Opinião

Portugal não arde só de fogo. Arde de abandono

Susete Estrela

Portugal não arde só de fogo. Arde de abandono.
Porque o país que abandona os seus agricultores é o mesmo que arde todos os Verões.

Digo isto como engenheira alimentar, como autora de livros sobre segurança alimentar… e como filha de agricultores. Aos oito anos, vi o fogo a chegar à porta da minha aldeia. Uma aldeia cultivada, onde as hortas e os pomares fizeram labaredas ganhar vergonha e perder força. Hoje, Portugal continua a arder. Mas não é só pelo fogo.
Arde pelo abandono.
Pela falta de visão a longo prazo.
Pela perda das mãos sábias que cultivavam uma paisagem que, simultaneamente, nos alimentava e nos protegia — sem que nunca tivessem sido devidamente pagas por tamanho serviço público.

Durante décadas fomos desvalorizando e retirando poder económico à agricultura familiar e de subsistência. Chamámos a esse processo “modernização”.
Na prática, o que vimos foi o esvaziar das aldeias, a substituição da agricultura de proximidade por monoculturas de eucalipto e pinheiro — e uma paisagem cada vez mais pronta a arder. Fazendo assim do abandono agrícola um excelente combustível para um maior risco ambiental e de saúde pública.

As consequências estão à vista. As abelhas perderam variedade vegetal e biodiversidade.
Os agricultores perderam rendimentos e dignidade.
Os terrenos agrícolas ficaram ao abandono, deixando o fogo alimentar-se sem resistência — um risco ambiental e de saúde pública.

E, agora, em 2025, vemos apicultores portugueses a queimar o seu próprio mel porque o mercado foi inundado por um xarope importado, barato e fraudulento, rotulado de mel.
Segundo a Comissão Europeia, 46% do mel importado e analisado entre novembro de 2021 e fevereiro de 2022 apresentava suspeitas de adulteração.

A crítica é clara: exigimos segurança e rastreabilidade a quem produz no nosso país, mas não somos igualmente rigorosos com grande parte do mel que entra no mercado europeu — uma assimetria que distorce preços, destrói apicultores e mina a confiança do consumidor.

Também a fileira da lã — um recurso natural, renovável e sustentável, com papel estratégico na conservação ambiental — está em risco. O encerramento do último lavadouro de lã em Portugal, na Guarda, ameaça todo o setor: sem infraestrutura nacional, ficamos dependentes do exterior, encarecemos custos e perdemos autonomia. Precisamente no momento em que mais precisamos de economia circular e gestão ativa do território, deixamos morrer um recurso ligado à economia local, à identidade cultural e à conservação ambiental. O assunto é tão urgente que já existe uma petição pública que levou o tema ao debate político.

Os fogos não se combatem apenas com aviões, mangueiras e milhões gastos em meios aéreos.
Combatem-se com agricultura viva.
Com campos cultivados.
Com gado a pastar.
Com gente a trabalhar a terra.

Um país que abandona financeiramente a sua agricultura familiar e de subsistência, abandona também a sua segurança alimentar, a sua biodiversidade e o seu futuro.

Não se trata de nostalgia do passado.
Trata-se de estratégia de sobrevivência.

Enquanto houver agricultores, haverá abelhas.
Haverá paisagens pintadas de várias culturas agrícolas — que desmotivam o fogo.
Enquanto houver agricultores, haverá guardiões dos campos.
Haverá menos cinzas e mais vida.
Haverá água, alimentos mais seguros e ar puro para respirar.

Enquanto houver agricultores, haverá terra verde e terra viva.
Enquanto houver agricultores haverá futuro.

Susete Estrela,
Engenheira Alimentar, Educadora em Segurança Alimentar, Health Coach e Autora

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