Ali mesmo, junto ao rio, no armazém B, vive a Bica do Sapato, quieta desde 2019, mas irrequieta por natureza, assim o quis o seu fundador, Manuel Reis, que fosse altiva e irreverente, o mix perfeito de quem está à frente, muito à frente do seu tempo. E recorde-se, estávamos ainda em 1999. Ali mesmo, no armazém B, o ponto foi de encontro de mundos diversos, os criativos, os políticos, os artísticos, os empresariais, a boa boémia e o bom vivant, os tais “loucos de Lisboa que nos fazem duvidar”, como diz a música, ali tiveram uma história para contar. Vinte anos de glória e um fecho de portas abrupto também marcam a história desta casa que se veste, agora, de novo para uma nova disrupção no Cais da Pedra.
E foi ali, ainda no meio de um delicioso caos à espera de abrir portas, que desvendamos baús de memórias, emoções ao rubro e boas novas por contar. Hoje, já está vestida de novco e pronta a servir.
Era uma vez outra vez
Quando Francisco Lacerda e Celso Assunção decidiram adquirir a concessão desse ícone adormecido, não imaginavam que a sua reabertura seria adiada por uma pandemia global e exigiria mais do que capital, exigiria visão, resiliência e uma ligação profunda à identidade da cidade.
Francisco relembra que a aquisição foi feita ainda em 2019, poucos meses antes do início da pandemia. “Logo após comprarmos a concessão, começou o Covid. Foi um processo lento e complexo desde o início, a lidar com as consequências, as lojas e restaurantes que estavam no espaço, uns a querer sair, outros a tentar renegociar contratos”, conta. Ainda assim, não deixaram de idealizar o projeto que queriam desenvolver.
O investimento, inicialmente, não foi motivado por saudosismo, mas por estratégia e visão de futuro. Na altura, Francisco e Celso trabalhavam juntos num escritório focado em investimentos imobiliários. “Não era uma empresa nossa, nem especializada em restauração. Era apenas mais um projeto, entre tantos que avaliávamos. Mas este destacou-se”, diz Francisco. A razão? Um cruzamento raro de oportunidade de mercado com um legado cultural quase mítico.
“A Bica tinha um posicionamento certo: comida portuguesa moderna, um lado lúdico, cultural e, acima de tudo, uma capacidade rara de juntar tribos”, explica. Para Francisco, isso era algo que não se podia ignorar. “Os antigos fundadores da Bica conseguiram unir pessoas de mundos distintos num mesmo espaço. É um espírito muito difícil de se encontrar noutro sítio com essa história.”
A ideia inicial era apenas reabilitar o espaço e arrendá-lo. Mas à medida que exploravam a marca e a sua história, tudo mudou. “Pensámos: não podemos ser os responsáveis por deixar a Bica desaparecer. Comprámos a marca, e de repente estávamos perante uma decisão maior do que pensávamos”. Para os dois sócios, não se tratava apenas de gerir um ativo imobiliário. Passou a ser uma responsabilidade cultural.
Celso, que aterrou em Portugal no início dos anos 2000, vindo do Brasil, recorda que logo à chegada levaram-no à Bica do Sapato porque queriam mostrar-lhe uma nova Lisboa, “queriam transmitir-lhe modernidade, lifestyle, uma energia nova. E a Bica representava tudo isso”, um impacto profundo e estrutural no panorama da hospitalidade portuguesa. “Antes da Bica, os restaurantes serviam boa comida e os hotéis eram locais para dormir. Depois da Bica, isso já não bastava. Passou a ser necessário um conceito, uma identidade, uma experiência.”
O projeto original, fundado por Manuel Reis, é descrito por ambos como visionário. “Foi feito com coragem, numa Lisboa que ainda não era a cidade turística e cosmopolita que é hoje. Achámos que a Bica merecia viver estes novos tempos — e que cabia a nós esse desafio.”
Com a pandemia, no entanto, o plano sofreu inevitáveis atrasos. “A decisão de avançar era para ser rápida, mas o Covid paralisou tudo. Foi uma altura em que ninguém sabia o que ia acontecer. Estávamos todos no escuro”, lembra Francisco. Ainda assim, a vontade nunca esmoreceu.
Colaboracionismo, a nova forma de estar
E assim que foi possível o projeto ganhou vida com a missão de manter o espírito original, mas adaptado ao presente. “Queremos recuperar o lugar onde diferentes mundos se cruzavam, onde havia cultura, diversão, boa comida e, acima de tudo, autenticidade”, afirma Celso. Para ambos, este não é apenas um negócio — é um ato de respeito por uma marca que esteve à frente do seu tempo e que ajudou a moldar a Lisboa contemporânea.
“A Bica teve uma influência que a maioria das pessoas não percebe”, conclui Celso. “Mas quem passou por lá, quem viveu esse espírito, sabe que é algo que merece continuar.”
Papéis para o ar e assim começaram os planos de reabilitação. “Tentámos manter elementos do projeto original. As janelas grandes, a lareira, o chão de pedra da Bica, e a garrafeira, que estava escondida num corredor, que agora ganhou destaque”, explica Francisco, durante a visita guiada, entre poeiras e peças de griffe. Paragem obrigatória frente à icónica garrafeira, idealizada por Manuel Reis, e trazida para o centro do salão como peça central. “A nova Bica não é a velha Bica, mas mantemos a memória, o espírito e o posicionamento.”
A decisão de manter o nome foi uma das primeiras e mais importantes. “Não fazia sentido apagar a Bica. Era como comprar o Moulin Rouge em Paris e mudar o nome para Sexy Elephant”, brinca Celso. A ideia era não fazer um museu do passado, mas também não ignorar o que foi. “Manuel Reis era um homem de vanguarda, ele não gostaria de ver um projeto preso à nostalgia.” E, também por isso, o logotipo será adaptado aos novos tempos.
Seguindo essa linha, a escolha do arquiteto foi estratégica. O projeto ficou a cargo de Francisco Tojal, jovem talento, com a supervisão e aconselhamento do consagrado Manuel Aires Mateus. “Foi o Manuel quem sugeriu, por exemplo, que a garrafeira ficasse isolada, sem tocar nas paredes. E o Francisco tem um estilo semelhante ao dele”, dizem num match estudado.
A nova Bica, como a sonharam, seria uma caravela moderna: um esforço coletivo de portugalidade e inovação. “Decidimos que iríamos fazer tudo com produção portuguesa. Mobiliário, louça, arte, tudo”, explicam, enquanto nos passeávamos pelas peças, aqui e acolá dispersas pelo armazém, mas já a destacaram-se pela sua atitude.
As mesas foram desenhadas por Manuel Aires Mateus, inspiradas nas tascas, e produzidas em parceria com a Branca Design de Marco Sousa Santos. As cadeiras Daciano da Costa, as cortinas de 4,5 metros, que dividem e estruturam o grande espaço, são criação da artista têxtil Maria Appleton, responsável também pela conceção de um “cubo” em tecido que funcionará como sala privada e os uniformes são assinados pela Constança Entrudo.
E aqui, ficamos a saber, nada vai ser produzido em serie. Ou como nos disseram, “quisemos escapar da cópia da cópia e ter uma identidade própria, que não fosse fácil de encontrar”
Uma mesa portuguesa, com certeza
O espaço, com capacidade para 300 pessoas distribuídas por dois pisos, será muito mais do que um mero restaurante: “Vamos abrir às dez da manhã, para quem quiser tomar um pequeno-almoço, trabalhar, ou simplesmente estar. A ideia é funcionar até por volta da uma ou duas da manhã”, explica Celso. “Queremos que seja um sítio fluido, informal, com alma.”
A proposta gastronómica vai ao encontro desse espírito. O chef Milton Anes, nascido em Paris mas com raízes em Espinho, assume a cozinha. “Ele tem formação francesa, trabalhou em três estrelas Michelin, mas conhece profundamente a gastronomia portuguesa”, diz Francisco. Antes de se juntar à Bica, Milton passou por casas como o Eleven, com o chef Joachim Koerper, e foi responsável por defender uma estrela Michelin no projeto de Sergio Arola em Lisboa.
Será ele a garantir que a cozinha será portuguesa, mas moderna. “Queremos comida com sabor, com técnica, mas com alma. E sobretudo com identidade portuguesa”, dizem. A pastelaria estará a cargo de Joaquim Sousa, considerado um dos melhores pasteleiros «da atualidade, autor da famosa flor de chocolate que se abre.
O serviço de mesa também não escapa à lógica de portugalidade. Os pratos são do designer Filipe Alarcão e produzidos pela fábrica Molde e os talheres são da autoria de Manuel Aires Mateus. “São simples, com um design que combina com o perfil de uma tasca moderna”, descrevem. Este é, na sua essência, um projeto colaboracionista, de fazer da Bica não um museu, mas um lugar vivo. E a vossa garrafeira? “Como tudo o que estamos a fazer na Bica – seja no design, nos artistas ou na comida – queremos representar o país. Este projeto foi pensado assim. Claro que vamos ter vinhos estrangeiros, mas o foco será bons exemplos de vinhos de várias castas e regiões. E vamos procurar também vinhos que não sejam fáceis de encontrar. A escala da Bica permite-nos isso. Procurar pequenos produtores, coisas de nicho. Porque o desejo de lucro fácil existe, claro. Mas aqui não. A Bica nunca será barata, mas queremos oferecer uma qualidade maior por um valor mais justo”, explica Francisco.
E, já agora, a “one billuon dólar question”, qual será o valor médio de refeição? Cruzam olhares e sorrisos sem se denunciarem: “Vai depender do cliente. Queremos que uma pessoa no início da vida consiga comer cá por um valor acessível, e que outra pessoa que queira gastar mais também tenha essa opção. O nosso objetivo é que ninguém se sinta defraudado.”.
A equipa quer recuperar o espírito de boémia que sempre caracterizou o espaço. “As pessoas sentiam-se parte do espetáculo, não era algo pesado ou pomposo. Queremos manter isso. Não vamos fazer aquele teatro de fine dining em que se explica cada ingrediente ao detalhe. Como diz o Manuel Aires Mateus: ‘Se for um almoço romântico, não quero que me venham dizer o que vou comer’.” Sorrimos em sintonia enquanto subimos as escadas para o labirinto de cima.
Celso explica entusiasmado: “Começamos por ver o que é que a Bica era e o que pode ser: o sushi já não nos pareceu ser uma novidade em Lisboa. O tal famoso sushi da Bica que estava instalada no andar de cima. Decidimos focar-nos no fenómeno das tabernas modernas. Comida de mão e finger food. Definimos que assim seria, um restaurante mais sério e mais dentro do que era a Bica em baixo, e em cima a aposta em algo mais descontraído. bancos corridos, para beber uma cerveja, para petiscar, comer um prato mais leve ou alguma coisa de mão”. Mas o segredo foi revelado: redesenhar tudo o que é sanduíche portuguesa. O famoso prego, a bifana, o pão com chouriço, a sardinha no pão, a francesinha. E tudo isto com um ingrediente muito especial: a vista de rio.
A mesma vista que pode ser saboreada numa sala privada para 30 pessoas que se chamará Escritório, em homenagem ao espaço onde os antigos sócios se reuniam, o Manuel Reis, o Fernando Fernandes e o ator John Malkovich.
Quase, quase a terminar a nossa viagem, Francisco e Celso não revelam o valor do investimento, mas esperam atingir o breakeven no terceiro ou quarto ano, dependendo do mercado. Para tal também ira contribuir o delivery – “criámos uma marca específica, a Beira da Bica, ou Beira do Sapato e queremos fazer comida que viaje bem, preparada para chegar bem a casa” – e também, descobrimos, uma janela aberta para take way, sempre com o espirito da portugalidade patente.
E já cá fora a contemplarmos as fachadas pintadas a iluminarem a arquitetura industrial do Porto de Lisboa, a pergunta final. Quando vão abrir? “Já está aberto, em soft opening. Vamos começar com jantares para amigos e colaboradores, afinar o serviço sem pressa, sem drama. Porque tudo isto insere-se num movimento maior. A ideia é devolver à zona ribeirinha de Lisboa uma vivência contínua e vibrante — como quem lança uma caravela” E desta vez, com a memória do passado a servir de leme para o futuro. E ali, no armazém B, brindamos a projetos com alma lusitana, coming soon na sua Forbes.
Fotos Bica do Sapato Ricardo Junqueira
Foto Francisco Lacerda e Celso Assunção : Marisa Cardoso