra da Warner Bros. Discovery pela Netflix, avaliada em 83 mil milhões de dólares, é a maior operação de consolidação no entretenimento desde a aquisição da Fox pela Disney e levanta questões sobre criatividade, poder de mercado e o futuro do cinema. Para analisar o alcance deste negócio, a Forbes Portugal falou com Tony Gonçalves, antigo executivo da WarnerMedia e uma das figuras que esteve na génese da HBO Max.
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A Netflix anunciou a compra da Warner Bros. Discovery por cerca de 83 mil milhões de dólares, num movimento que inclui o vasto catálogo cinematográfico do estúdio e a integração do serviço de streaming HBO Max. O negócio, que aguarda aprovação dos reguladores e dos acionistas, gerou reações imediatas em Hollywood e na Europa, com exibidores e sindicatos a alertarem para riscos de concentração excessiva e impacto negativo sobre o cinema em sala. Para compreender o que distingue esta operação de anteriores vagas de consolidação e o que poderá mudar na indústria audiovisual global, a Forbes Portugal entrevistou Tony Gonçalves, luso-americano, CEO da consultora The Evrose Group, antigo executivo da WarnerMedia e responsável pelo lançamento do HBO Max.

 

O que distingue esta potencial aquisição da Warner pela Netflix de outras grandes operações de consolidação em Hollywood, como a compra da Fox pela Disney?
Trata-se de um negócio diferente, num momento diferente da indústria. A transação Disney/Fox foi uma combinação horizontal de ativos semelhantes, pensada para aumentar a posse de IP dentro de um conglomerado tradicional de media.

A operação Netflix/Warner vai mais longe. Embora o aumento da escala quanto à IP premium faça parte da equação, a ambição maior é reconfigurar a própria cadeia de valor. A Netflix foi construída como uma empresa de tecnologia, assente em dados, distribuição direta e escala global. A aquisição dos principais ativos da Warner permitirá integrar criação, produção e distribuição sob um modelo predominantemente digital. Com mais de 300 milhões de subscritores da Netflix e cerca de 120 milhões entre Max e Discovery+, estamos perante uma mudança estrutural na forma como o valor é criado e ganha dimensão no negócio audiovisual.

A Netflix nasceu como uma plataforma tecnológica e a Warner como um estúdio de cinema centenário. O que podemos esperar desta “fusão”?
Para já, não devemos esperar nada. O processo regulatório será longo e complexo, e existe ainda uma proposta hostil ativa da Paramount Global que os acionistas terão de considerar.

Se a transação com a Netflix avançar, o grande desafio será cultural. A Netflix opera como uma empresa tech-first, centrada na velocidade, nos dados e na otimização. A Warner, por contraste, construiu o seu valor com base em talento criativo, relações de longo prazo e desenvolvimento disciplinado.

Já vimos como este equilíbrio é difícil, por exemplo, durante o período em que a Warner esteve sob controlo da AT&T, quando as pressões de integração entraram frequentemente em conflito com a independência criativa. Essas tensões tenderiam a intensificar-se num modelo liderado por uma plataforma. Se a Netflix não assumir a proteção da autonomia criativa, corre o risco de diluir o capital cultural que tornou a Warner num estúdio duradouro. No fundo, tudo se resume a algo tão simples, como: Criativo primeiro ou tecnologia primeiro? Conteúdo primeiro ou distribuição primeiro?

Apesar das garantias dadas pela Netflix sobre a manutenção dos lançamentos em sala, os exibidores e sindicatos mostram forte oposição. Na prática, que margem real existe para compatibilizar o modelo Netflix com a sobrevivência económica dos cinemas?
Existe margem, mas menor do que muitas vezes o debate público sugere. A Netflix comprometeu-se a manter uma janela de exibição em sala, e não há razões para assumir o contrário. A questão mais importante é a evolução do comportamento do público. O box office ainda não regressou aos níveis pré-pandemia, enquanto o streaming se tornou numa forma central de consumo de entretenimento. Em Portugal, por exemplo, perto de metade dos consumidores subscreve pelo menos um serviço de streaming.

Como resultado, o papel da exibição em sala já se alterou. Janelas que anteriormente rondavam os noventa dias encurtaram para cerca de trinta, e os lançamentos em cinema ficaram reservados para um conjunto mais reduzido de títulos, sobretudo franchises, filmes-evento ou projetos de prestígio. O cinema deixou de ser o principal motor económico da indústria, mas continua a ser um componente relevante da cadeia de valor.

Esse equilíbrio é importante. Os exibidores dependem de algum grau de previsibilidade, e a comunidade criativa continua a encarar a estreia em sala como uma forma significativa de reconhecimento. Se a Netflix encarar a Warner, sobretudo, como uma fonte quantitativa para a sua plataforma, as tensões com exibidores e estruturas laborais irão manter-se. Se, pelo contrário, a exibição em sala for tratada como uma componente seletiva, mas deliberada, da estratégia, a coexistência continua a ser possível, ainda que numa escala mais limitada.

Os críticos alertam para riscos sérios de concentração e violação das leis antitrust. Com a sua experiência, acha plausível que reguladores nos EUA e na Europa bloqueiem o negócio?
É perfeitamente plausível. Negócios desta dimensão são moldados, tanto pela realidade política, como pela lógica industrial. Vimos isso na aquisição da Warner pela AT&T, que ficou envolvida em batalhas legais com o governo dos EUA. Esse processo atrasou a integração, criou incerteza e enfraqueceu o impulso estratégico.

Do ponto de vista industrial, o desfecho dependerá de como os reguladores definem o mercado. Se o foco for colocado nas subscrições de streaming pagas, o escrutínio será intenso. Se, pelo contrário, o mercado for definido de forma mais ampla, como seja o consumo de media ou o tempo passado a ver vídeos, o cenário muda.

O streaming já representa cerca de 45 por cento do tempo total de visualização de televisão nos EUA, mas nenhum serviço individual detém mais do que uma quota de um dígito. O YouTube, por si só, representa cerca de 12 por cento do tempo de visualização, apesar de ser gratuito e suportado por publicidade. A Amazon complica ainda mais esta leitura, uma vez que o Prime Video opera dentro de um ecossistema comercial mais amplo, e não como um produto de subscrição isolado.

Esta distinção é crucial. Hoje, a concorrência mede-se pela atenção e pelo tempo gasto, não apenas pelo número de subscritores ou pela posse de conteúdos. Na Europa, onde a diversidade cultural e a produção local são prioridades explícitas, o escrutínio será igualmente rigoroso. Mesmo que aprovado, o negócio deverá vir acompanhado de fortes condicionantes.

Se esta aquisição avançar, que tipo de indústria audiovisual emerge daqui a 10 anos? Um sistema dominado por dois ou três super-players globais, ou ainda com espaço para estúdios independentes e diversidade criativa?
Quase certamente, veremos maior concentração no topo da indústria. Sejam dois, três, quatro ou cinco players globais, a escala será determinante, sobretudo em distribuição, capital e acesso ao público.

Ao mesmo tempo, continuarão a existir oportunidades reais para players mais pequenos, regionais e independentes, criarem conteúdos locais e globais significativos. As histórias continuam a ser o produto central deste negócio. A tecnologia permitirá reduzir barreiras de produção e tornar esses conteúdos viáveis a custos mais acessíveis, enquanto as plataformas globais continuarão a depender de storytelling diferenciado.

Independentemente deste negócio, o ponto mais evidente é que as empresas de media precisam de pensar de forma digital-first e abraçar a tecnologia, ao invés de resistir. As que o fizerem, continuarão relevantes, sejam plataformas globais ou produtores independentes. As que o não fizerem, terão dificuldades, seja qual for o nível de consolidação.

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