Imagine que um dia acorda e percebe que aquilo em que nunca acreditou aconteceu mesmo: as forças populistas de direita radical ganharam as eleições e chegaram ao poder. Foi isso que aconteceu em países como os EUA de Trump, a Hungria de Orbán, a Polónia de Kaczynski ou a Itália de Meloni. Partindo destes exemplos e olhando para a realidade política portuguesa, o jornalista e diretor-adjunto do Expresso, David Dinis, escreveu um livro, “Como Proteger a Democracia”, em que antecipa a governação da direita radical no nosso país, o impacto que terá no dia a dia e a forma como uma democracia consolidada pode ser rapidamente corroída por dentro.
À Forbes, David Dinis partilha algumas das suas ideias a partir de uma obra que é um convite à reflexão sobre o presente e um apelo à ação, não só de políticos, mas também de cada um dos cidadãos para que se escude a democracia e o nosso futuro.
No seu livro, parte da hipótese de o Chega chegar ao poder. A erosão institucional em Portugal está a caminhar para um ponto de “não retorno” que vai permitir que isso aconteça? Ou já se ultrapassou esse ponto de “não retorno”?
Receio que sim, que caminhe nessa direção. Há vários fatores a contribuir para isso. O rápido desenvolvimento tecnológico criou uma expectativa nos cidadãos de que os seus problemas podem ser resolvidos de forma rápida e simples (é assim que acontece quando compramos alguma coisa no nosso telefone), que o Estado não está preparado para cumprir. É neste contexto — e de uma comunicação centrada nas redes sociais, secundarizando a importância dos meios tradicionais de comunicação — que podemos ler a forma rápida com que o discurso do Chega colou em boa parte da sociedade.
Claro que, em cima disto, tivemos três crises em 15 anos. E temos tido vários problemas em setores muito sensíveis, como a Saúde e a Habitação, que acentuam uma perceção de falhanço do Estado. Ao que acresce que os partidos do sistema têm aberto muito espaço a este estado de espírito: erros de governação, ciclos políticos curtos, problemas éticos, falta de coragem para criar incentivos à requalificação da política, entre outros.
Ainda não se ultrapassou esse ponto de não retorno, creio: no essencial, permanece uma maioria muito forte que se mantém consistente no apoio e consciência dos valores essenciais. Mas pode não durar — e meras circunstâncias imprevistas podem levar a esse ponto.
“Permanece uma maioria muito forte que se mantém consistente no apoio e consciência dos valores essenciais. Mas pode não durar”
A frustração económica tem alimentado a atração por soluções populistas. Que responsabilidades atribui às políticas públicas e ao próprio tecido empresarial nesse descontentamento?
Não é um problema exclusivo do nosso país. Mas vivemos em tempos em que os incentivos parecem empurrar mais os dirigentes para estratégias de curto prazo do que de médio e longo prazo — o que sempre ajuda a que entremos em ciclos negativos. As democracias liberais sempre tiveram na base do seu sucesso a ideia de governos de quatro anos, e isso tem uma razão de ser: muitas vezes é preciso que os governos tenham tempo para implementar as suas políticas, medir os seus efeitos, corrigir eventuais problemas e, por fim, colher os sucessos (ou não) dessas opções. Não é onde estamos hoje, nomeadamente por razões que expliquei antes. E sim, creio que isto vale para dirigentes políticos e empresariais.
“Vivemos em tempos em que os incentivos parecem empurrar mais os dirigentes para estratégias de curto prazo do que de médio e longo prazo”

Em países como Hungria, Polónia ou EUA, a chegada de líderes populistas coincidiu com instabilidade económica e quebra de confiança dos investidores. Que impacto real teria uma deriva autoritária na economia portuguesa — no investimento, no turismo ou no sistema financeiro? É possível conceber esse efeito?
É possível prever um impacto económico negativo, sim. Há vários estudos académicos a indicar que a ascensão de um movimento populista geraria instabilidade e incerteza, levando o país a “andar em círculos”, com ruturas e reversões constantes nas políticas públicas. A nível internacional, indicam que os países sob lideranças populistas apresentam um desempenho do PIB inferior em cerca de um ponto percentual por ano a longo prazo, com divergências substanciais.
O impacto nos negócios e no investimento não é certo, mas tem linhas previsíveis: a polarização política e social aumenta a incerteza, com impacto negativo nas economias nacionais e nos negócios — desde logo pela desconfiança que pode gerar nos mercados financeiros, que pode atingir os ratings da dívida, quer das maiores empresas, financeiras ou não. A fragilização das instituições, como a subversão da independência do Banco de Portugal ou do Conselho das Finanças Públicas, tende a afastar os investidores e a aumentar a incerteza jurídica.
Adicionalmente, as promessas de um programa populista implicam uma fatura orçamental gigantesca, o que pode resultar em alertas por violação das regras europeias.
Dito isto, há quem argumente que há casos em sentido contrário, como o da Polónia, que foi governada durante oito anos por um governo populista e manteve uma considerável situação económica. Convém frisar que as condições geográficas, económicas e sociais da Polónia não são idênticas às de Portugal.
“O impacto nos negócios e no investimento não é certo, mas tem linhas previsíveis: a polarização política e social aumenta a incerteza, com impacto negativo nas economias nacionais e nos negócios”

A democracia também depende da saúde da economia. Que papel pode e deve ter o setor privado na defesa do pluralismo e da estabilidade democrática?
Pergunta interessante: pelo que expliquei agora mesmo, parece-me evidente que o setor privado é o principal interessado em manter a democracia plena. A história económica prova isso mesmo: nenhum regime autoritário foi melhor para a prosperidade económica do que uma democracia. Receio que possa estar a acontecer com os líderes empresariais o mesmo que com uma parte — significativa — da população: alguma tendência para a anomia. Diz-nos a história, também, que quando as elites se desinteressam pelo essencial da vida política de um país, isso não traz boas notícias (nem para os próprios, a médio prazo). Foi a pensar nisso que escrevi este livro.
“Quando as elites se desinteressam pelo essencial da vida política de um país, isso não traz boas notícias (nem para os próprios, a médio prazo). Foi a pensar nisso que escrevi este livro”
Entre o cansaço/indiferença e a polarização que se assiste, como é que o cidadão comum e os empresários podem contribuir para “proteger a democracia” de forma concreta e quotidiana?
Desde logo consciencializando-se do momento particular em que vivemos. E, de seguida, participando. Cada cidadão tem o seu papel: conversando em família, com os amigos e companheiros de trabalho; criando clubes de leitura ou de discussão, associações; participando politicamente, como entender e se sentir mais útil. Os empresários têm outra responsabilidade — e aqui penso sobretudo nos que têm mais peso na vida do país. A esses recomendava que se envolvessem, procurassem formas de chegar aos partidos, contribuindo com ideias, debate, estudos, know how. O Presidente Kennedy deixou uma frase histórica no discurso da sua posse, que se aplica bem a vários países democráticos hoje: pensem não no que o país pode fazer por vocês, mas no que vocês podem fazer pelo vosso país.
“[O cidadão pode contribuir para proteger a democracia] consciencializando-se do momento particular em que vivemos. E, de seguida, participando”





