Opinião

A Guerra pelo Tempo Cognitivo: o novo campo de batalha das democracias

António Brás Monteiro

“O perigo não está nas máquinas, mas naquilo que o ser humano decide fazer com elas.”
Hannah Arendt

 

Vivemos um momento histórico em que a segurança já não se decide apenas no território físico. Hoje disputa-se dentro da mente humana, através da perceção, da atenção e da capacidade de distinguir verdade de manipulação. As democracias enfrentam uma competição estratégica que procura moldar a velocidade e o enquadramento com que cidadãos e líderes interpretam o mundo. A política continua a debater-se dentro do tempo humano; a influência opera no tempo algorítmico.

A principal transformação desta década resulta da convergência entre inteligência artificial, personalização comportamental, simulação credível e capacidade de alterar ecossistemas informacionais em segundos. A fronteira entre real e artificial tornou-se permeável e o processo de decisão político, empresarial e social passou a ser vulnerável a estímulos calibrados para influenciar emoções antes da reflexão racional. O problema central já não é um vídeo fabricado ou uma campanha coordenada, mas a erosão da confiança pública. Quando a dúvida permanente se instala, o consenso democrático desfaz-se e o espaço factual é substituído por um terreno movediço de perceções manipuláveis.

Este fenómeno, reconhecido pela NATO como Cognitive Warfare (guerra cognitiva), ultrapassa a propaganda convencional e procura influenciar atenção, memória, comportamento e até a perceção do real. A União Europeia tem reforçado mecanismos de identificação de conteúdos sintéticos, mas proteger a verdade tornou-se um desafio estrutural. Huxley temia que as pessoas amassem a sua servidão; Orwell temia que fossem forçadas a aceitá-la. O mundo digital aproxima-se dos dois cenários: influencia comportamentos de forma subtil e personalizada, ao mesmo tempo que viabiliza campanhas agressivas de saturação informacional. A NATO designa esta lógica como Operation Overload, a sobrecarga deliberada de estímulos contraditórios destinada a paralisar o discernimento coletivo.

Neste contexto, os serviços de informações assumem uma relevância renovada. Estes serviços nunca foram simples coletores de segredos, mas sempre estruturas envolvidas em análise estratégica, contrainteligência, proteção de infraestruturas críticas, vigilância tecnológica, combate a ameaças híbridas e apoio discreto à decisão política. A guerra cognitiva amplia esta missão e obriga a mapear ecossistemas de manipulação, rastrear campanhas de influência, detetar deepfakes com impacto estratégico e neutralizar operações conduzidas por Estados, empresas tecnológicas ou grupos privados altamente capacitados. Democracias maduras exigem, por isso, serviços de informações fortes, supervisionados, politicamente legitimados e plenamente integrados na arquitetura NATO e da União Europeia.

No caso português, esta necessidade traduz-se na exigência de reforçar meios num contexto de elevada pressão tecnológica. Apesar de orçamentos historicamente limitados, o país beneficia de analistas e operacionais experientes e respeitados no espaço euro-atlântico, capazes de lidar com ameaças híbridas complexas e com ecossistemas de manipulação crescentemente sofisticados. Esta competência institucional deve ser acompanhada de investimento sustentável que garanta capacidade operacional à altura da evolução tecnológica, sob pena de a vulnerabilidade cognitiva se tornar estrutural no plano nacional.

A guerra na Ucrânia tornou esta transformação visível. Sistemas autónomos, ataques coordenados por algoritmos, manipulação digital e operações psicológicas em tempo real demonstraram que o campo de batalha contemporâneo é simultaneamente cinético, digital e cognitivo. Cada evento tem uma réplica imediata no espaço informacional. Quem controla a perceção controla o ritmo da guerra. Modelos de IA automatizam partes centrais da cadeia de ataque, comprimindo o intervalo entre detetar, identificar, decidir e agir. Mas a compressão temporal não elimina o juízo humano. A tecnologia acelera a decisão, mas não a pode substituir. Pode recolher dados, mas não lhes confere significado moral, estratégico ou político. A consciência permanece o último domínio não replicável.

Vários conceitos tornaram-se essenciais nesta nova gramática de poder. As antigas PSYOPS (operações psicológicas), tradicionalmente centradas na pressão comportamental e na modelação de perceções, foram complementadas por Disinfo (operações de desinformação), MIS (manipulação de informação) e I2O (Information Influence Operations, operações coordenadas e multidisciplinares de influência). Amplificadas por algoritmos capazes de maximizar impacto emocional, estas práticas adquiriram eficácia sem precedentes. O campo de batalha cognitivo deixou de ser metáfora analítica e tornou-se um teatro operacional reconhecido na doutrina euro-atlântica contemporânea.

A Europa enfrenta aqui um dilema decisivo. Ambiciona liderar a inovação responsável, mas hesita perante a agressividade tecnológica de atores autoritários. Debater responsabilidade sem investir em capacidade é uma contradição. Um continente tecnologicamente atrasado nunca será moralmente relevante. A NATO e a União Europeia já reconheceram esta realidade e têm vindo a alinhar políticas e instrumentos para proteger o espaço cognitivo europeu e reforçar resiliência estratégica.

O maior risco não reside na inteligência artificial, mas no comportamento humano que a cria e utiliza. Reside na ganância económica que privilegia dados sobre integridade, na política que procura impacto imediato e na fragilidade de sociedades expostas a estímulos permanentes. A tecnologia amplifica virtudes e vícios. Não cria a ética que lhe falta nem corrige a moral que lhe é insuficiente. A questão decisiva para as democracias é saber se conseguirão preservar o controlo humano sobre instrumentos que alteram a própria natureza da decisão.

A defesa do Ocidente já não consiste apenas em proteger territórios ou infraestruturas, mas em proteger a mente coletiva, reforçar a confiança pública e garantir que a verdade factual continua a ter valor político. A verdade nunca se defendeu sozinha. Hoje menos do que nunca. É isso que torna esta batalha não apenas urgente, mas civilizacional.

António Brás Monteiro
Auditor de Defesa Nacional e Consultor de Defesa na Comissão Europeia

 

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