É das pessoas que mais pensa a Saúde em Portugal e afirma que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é sustentável, embora precise de mais eficiência nos dinheiros geridos. Pedro Pita Barros acredita que os maiores desafios ao SNS são o controlo da despesa e uma maior eficiência dos recursos num país que vai envelhecendo e cuja população vai exigindo novos cuidados. O professor catedrático de Economia da Universidade Nova defende que despejar dinheiro para os hospitais não é solução e que tudo é uma questão de recompensar a boa gestão, a nível local e nacional, dos recursos disponíveis. Considera que a má gestão não é uma questão de público e privado: que nem o Estado é naturalmente mau gestor, nem os privados são necessariamente melhores do que os serviços públicos. As regras impostas é que inquinam a gestão, tanto de um lado como do outro. Pita Barros chama ainda a atenção para um dos desafios que o Estado terá nos próximos anos: o aumento da longevidade da população e os cuidados prolongados de que um crescente número de utentes idosos irá necessitar.
O financiamento público do SNS ronda os 66% em Portugal, bem abaixo da média de alguns países europeus e, mesmo assim, com indicadores de saúde por vezes melhores. O nosso SNS é melhor do que os outros?
É preciso definir o que significa melhor do que os outros. Fala-se muitas vezes utilizando os custos, ou os custos por doente. Na verdade, a maneira mais interessante de pensar é reflectir sobre se estamos a dar o estado de saúde à população que é possível dar com os recursos que temos, e se fazemos isso melhor do que os outros ou não. A nossa principal questão é saber se poderíamos fazer melhor do que o que estamos a fazer. E podemos. Não somos dos que têm maior longevidade, mas estamos a aproximar-nos dos países que têm maior longevidade da população em boa saúde. O nosso problema neste momento está em conseguirmos dar mais anos de boa saúde à população mais idosa.
E podemos?
Sim, podemos. Uma das razões pelas quais julgo que normalmente estamos bem quando se fazem essas comparações internacionais é que temos uma rede de cuidados de saúde primários que é bastante particular em Portugal. Chegámos a um ponto em que conseguimos de facto ter uma rede. Mesmo tendo entre 750 mil e 1 milhão de pessoas sem médico de família, não significa que as pessoas não sejam atendidas em cuidados de saúde primários. Podem ir a consultas não programadas mesmo sem terem médico de família. Isso tem sido uma das forças do nosso SNS.
O SNS como está é sustentável financeiramente?
Em termos de sustentabilidade financeira, o SNS vai ser sustentável nos próximos 20 anos. A nossa gestão é que vai determinar isso. A sustentabilidade financeira do SNS tem inerente também a escolha política de onde é que se quer colocar dinheiro dentro do espaço público como um todo. O ideal seria ter opções que não permitissem gastar mais dinheiro. Com algum crescimento da economia é sempre possível disponibilizar mais fundos para a área da saúde e, portanto, ter algum crescimento da despesa aí, sobretudo se a despesa noutras áreas crescer menos do que cresce nas disponibilidades financeiras do Estado. A sustentabilidade financeira não é uma questão de eu dizer que vou gastar 6% do PIB em saúde. Em termos de despesa pública, é: quais são os mecanismos internos do SNS que eu tenho que me garantem que o que eu gasto é bem gasto, seja 4% ou 8% do PIB.
A despesa de saúde proveniente do Orçamento do Estado (OE) ronda os 8 mil milhões de euros. Sendo que a inovação é um dos grandes propulsores da despesa, de que forma se pode poupar nesta área?
Quando fala em inovação, estamos a meter muitas coisas no mesmo saco. A inovação tem sido apontada como factor criador de custos muito grandes. Tem que ver com os medicamentos e com alguma maquinaria pesada. Agora, quando se fala em mais sofisticação nos cuidados de saúde primários, estamos a falar de inovação organizacional. Até pode ser uma inovação que tenha menores custos. Uma das coisas que temos de aprender a fazer no sistema de saúde em geral, e isso não é característica apenas do português, é como introduzir inovação organizacional que faça com que equipamentos que eram usados antes e muito custosos sejam substituídos por soluções mais baratas e com melhores resultados. Se se passar a ter a capacidade de fazer análises de sangue e de urina e Raio-X nos cuidados de saúde primários, posso evitar deslocações aos hospitais onde fazer análises significa gastar muito mais dinheiro.
“A nossa principal questão é saber se poderíamos fazer melhor do que o que estamos a fazer no SNS. E podemos.”
Defende que há hospitais públicos que não usam os recursos da melhor forma. Aponta algum exemplo concreto de hospitais do SNS nessa situação?
Olhemos para a organização que existe em Lisboa. Nos últimos 15, 20 anos, tivemos vários hospitais a abrir na coroa de Lisboa, mas não tivemos praticamente reorganização interna dos hospitais do centro da cidade. Hoje, o hospital de Santa Maria é o hospital que tem o maior número de dívida em atraso. É claramente um hospital que tem dificuldades financeiras, que não tem tido a capacidade de gestão para perceber como se estanca isso, e provavelmente a capacidade de estancar isso não depende só de quem está à frente da gestão, depende de uma visão mais ampla de como os cuidados hospitalares na zona de Lisboa se devem organizar.
E no resto do país?
No resto do país tem sido curiosamente mais fácil. É interessante olhar para o que se passa no Porto, onde alguma desta reorganização teve lugar sob liderança da ARS [Administração Regional de Saúde], em que houve, sim, alguns protestos, mas nunca adquiriu os contornos de visibilidade pública e mediática que atingiu em Lisboa, como foi com o caso da Maternidade Alfredo da Costa. O Porto conseguiu reorganizar urgências e alguma capacidade, e os hospitais naquela zona acabam por ter um desempenho melhor do que Lisboa.
Santa Maria é um caso flagrante de má gestão no público?
O único indicador que tenho sobre a qualidade da gestão em geral, falível mas que aponta problemas, é o das dívidas em atraso. Todos os hospitais grandes têm mais dívidas do que os outros, mas Santa Maria está constantemente no topo dessa lista. O Hospital de São João não teve um choque externo de lhe retirarem alguma procura porque não existiu um novo hospital na zona e teve um presidente razoavelmente carismático que fez avançar algumas coisas relativamente às técnicas de gestão dentro do hospital. Santa Maria sempre teve maior relutância em fazer isso. Talvez por estar fisicamente mais perto do Ministério da Saúde tem uma certa arrogância adicional sobre o que pode ou não pode fazer. Gostava de saber se os reforços orçamentais dados aos hospitais têm alguma relação com a distância física ao Ministério.
A capacidade de lobby dos hospitais de Lisboa é naturalmente maior do que os do resto do país?
A proximidade física ajuda. Um grande hospital como o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, por exemplo, deve sempre receber atenção do ministro da Saúde quando um gestor de lá diz querer vir a Lisboa. Mas uma pessoa do Santa Maria mete-se no carro e em 10 minutos está lá. O de Coimbra demora duas horas a cá chegar. É sintomático que, ao longo dos anos, e podemos recuar até ao início do milénio, várias vezes se falou que os hospitais se deveriam relacionar através das ARS. Isso nunca aconteceu. Os grandes hospitais sempre tiveram relacionamento directo com os ministros.
Qual é a dotação orçamental ideal para o SNS?
Imagine que eu lhe dizia que o orçamento para o SNS deveria ser de 12 mil milhões de euros. O risco era alguém um dia decidir que dava 12 mil milhões de euros e estoiravam aqueles 12 mil milhões agora em qualquer coisa completamente inútil. Aqui não é uma questão de transferir mais verba, mas é como essa verba é utilizada.
O Estado tende a sub-orçamentar os hospitais precisamente para evitar esse tipo de situações?
O Estado tem tendência para sub-orçamentar hospitais porque dentro do próprio Governo há sempre uma tensão entre o Ministério das Finanças e o Ministério da Saúde. Enquanto o próprio processo orçamental não for de alguma forma revisto e não se envolver mais as Finanças para que se compreenda qual é a realidade dos hospitais, isso não irá mudar. Dar mais ou menos orçamento não pode ser simplesmente dar mais ou menos dinheiro.
Tem de haver algum condicionalismo a cumprir com uma boa gestão. Se a despesa tem tendência a crescer – uma ideia defendida por si e por outros economistas – qual seria o crescimento ideal que signifique um aumento saudável?
Não é claro que tenhamos de ter um aumento da despesa permanente. Isto porque os desafios que nós vamos ter nos próximos 5, 10 anos não é conter a despesa dado o modelo de SNS que temos. É pensar em quais são as alterações fundamentais que estamos a ter nas necessidades da população, qual é uma nova visão que devemos ter para o que deve ser o SNS e saber se essa transformação e essa nova visão implicam necessariamente mais recursos ou não. E aqui é consensual duas coisas: um, que a população está a envelhecer, e dois, que o aumento de condições crónicas nesta população envelhecida vai estar presente. O que significa que a nossa habitual resposta a determinadas situações vai deixar de ser possível porque as pessoas vão querer sobretudo uma resposta que impeça a agudização das suas condições crónicas. Mas isso só vai ser possível se as próprias pessoas aprenderem, de alguma forma, a gerir a sua doença em conjunto com o SNS. E isso implica uma organização diferente da que temos hoje.
Mas qual seria um crescimento anual saudável em percentagem?
Se conseguíssemos crescer entre 1% e 2,5% da despesa de saúde de forma regular e média, sem dúvida que seria adequado e razoável.
Há actualmente quatro Parcerias Público-Privadas (PPP) na saúde. Mas quando o Tribunal de Contas diz que não há grandes diferenças face à gestão pública, desfaz-se o mito de que a gestão privada é sempre melhor do que a pública na área da saúde?
Não é inteiramente verdade porque os hospitais em PPP são também hospitais do SNS. E, portanto, têm todas as obrigações de atendimento de pessoas que têm os outros. Na gestão da procura não têm liberdade, mas em algumas componentes de gestão interna têm alguma. Tivemos um mecanismo que criou as quatro PPP hospitalares importantes através de um concurso de selecção das empresas. Nesses concursos não tinham qualquer história passada, portanto estavam a atirar no escuro, com base nas suas previsões, o que achavam que tinham de fazer. Nessa corrida pelas PPP, cada grupo ia ficar com pelo menos uma. Em alguns dos concursos, conforme decorria, víamos que alguns baixaram o preço para conseguirem ganhar.
Olhando hoje para a factura das PPP da saúde, o preço contratado é um preço justo?
O preço que foi contratado pelo Estado para aquele serviço acabou por ser um preço bastante razoável em termos de pagamento. Quando vamos comparar o que o Estado pagou com o que se poderia ter pago em serviço público, encontramos aí uma vantagem para a PPP. Quando vamos procurar o resultado financeiro da PPP, como eles foram muito agressivos na fase do preço, é evidente que hoje não é grande coisa para o gestor privado porque ele já deu o valor correspondente na proposta que fez inicialmente. O que nós podemos pensar é: se eu não tivesse as PPP e tivesse outra coisa com gestão pública, como é que funcionaria a assistência à população naquela região e com que custos? E aí as ilações que têm sido feitas dão uma resposta mista: umas PPP estão melhores que outras.
Mas no Hospital de Braga os utentes ficaram prejudicados, por exemplo, em termos de tempos de espera devido a esta sub-orçamentação.
Quando eu estabeleço a PPP, estabeleço um contrato com uma parte. E nesse contrato, o Estado diz: para determinado volume de actividade, vou dar este dinheiro. Se a população precisa de mais do que aquele volume que foi contratado, a responsabilidade é da PPP, que tem que dar isso gratuitamente, ou é a entidade que contratou que tem que pagar o trabalho adicional? Nos hospitais públicos, isso resolve-se entrando em pagamentos em atraso ou com reforço financeiro. Num contrato de PPP não se pode fazer assim. Braga também é um daqueles casos em que o preço que surgiu do concurso foi bastante baixo porque porque quem tencionava ganhar aquilo quis, deliberadamente, baixar o preço.
“Todos os hospitais grandes têm mais dívidas do que os outros, mas Santa Maria está constantemente no topo dessa lista.”
Isso é um efeito perverso desse tipo de solução. Os privados não estão nisto para perder dinheiro. Mas os públicos também não deviam estar nisto para perder dinheiro. Eu não posso dizer a um hospital que, lá por ser público, pode gastar aquilo que for preciso porque vamos pagar tudo. Porque isso é o que acontece imediatamente. O conselho de gestão renova logo a frota automóvel! Se eu não puser nenhuma pressão para gerir bem, não vai ser bem gerido, tanto no público como no privado. Se eu dissesse numa PPP ‘vocês gastem o que for preciso que depois vou-vos pagar o que foi feito’, ia ser uma alegria… A PPP, como tem um contrato explícito, tem muito menos flexibilidade para o Estado fazer command-and-control e dizer para fazer. Mas, ao mesmo tempo, essa menor flexibilidade também impede disparates que possam surgir do lado do sector público.
Não há razão para reintegrar estas unidades no Estado?
Não, de todo. Com a informação que nós temos, não. Mas também não vejo razão para dizer que nunca serão reintegradas. A renegociação de algumas aproxima-se e, provavelmente, os preços contratualizados serão muito acima dos preços anteriores. Sim, mas aí é razoável que o Estado procure saber o que é que prestadores alternativos fariam. O que vai ser renegociado nas nossas PPP é apenas uma parte, a da gestão clínica, e não a construção e manutenção do edifício. Onde uma parte privada tem grande margem para fazer melhor do que a gestão anterior, e eventualmente ter poupanças que justifiquem ter propostas mais agressivas, é na parte da gestão clínica. O que vai estar em causa é se a parte de gestão clínica deve ser retirada da parte privada e reverter para o público. A entidade que já lá está tem obviamente vantagens sobre outra que apareça de fora. Mas colocar pelo menos em concurso é também uma forma de disciplinar a entidade que já lá está. Se ela for a única, vai querer ditar as condições. Não me repugnaria que viessem a concurso entidades públicas e privadas. Por exemplo, a equipa de gestão de um hospital público da zona de Lisboa dizer que se candidataria a gerir também o hospital de Cascais, em vez de serem só a Luz Saúde, o Grupo Mello e a Amil a gerir. Politicamente esta possibilidade não é real. Mas do ponto de vista de lógica económica faria todo o sentido. Então não demoniza a gestão pública. Não. A qualidade da gestão não depende de ela ser pública ou privada. Depende das condições que nós estamos a dar. E faz a diferença o sistema de recompensas e de penalizações que possam existir numa má gestão.
A vantagem das PPP é unicamente o preço?
Não, é por pressão para uma melhor gestão. Porque as PPP, ao terem um contrato fixo, à partida permitiriam que a entidade que fizesse uma melhor gestão conseguisse ganhos e se apropriasse deles. O problema que temos na gestão pública tradicional é: se um hospital conseguir ser muito mais eficiente e conseguir poupar 20% do seu orçamento, o que é que acha que acontece ao orçamento desse hospital no ano seguinte?
Seria reduzido.
E esses 20% iriam para aqueles que não se conseguem conter dentro do orçamento e que precisam, uma coisa que eu chamo efeito Robin dos Bosques. Estou a tirar àqueles que funcionam bem para dar àqueles que funcionam mal. Se eu tive a chatice de pôr a funcionar bem e ainda me tiram o orçamento, porque é que eu vou fazer isso? O problema não está em ser público ou privado, está nestas regras. No caso dos hospitais, e aí as PPP podem ter alguma vantagem, estes têm o que nós chamamos uma dupla cadeia de comando, ao contrário das empresas. Tem-se a parte médica e a parte administrativa. Se as duas não estiverem a remar para o mesmo lado, aquilo não vai funcionar. O que acontece muitas vezes do lado da gestão privada é que a parte da gestão administrativa predomina sobre a componente clínica, havendo uma maior pressão sobre a decisão médica. E esse balanço de poder faz diferença para as decisões.
O que me está a dizer, no fundo, é que se esse lado administrativo tem mais preponderância do que o clínico, o serviço tem tendência a deteriorar-se com o passar do tempo.
A lógica que está subjacente à sua afirmação é: os privados vão conseguir fazer mais dinheiro poupando naquilo que é essencial nos cuidados que prestam. A melhor forma de obter poupanças é melhorar a qualidade dos cuidados porque evitam-se a repetição de exames, readmissões, infecções hospitalares.
A gestão das PPP está ciente disso?
Eu esperaria que sim. Mas qualquer delas tem uma pressão financeira forte devido ao facto de terem praticado preços muito agressivos na fase de concurso. Cria-se uma pressão para terem mais volume dentro da mesma despesa. Aí é que podem surgir alguns cortes. Não é claro que as PPP não tenham feito erros de gestão aqui e ali que se tenham reflectido em algumas das decisões que tomaram. Mas nenhuma PPP chegou ao descalabro de o Estado ter de resgatá-la por falta de cumprimento da entidade privada. Não demonizo as PPP, mas também não as santifico. Há gestores de PPP que se estão a queixar de que estão sempre aflitos por não se conseguirem manter dentro do preço que anunciaram, mas isso foi o risco que eles próprios assumiram. Aí, sorry, mas não tenho muita pena.