ANECRA: “Mais de 70% das viaturas novas vendidas a empresas”

A ANECRA – Associação Nacional das Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel, assume-se como a maior e mais antiga associação que representa cerca de 3800 empresas do sector automóvel, tanto na vertente do comércio como na vertente do após venda. O setor automóvel atravessa uma fase de transformação estrutural e desafios como o fecho…
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O secretário-geral da Associação Nacional das Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel, Roberto Gaspar, realça que mais de 70% das viaturas novas são vendidas a empresas. E que a maior parte dos particulares continuam a optar por viaturas usadas.
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A ANECRA – Associação Nacional das Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel, assume-se como a maior e mais antiga associação que representa cerca de 3800 empresas do sector automóvel, tanto na vertente do comércio como na vertente do após venda. O setor automóvel atravessa uma fase de transformação estrutural e desafios como o fecho de fábricas, a eletrificação,  digitalização ou mesmo a concorrência de marcas chinesas que estão a conquistar terreno no mercado europeu. Em entrevista à Forbes Portugal o secretário-geral da ANECRA, Roberto Gaspar, realça que a indústria automóvel é um verdadeiro pilar económico e estratégico do projeto europeu. E lembra que esta é, de longe, a maior indústria do Velho Continente, sendo que representa um superavit comercial superior a 100 mil milhões de euros, emprega mais de 7% da população ativa da União Europeia e é o setor que mais investe em investigação e desenvolvimento tecnológico. Perante as metas da transição elétrica no setor, Roberto Gaspar defende que se deve equilibrar ambição ambiental com realismo industrial, criando um ambiente regulatório que não penalize os produtores europeus e que permita à indústria manter capacidade de investimento, inovação e competitividade.

 

Como avalia o impacto do fecho das fábricas no setor automóvel português?

O encerramento de unidades industriais na Europa, incluindo em países como Portugal, reflete não apenas dificuldades conjunturais, mas sobretudo sinais de uma mutação estrutural no setor automóvel. O impacto é naturalmente significativo, sobretudo ao nível do emprego direto e indireto, da estabilidade das cadeias logísticas e da confiança dos operadores do setor. Em Portugal, onde a indústria automóvel representa uma das mais importantes fileiras exportadoras, qualquer retração no tecido industrial tem repercussões económicas relevantes. Mas mais do que uma crise, estamos perante uma transição de modelos de negócio, de tecnologias e de relações com o consumidor. É essa mudança de paradigma que precisa de ser compreendida e gerida.

Que medidas estão a ser tomadas para mitigar os efeitos dos despedimentos?

A resposta a este tipo de desafios exige sobretudo medidas concertadas entre o Estado, as autarquias, as empresas e as associações do setor. A curto prazo, os apoios à requalificação e reintegração de trabalhadores são fundamentais. Mas é no médio prazo que reside a chave: assegurar uma transição justa, com aposta na formação profissional orientada para as novas competências que o setor exige: eletrificação, digitalização, inteligência artificial. É também essencial atrair investimento para setores adjacentes e novas formas de mobilidade, que podem compensar os efeitos da retração industrial tradicional.

Como a ANECRA está a apoiar os trabalhadores afetados por estas mudanças?

A ANECRA tem procurado afirmar-se como um agente ativo na requalificação e valorização dos profissionais do setor automóvel. Enquanto entidade formadora, promove anualmente — por meios próprios ou em parceria com outras instituições — dezenas de ações de formação profissional adaptadas às novas exigências do setor. Destaca-se ainda a participação ativa da ANECRA nos órgãos sociais do CEPRA (Centro de Formação Profissional da Reparação Automóvel), entidade tutelada pelo IEFP, que desempenha um papel central tanto na formação contínua de profissionais no ativo como na qualificação de jovens que ingressam no setor. Paralelamente, temos vindo a desenvolver parcerias estratégicas com centros de conhecimento, entidades do sistema científico e tecnológico e operadores privados, que nos permitem oferecer formação certificada em áreas emergentes — como manutenção e diagnóstico de viaturas elétricas e híbridas, gestão digital de oficinas ou tecnologias de assistência à condução. Estamos igualmente envolvidos em programas de reconversão profissional, concebidos para dar resposta às necessidades de transição laboral, apostando numa maior atratividade das carreiras técnicas e na preparação de uma nova geração de técnicos qualificados.

O fecho de três fábricas da Volkswagen na Alemanha é um marco na história da indústria automóvel. Como este cenário pode influenciar o setor em Portugal?

Este movimento, a par de outros de igual relevância, simboliza muito provavelmente o fim de um ciclo na indústria automóvel europeia. A mudança de prioridades da Volkswagen — com a aceleração da eletrificação, contenção de custos e reconfiguração global da produção — terá inevitavelmente efeitos em países como Portugal, tanto do ponto de vista da procura de componentes como da orientação das políticas de investimento industrial. A nossa capacidade de resposta dependerá da agilidade com que nos ajustarmos às novas exigências da mobilidade sustentável, tornando o país atrativo para projetos que conjuguem inovação, eficiência e responsabilidade ambiental.

Que impacto pode ter este movimento na cadeia de abastecimento e na produção automóvel europeia?

As decisões de gigantes como a Volkswagen geram inevitavelmente ondas de choque ao longo de toda a cadeia de valor — desde os grandes fornecedores Tier 1 e Tier 2 até aos operadores mais pequenos, ligados à logística, manutenção e serviços especializados. Este tipo de retração poderá acelerar processos de relocalização da produção, aumentar a pressão sobre os custos e levar à renegociação ou redefinição de muitos contratos industriais. Contudo, esta conjuntura também encerra oportunidades. Pode constituir um catalisador para a reorganização da indústria automóvel europeia em torno de clusters mais resilientes, tecnologicamente avançados e ambientalmente sustentáveis. Portugal, pela sua localização estratégica, competência técnica instalada e capacidade de adaptação, pode sair beneficiado. Para isso, é essencial preparar o terreno: com investimento em infraestruturas logísticas e energéticas, reforço da qualificação técnica e alinhamento das políticas públicas com os objetivos da reindustrialização europeia. A crescente aposta de capitais internacionais, nomeadamente chineses, na Europa é sinal claro da transformação em curso e da necessidade de estarmos atentos e prontos para integrar este novo mapa industrial.

A Volkswagen representa quase 8% do PIB alemão. O que isso pode significar para a economia europeia?

A dimensão da Volkswagen na economia alemã transforma qualquer oscilação na sua atividade numa questão que ultrapassa claramente as fronteiras nacionais. É, sem dúvida, um tema europeu. A Alemanha, enquanto maior potência económica da União Europeia, ancora grande parte da sua força na indústria automóvel, setor que representa cerca de 7% do PIB europeu, assegura milhões de postos de trabalho e é determinante para a balança comercial do continente. Um eventual abrandamento ou reconfiguração estratégica de um player com a envergadura da Volkswagen tem efeitos multiplicadores imediatos: afeta o emprego industrial, fragiliza cadeias de abastecimento integradas, desacelera o investimento em inovação e pode abalar a confiança económica geral. Mas o impacto não se limita à esfera económica. Poderá também comprometer a capacidade de execução de políticas estruturantes a nível europeu, como o Pacto Ecológico Europeu, especialmente se não forem acompanhadas de uma política industrial coerente.

Como se pode minimizar esse impacto?

Neste cenário, torna-se imperativo repensar a abordagem europeia à transição energética no setor automóvel. Na nossa perspetiva, a imposição de metas ambientais excessivamente rígidas tem vindo a traduzir-se, na prática, num verdadeiro condicionamento industrial, ao promover a eletrificação como solução única, quando deveria ser parte integrante de um conjunto mais alargado e tecnicamente neutro de soluções para a mobilidade sustentável. É essencial equilibrar ambição ambiental com realismo industrial, criando um ambiente regulatório que não penalize desproporcionadamente os produtores europeus e que permita à indústria manter capacidade de investimento, inovação e competitividade. A preservação do peso económico e estratégico da indústria automóvel europeia é, cada vez mais, uma questão de soberania económica, coesão social e continuidade do projeto europeu.

A Volkswagen está a reduzir custos de forma significativa. Essa tendência pode alastrar-se a outras marcas?

Sim, e de certa forma já está a acontecer. A pressão para reduzir custos é generalizada e deixou de ser apenas uma questão de eficiência — é, hoje, uma questão de sobrevivência para muitas marcas europeias. A partir do momento em que a União Europeia definiu, através do pacote Fit for 55 e da meta de zero emissões a partir de 2035, que o futuro seria exclusivamente elétrico, empurrou a indústria automóvel europeia para uma arena extremamente competitiva, onde os construtores chineses beneficiam de vantagens muito significativas: controlo de matérias-primas críticas, custos de produção reduzidos, menor regulação ambiental e uma capacidade industrial instalada que começou a ser construída há mais de 15 anos. Neste novo contexto, os construtores europeus estão a rever profundamente os seus modelos operacionais.

De que forma?

Isso inclui racionalizar gamas, automatizar processos, cortar na produção de modelos menos rentáveis e repensar as estratégias de distribuição. Esta dinâmica pode gerar riscos sociais e perda de postos de trabalho, mas também pode abrir espaço a oportunidades de reestruturação produtiva e aceleração tecnológica. Para que este processo seja sustentável, é fundamental uma política industrial europeia robusta, que apoie a reindustrialização verde e digital, promova a produção local de componentes críticos e crie condições para que as marcas europeias possam competir não só em inovação, mas também em preço.

Que reflexos estas mudanças terão no mercado português, tanto na venda como na reparação automóvel?

Portugal será inevitavelmente afetado, embora de forma diferenciada. No comércio automóvel, já estamos a sentir algumas alterações significativas. Desde logo, com a entrada de novos fabricantes, nomeadamente marcas chinesas com soluções de viaturas elétricas. Nos últimos três ou quatro anos, assistimos à chegada de mais de 10 novos emblemas, alguns dos quais se têm vindo a afirmar de forma relevante no mercado nacional, em grande parte por serem representados por grandes grupos de retalho automóvel, com forte implantação nacional. Convém referir que, atualmente, mais de 50% das vendas de viaturas novas em Portugal já correspondem a viaturas eletrificadas (elétricas e híbridas), o que representa uma alteração profunda na lógica do mercado e nas preferências dos consumidores. Contudo, é igualmente importante destacar que mais de 70% das viaturas novas são vendidas a empresas. Os particulares, na sua esmagadora maioria, continuam a optar por viaturas usadas, maioritariamente, com motorização a combustão. Prova disso é que, em 2024, apenas 8% das viaturas novas vendidas eram diesel, enquanto cerca de 110 mil viaturas usadas foram importadas para o país, representando praticamente metade do volume de vendas de viaturas novas (estimado em 220 mil unidades). E destas viaturas usadas, quase 45% são ainda movidas a gasóleo. Este dado é muito relevante para perceber que o impacto da eletrificação total está longe de ser imediato.

E no pós-venda?

No pós-venda a penetração das viaturas elétricas é ainda muito reduzida — inferior a 2% do parque circulante — pelo que, embora exista uma ameaça estrutural de médio e longo prazo para os modelos tradicionais de manutenção e reparação, a pressão direta no imediato ainda é limitada. Ainda assim, com a progressiva eletrificação e digitalização, os modelos de manutenção e reparação irão transformar-se radicalmente: as viaturas elétricas exigem menos manutenção preventiva, mas maior especialização técnica e equipamentos mais sofisticados. Será necessário um esforço muito significativo de atualização de competências, certificação de oficinas e requalificação das equipas técnicas. Quem não acompanhar esta mudança corre o risco de ficar fora do mercado, o que torna imperativa a aposta em formação contínua, adaptação de modelos de negócio e políticas públicas que incentivem a modernização do setor.

O setor automóvel europeu está a enfrentar uma crise estrutural ou apenas uma fase de reajuste?

Mais do que um ciclo de crise conjuntural, estamos perante uma crise de transformação estrutural — ou melhor dizendo, uma luta pela sobrevivência da indústria automóvel europeia. Esta indústria é, de longe, a maior da Europa: representa um superavit comercial superior a 100 mil milhões de euros, emprega mais de 7% da população ativa da UE e é o setor que mais investe em investigação e desenvolvimento tecnológico. Trata-se de um verdadeiro pilar económico e estratégico do projeto europeu. O que está a acontecer não resulta apenas de uma lógica de mercado — da relação clássica entre oferta e procura — mas sobretudo de uma decisão política: a de que, a partir de 2035, todas as viaturas novas comercializadas na União Europeia terão de ser de emissões zero. Esta meta, estabelecida no âmbito do pacote Fit for 55, conduziu a um condicionamento industrial de grande escala, forçando os construtores a investir massivamente na transição da combustão interna (onde lideraram durante décadas) para a produção de viaturas elétricas, onde outros — nomeadamente os fabricantes chineses — dispõem de vantagens acumuladas. Simultaneamente, assistimos ao surgimento de novos comportamentos geracionais, com menor apego à propriedade e maior valorização da utilização eficiente da mobilidade. A combinação destas forças — políticas, tecnológicas, culturais e económicas — está a reconfigurar completamente a indústria automóvel europeia.

Como vê a crescente presença dos carros elétricos chineses na Europa?

Enquanto europeu e enquanto responsável de uma associação do setor automóvel, olho para este fenómeno com alguma apreensão. É verdade que, para muitas empresas do setor — várias delas associadas da ANECRA — a chegada de novas marcas, particularmente chinesas, representa uma oportunidade comercial real, sobretudo num momento de transformação acelerada da mobilidade. Mas não devemos perder de vista as implicações estruturais mais profundas deste movimento. A entrada massiva de construtores chineses no mercado europeu é, sem dúvida, um dos fenómenos mais marcantes da década. Com viaturas tecnologicamente evoluídas, preços altamente competitivos, controlo sobre cadeias críticas de matérias-primas e estratégias de internacionalização agressivas, estas marcas estão a conquistar quota de mercado de forma célere — e a pressionar de forma crescente os fabricantes europeus.

É uma ameaça?

Esta presença deve ser lida como um sinal de alerta. A Europa precisa de acelerar o seu ritmo de inovação, rever os seus modelos de produção, reduzir custos operacionais e reforçar a segurança das suas cadeias de abastecimento. Mas, acima de tudo, precisa de garantir condições de concorrência justas. Não se trata de protecionismo, mas de garantir que as empresas que operam dentro do espaço europeu — cumprindo regras ambientais, laborais e fiscais exigentes — não partem em desvantagem estrutural. Por isso, a resposta europeia deve ser simultaneamente estratégica e ponderada: reforço da capacidade industrial própria, incentivo à produção local de tecnologias limpas, diversificação de fornecedores e, se necessário, avaliação criteriosa de instrumentos regulatórios que assegurem equilíbrio competitivo. O que está em causa não é apenas a quota de mercado. É a autonomia industrial, a sustentabilidade das nossas economias e o papel da Europa na definição do futuro da mobilidade global.

A entrada massiva dos elétricos chineses pode comprometer a competitividade das marcas europeias?

Sem dúvida. A competitividade das marcas europeias está a ser posta à prova por um conjunto de fatores simultâneos: os custos elevados de produção associados à regulação ambiental, os investimentos intensivos na digitalização e na eletrificação e agora a concorrência de fabricantes chineses que operam com outras margens e lógicas de financiamento. Se não houver uma resposta estruturada, com políticas de incentivo à produção local, estímulo à inovação e defesa dos interesses estratégicos da indústria europeia, corremos o risco de ver um declínio da quota de mercado das marcas europeias, especialmente nos segmentos de entrada de gama e de mobilidade acessível.

Acredita que a imposição de taxas aos elétricos chineses é uma solução viável para proteger a indústria europeia?

Não é uma medida que deva ser completamente descartada, mas deve ser considerada como o último dos últimos recursos. A aplicação de tarifas aduaneiras sobre os veículos elétricos chineses pode, em determinadas circunstâncias, ser justificada, sobretudo quando estiverem em causa práticas de dumping, subsídios estatais desproporcionados ou distorções flagrantes da concorrência. No entanto, não podemos ignorar os riscos associados a esta abordagem. Como vemos pela guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China, as tarifas tendem a desencadear retaliações, a distorcer cadeias de abastecimento e, frequentemente, a penalizar os próprios consumidores com o aumento dos preços. Em última instância, podem tornar-se contraproducentes para as próprias economias que as impõem.

Qual deve ser então a resposta?

Mais do que levantar barreiras alfandegárias, a Europa precisa de responder com visão estratégica. Isso implica reforçar a sua autonomia industrial, fomentar a produção local de baterias e semicondutores, acelerar a inovação tecnológica e criar incentivos fiscais e financeiros que estimulem tanto a oferta como a procura. Proteger, sim, mas não através do isolamento, e sim da capacitação. Importa ainda recordar que a imposição de tarifas não pode substituir o esforço interno que é necessário para que os construtores europeus voltem a ser competitivos à escala global. Essa competitividade constrói-se com investimento, escala, eficiência e políticas industriais coordenadas. As tarifas, a existirem, devem ser exceção e nunca a estratégia.

Os carros elétricos chineses são significativamente mais baratos. Como as marcas europeias podem competir sem comprometer a qualidade?

A chave para a competitividade não está apenas no preço, mas no valor percebido pelo consumidor. As marcas europeias devem apostar na diferenciação tecnológica, na qualidade da engenharia, na sustentabilidade dos processos de fabrico e na integração com serviços digitais. Além disso, é essencial otimizar as cadeias de produção, aumentar a escala nos componentes estratégicos — como baterias — e investir em design e funcionalidades centradas na experiência do utilizador. O futuro da mobilidade será conquistado não apenas pelo mais barato, mas pelo mais inteligente e relevante para os novos hábitos de consumo.

Existe uma estratégia conjunta das marcas europeias para reduzir custos e tornar os elétricos mais acessíveis?

Embora cada fabricante tenha a sua própria abordagem, é possível identificar algumas linhas comuns de ação. Muitas marcas estão a apostar em plataformas modulares partilhadas, que permitem maior escala e redução de custos de desenvolvimento. Além disso, vemos movimentos de fusão, partilha de tecnologia e até alianças para produção conjunta de baterias ou desenvolvimento de software. No entanto, uma verdadeira estratégia conjunta a nível europeu ainda está por consolidar. Será crucial que os Estados-membros, as instituições europeias e a indústria automóvel se alinhem em torno de objetivos comuns para garantir autonomia industrial, competitividade e sustentabilidade.

Os incentivos governamentais em Portugal são suficientes para impulsionar a compra de carros elétricos?

Antes de mais, é importante esclarecer que cerca de 90% das viaturas elétricas vendidas em Portugal são adquiridas por empresas, o que se explica essencialmente pelos incentivos fiscais em vigor — em particular, a possibilidade de dedução integral do IVA e a isenção de tributação autónoma. Esta realidade tem sido o verdadeiro motor da adoção de viaturas eletrificadas (100% elétricas e híbridas plug-in) no mercado empresarial. Já no segmento dos particulares, a situação é substancialmente diferente. Os apoios disponíveis são bastante restritos e têm tido impacto muito limitado. O programa de incentivo lançado em 2024, por exemplo, contou com uma dotação orçamental de apenas cerca de quatro milhões de euros, tendo sido concebido com critérios de elegibilidade e mecanismos de candidatura tão desajustados que, no final do ano, apenas cerca de um milhão de euros haviam sido efetivamente utilizados. Isto demonstra bem o desfasamento entre a intenção política e a eficácia dos instrumentos criados.

Na perspetiva da ANECRA, o que deveria ser implementado?

Na nossa perspetiva, mais do que focar apenas na promoção da aquisição de veículos elétricos, seria fundamental implementar um programa ambicioso de rejuvenescimento do parque automóvel nacional, que é hoje um dos mais envelhecidos da Europa, com uma média superior a 14 anos. Se o objetivo é, de facto, reduzir as emissões do setor dos transportes, então a substituição progressiva das viaturas mais antigas por veículos mais eficientes (elétricos ou não) deve ser uma prioridade estratégica. Programas de incentivo ao abate de viaturas em fim de vida – como os que foram implementados com sucesso em anos como 2008 ou 2012 – revelaram-se extremamente eficazes e poderiam ser reativados com impactos ambientais e económicos relevantes. Recorde-se que o Orçamento de Estado para 2022 previa precisamente o lançamento de um programa desse tipo, que acabou por não avançar. A transição energética não se faz apenas com viaturas elétricas. Essa é uma parte da solução importante, mas não exclusiva. O que se exige é uma abordagem sistémica, baseada em incentivos robustos, coerentes e ajustados à realidade do mercado e às condições socioeconómicas dos consumidores portugueses.

Que qualidades são essenciais para liderar um negócio automóvel em tempos de transição energética e digitalização?

Todo o setor automóvel atravessa um processo de profunda transformação, enfrentando de forma simultânea uma série de mudanças com elevado potencial disruptivo. Desde logo, a transição energética, com a imposição de metas ambientais cada vez mais exigentes e o impulso dado à eletrificação. Mas também a revolução digital, que afeta tanto o próprio produto (o automóvel conectado, inteligente, autónomo) como os modelos de negócio, muitos dos quais permaneceram praticamente inalterados ao longo de mais de 50 anos. Estamos também perante uma viragem cultural. Assistimos ao surgimento de novas gerações com um olhar distinto sobre a mobilidade: mais centrado na utilização do que na posse, mais atento à sustentabilidade, à conectividade e à integração com os seus estilos de vida. Os conceitos tradicionais de propriedade, fidelidade à marca e serviço pós-venda estão a ser redesenhados. E temos, já ao virar da esquina, a chegada das viaturas autónomas, que trarão consigo uma disrupção total na lógica da condução e na própria experiência automóvel. Neste contexto, o líder do futuro terá de ser, acima de tudo, alguém com uma enorme capacidade de adaptação e resposta rápida. A sua principal qualidade será saber interpretar sinais de mudança, antecipar tendências e ajustar-se de forma ágil às novas exigências do mercado — muitas vezes em tempo real. Vencerão os que melhor se ajustarem ao ambiente em permanente mutação.

Como manter a competitividade e a sustentabilidade num setor em rápida mudança?

A chave para manter a competitividade e a sustentabilidade num setor em profunda transformação está na capacidade de equilibrar inovação, adaptação e eficiência. Num ambiente altamente volátil, vencerão os operadores mais ágeis a ler os sinais do mercado e mais rápidos a ajustar os seus modelos de negócio às novas exigências — ambientais, tecnológicas e culturais. Isso implica reconfigurar processos internos, diversificar modelos de negócio (como carsharing, subscrição ou mobilidade como serviço), adotar tecnologias digitais que reduzam custos, e criar experiências centradas no utilizador. Neste contexto, é essencial investir continuamente em inovação, formação e transformação digital. Dominar ferramentas como inteligência artificial, análise preditiva, automatização inteligente e conectividade permitirá antecipar tendências, otimizar operações e manter vantagem competitiva. Mais do que nunca, a liderança empresarial deve alinhar visão com execução rápida e propósito com desempenho. A competitividade e a sustentabilidade são hoje dois lados da mesma moeda.

Com recente saída de Carlos Tavares da Stellantis, que mudanças se pode esperar na estratégia do grupo e de que forma esta poderá influenciar Portugal?

Carlos Tavares foi uma figura incontornável na transformação da indústria automóvel europeia — não apenas pela sua liderança visionária na criação e consolidação da Stellantis, mas também pelo pragmatismo e foco estratégico com que conduziu processos complexos de integração e reposicionamento de marcas históricas. A sua saída marca o início de um novo ciclo e poderá traduzir-se numa inflexão cultural e estratégica, dependendo do perfil do sucessor – o homem da casa: Antonio Filosa – e da linha de atuação que venha a ser adotada pelo grupo. No caso específico de Portugal, não antecipamos impactos negativos imediatos. Pelo contrário: as notícias mais recentes apontam para um reforço da aposta da Stellantis nas suas unidades industriais em território nacional, nomeadamente com o investimento na produção de viaturas elétricas. Esta orientação está em linha com os objetivos de transição energética e reforça a importância da capacidade instalada em Portugal. A continuidade desta aposta dependerá, naturalmente, da nossa capacidade de manter um elevado nível de produtividade, flexibilidade e alinhamento com as metas estratégicas globais do grupo. O futuro da presença da Stellantis em Portugal será tanto mais sólido quanto maior for o nosso compromisso com a inovação, a qualificação dos recursos humanos e a atratividade do ecossistema industrial nacional.

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