Não tinha frequentado uma boa universidade, não falava inglês, nem tinha olhos azuis. Fábio Câmara, 54 anos, nascido nos subúrbios do Rio de Janeiro, tinha o sonho de entrar na Microsoft, mas sabia que estava em desvantagem. Para cumprir este sonho a resiliência foi o seu maior aliado: fez 86 certificações técnicas da Microsoft e foi a oito entrevistas de trabalho na filial brasileira. À oitava tentativa foi contratado. “Acho que eles se cansaram de me ver nas entrevistas e me contrataram. Chegou uma hora que não tinham mais como me negar, foi até constrangedor”, graceja, a propósito.
Acredita que foi o facto de estudar, estudar sempre e muito, que o tirou da pobreza. Revela que, na época, era a terceira pessoa com mais certificações da empresa em todo o mundo, bagagem que o ajudou a ser um bom profissional. Mas, como diz que tinha uma ideia por dia, e não tinha como aplicá-las numa filial do gigante mundial fundado por Bill Gates, achou que, caso não as pusesse em prática, ficaria doente e infeliz. Foi esta insatisfação que o empurrou para criar o seu próprio projeto, primeiro a solo, como diz, com a sua “Eupresa”.
Fábio Câmara tem a ambição de triplicar a faturação – que não revela ao certo, mas admite que já ultrapassou a fasquia dos 100 milhões de dólares (cerca de 92,5 milhões de euros) – a curto prazo para avançar em segurança com o IPO.
Hoje é dono e CEO de uma multinacional, a FCamara, fundada em 2007, e que, a partir do Brasil, está a tentar abraçar o mundo com os seus serviços de tecnologia. Trata-se de uma empresa especializada em projetos e consultoria para transformação digital, – ou seja é um integrador de soluções – a qual escolheu Portugal como porta de entrada para a Europa. Tem a ambição de triplicar a faturação – que não revela ao certo, mas admite que já ultrapassou a fasquia dos 100 milhões de dólares (cerca de 92,5 milhões de euros) – a curto prazo para avançar em segurança com o IPO (Oferta Pública Inicial) da empresa. Para estar preparado para a nova etapa da vida da tecnológica, ao tornar-se uma empresa de capital aberto, está às compras na Europa e nos Estados Unidos.

O fundador acredita que basta adquirir duas empresas da mesma dimensão – equipa atual tem cerca de 1500 pessoas -, para triplicar a faturação. E isso não vai ser difícil, pois já está em conversações com quatro companhias: uma em Portugal, cujo negócio será anunciado em breve, pois já está na fase final da negociação, outra em Espanha, uma terceira no Chipre e uma outra na Polónia. Apesar de já se estar a preparar para a dispersão de capital em Bolsa, Fábio Câmara afirma que só avançará quando se sentir com a dimensão certa.
Mas, quem é o empreendedor que, além de fundar a sua empresa, é também autor de 18 livros? Conheça a seguir a história do empresário que começou por baixo e batalhou até conquistar o seu lugar ao sol.
Como passar das dívidas ao sucesso
Fábio Câmara, criado com alguma dificuldade pela mãe, nos subúrbios do Rio de Janeiro, gosta de fazer uma comparação entre o profissional que desenvolve software e os jogadores de futebol. “É muito simples: são geralmente pessoas jovens, vindas de classes desorganizadas, principalmente de famílias desorganizadas, e que ganham dinheiro muito rápido, pois possuem uma aptidão racional para aquele negócio. E também por isso se perdem muito rápido”, diz. E admite: “Eu fui exatamente isso. Não conhecia o meu pai, fui criado só pela minha mãe, em subúrbios e lugares muito simples, muito pobres, muito desorganizados. Fui autodidata, fui comprando livros, e num determinado momento consegui ganhar algum dinheiro”.
Revela que trabalhou em Tecnologias de Informação (TI) até aos 22 anos e conseguiu juntar algum dinheiro enquanto profissional nesta área. Porém, foi esta margem financeira que o empurrou para uma situação que o poderia ter deitado completamente abaixo: nesta fase decidiu procurar o pai, que não conhecia até então, e acabou por se lançar num negócio com ele. Tratava-se de uma fábrica de vestuário, negócio que, infelizmente, não correu bem. “Eu tinha uma vontade de criar coisas novas, de ser empreendedor, mas acabei por ter as piores lições com o meu pai. Aos 25 anos, entrei num processo de falência. Olhei-me no espelho e percebi que devia 100 vezes a minha capacidade de gerar dinheiro mensalmente. E eu achei que não ia pagar mais”, recorda. Optou por se isolar do mundo – para não sofrer um atentado físico dos cobradores, como graceja – e se dedicar aos estudos, isto em 1995. “Fiquei estudando, mas estudando que nem um monge, até tomar coragem de voltar para o mercado de trabalho já como programador e desenvolvedor de software”, relembra.
Microsoft: A entrada na empresa de sonho
Esta fase de introspeção, em que viveu virado para dentro, foi fundamental para a reviravolta. “A partir daqui tive uma ascensão rápida. Consegui pagar as dívidas em sete anos”, revela. Ou seja, em 2002 tinha o seu nome completamente limpo, com tudo pago. Fábio explica que a sua carreira evoluiu rapidamente porque fez uma boa escolha em termos de estudos: optou por se dedicar a tecnologias novas, porque tinha acabado de ler um livro, chamado de “Atravessando o Abismo”, de Geofrey A. Moore, que expunha a existência de um abismo no mundo da tecnologia. Há uma fase em que a tecnologia só interessa aos fanáticos, seguida de uma fase seguinte dedicada aos visionários, e depois há um abismo até à tecnologia de massa. E pensou que “Como tinha muitas dívidas, não queria ser mais um entre muitos, e por isso teria de ser um fanático. Foi por isso que apostei tudo numa nova tecnologia”.
Enquanto esteve na Microsoft aproveitou bem a experiência. “Nesse período escrevi 15 livros, dei 48 palestras por ano, percorri até os locais mais inóspitos”, revela. Tudo em nome do seu crescimento pessoal.
A par com este crescimento pessoal, alimentou o sonho de ser funcionário da Microsoft, uma das empresas mais conceituadas na sua área. Conforme descrito em cima, não foi fácil entrar, mas não desistiu, e após inúmeras entrevista e certificações lá cumpriu o seu sonho, entrando na empresa com 34 anos. Confessa que teve um percurso muito enriquecedor na filial da tecnológica norte-americana, mas que apenas três meses depois de entrar já estava a ter ideias para melhorar o posicionamento de um dos produtos do portefólio. “Então o meu chefe disse-me, de uma forma muito adequada – somos amigos até hoje – que, sendo uma filial, não havia espaço para ter ideias, mas para cumprir e executar. E isso me salvou, porque eu tinha ideias todos os dias, as quais precisava pôr em prática. Assim comecei, aos poucos a preparar com tempo a minha saída”, recorda.
Como fora tão difícil entrar na empresa dos seus sonhos, decidiu aproveitar a viagem e “não jogar fora a oportunidade”. Por isso, nos quatro anos que ali passou empenhou-se a sério para ser o melhor consultor possível. “Nesse período escrevi 15 livros, dei 48 palestras por ano, percorri até os locais mais inóspitos”, revela. Tudo em nome do seu crescimento pessoal.
Como conciliava com esta função os seus projetos individuais, começou a aperceber-se de que já estava a ganhar mais dinheiro com os trabalhos que tinha fora da Microsoft do que dentro da empresa. “Seria boa ideia sair? Será que me contratavam porque eu era bom consultor ou porque trabalhava na Microsoft?”, eram estas a suas principais dúvidas. O medo estava a atrasá-lo.
Da “Eupresa” à fundação da companhia tecnológica
Finalmente decidiu deixar a Microsoft – falou com a esposa, que lhe disse que acreditava nele e que iria correr tudo bem – e continuar a solo os seus projetos de consultoria tecnológica, a que carinhosamente chama de “Eupresa”. Chegaram vários outros projetos, através do boca-a-boca, e quando se apercebeu já estava a trabalhar com oito pessoas. “Nessa altura usava cabelo longo, e quando a equipa chegou às 25 pessoas, já não era um nerd, mas um vendedor e achei que já não fazia sentido e cortei o cabelo”, graceja. Foi aqui que conquistaram um importante cliente, a Submarino Viagens. Antes, Fábio, que era especialista em transações digitais, achou que iria ser forte em internet banking, mas acabou por se especializar em e-commerce e conquistar assim alguns clientes de peso.
Em 2007 entrou um outro cliente grande, a rede de supermercados Walmart, que se estava a instalar no país. “Foi quando percebi que tinha de abrir a empresa. Até então eu vivia um business lifestyle, as contas estavam-se pagando, mas o que fazia era muito por paixão. A partir de então tornei-me empresário”, conta.
Relembra aqui um ensinamento importante que colocou no seu último livro “Mentor Empreendedor”, o primeiro não técnico que editou, e que mistura ensinamentos práticos do mundo dos negócios e do empreendedorismo. Quando começou a trabalhar com a Walmart, o vice-presidente de tecnologia da empresa disse-lhe: “Eu quero ser o maior e-commerce do Brasil epara isso quero que coloque 50 profissionais aqui na empresa”. Ora, Fábio, que já lá tinha 5 funcionários – da pequena equipa de 25 – não sabia onde arranjar os outros 45 em menos de um mês, e partilhou isso com o cliente. E ele deu-lhe uma lição: “Fábio, você já é um grande consultor, agora para ser um grande empresário tem de aprender uma coisa: esse problema não é meu”. O empresário recorda que, no regresso a casa, pensou que, de facto, nunca mais iria transferir para o cliente um problema que não é do cliente.
Atualmente a empresa é especializada nos setores de retalho e distribuição, indústria, saúde e serviços financeiros e implementa soluções de e-commerce, marketplace, cloud e cibersegurança.
“Foi ali que me tornei empresário. Nunca mais a companhia fez isso, foi uma lição que passo a todos os nossos líderes através de uma metáfora com um cachorro encurralado”. A metáfora consiste no seguinte: “Coloquem um cachorro num canto, encurralado. O que vai acontecer? Ele, como não tem saída, vai saltar para cima de nós. Ou seja, nunca deixem um cliente sem saída”, diz.
Atualmente a empresa é especializada nos setores de retalho e distribuição, indústria, saúde e serviços financeiros e implementa soluções de e-commerce, marketplace, cloud e cibersegurança. “Em 2013, 12 dos maiores 20 e-commerce do Brasil eram clientes da FCamara. Eramos a maior companhia de e-commerce e retalho da América Latina”, explica o empreendedor. Hoje a área da saúde é a que gera mais receitas para o grupo.
“Sou mais apaixonado pelo problema do que pela solução. E é assim que me vou posicionando. Aproximando-me do cliente, inteirando-me do problema e avançando com a solução”, explica Fábio Câmara. A tecnológica tem um tempo médio de permanência do cliente de sete anos, mas há clientes que têm projetos que se estendem por 12 anos.
O crescimento e a futura dispersão de capital
“Sempre sonhei grande, fui deixando os livros de engenharia e fui aprofundando os meus conhecimentos em psicologia e filosofia. E fui assim construindo a cultura da empresa”, refere Fábio Câmara. A equipa da companhia, que já ascende a 1.500 funcionários, é chamada de Sangue Laranja, e é resultado da integração de várias empresas, que foram sendo adquiridas ao longo do tempo. Para manter a cultura empresarial é necessário apostar nas boas práticas, sendo que já tem várias certificações de melhor empresa para trabalhar. É também uma empresa-escola, em que a formação é fundamental, sendo importante para o currículo de um colaborador ter passado por esta empresa. “O nosso programa de estágios tem 150 vagas por ciclo, e desses acabamos por contratar 30 ou 50. A última rodada tivemos 9.600 inscrições”, diz.
Manter a cultura organizacional é um dos maiores problemas do crescimento repentino e a FCamara sabe disso. A entrada na Europa já aconteceu, em 2022, através de Portugal, onde instalou um centro de operações. “Portugal é um país simpático, acolhedor, que tem bons trabalhadores, com valores competitivos, e é o nosso hub para a Europa continental. Em Portugal tem duas localizações: uma em Leiria, na Startup Leiria, e outra em Oeiras, no escritório de desenvolvimento de negócios situado no edifício World Trade Center, no Oeiras Valley.
O IPO está preparado a 90%, diz o responsável, mas espera a melhor oportunidade para avançar e esta está sobretudo relacionada com a dimensão, daí a compra de empresas para a expansão territorial na Europa.
Além de Portugal a empresa já tem escritórios em Londres, Dubai e Roterdão. As próximas entradas serão no Benelux, Países Baixos e Espanha. Para enfrentar o desafio da dispersão em bolsa, a companhia já é auditada pela KPMG há quatro anos e já se está a preparar em termos de cultura, para não haver mudanças abruptas de padrão, ao nível da perda de flexibilidade, da previsibilidade, da necessidade de seguir orçamentos, entre outras. “No fundo decidi que já somos uma empresa de capital aberto, mesmo sem ser. Por isso já somos extremamente regrados”, explica Fábio Câmara.
O IPO está preparado a 90%, diz o responsável, mas espera a melhor oportunidade para avançar e esta está sobretudo relacionada com a dimensão, daí a compra de empresas para a expansão territorial na Europa. A estratégia passa por comprar 51% dos negócios para poder consolidar, e deixar o fundador a liderar o jogo. Muitas novidades serão esperadas para breve.
(Artigo originalmente publicado na edição da Forbes Portugal de agosto/setembro)