Mesmo com um olhar mais atento, dificilmente se percebe que o habitat natural de Maria José Pereira são os laboratórios, as figuras, os cálculos, as batas. Podia ser o que quisesse, a bem da verdade, não fosse salvar vidas ter-lhe entrado na cabeça. Aos 29 anos, Maria é doutorada em Bioengenharia e responsável por uma das criações que promete revolucionar as cirurgias ao coração: uma cola cirúrgica de precisão, biodegradável e não tóxica, que permite reparar mais facilmente defeitos cardiovasculares que afectam seis bebés em cada cem nascimentos. No universo da medicina, a inovação de Maria traduz-se em muitos passos em frente na regeneração cardiovascular e com isso chegou o reconhecimento internacional.
Em 2015, a FORBES elegeu-a como uma das pessoas mais influentes do mundo com menos de 30 anos, no sector da saúde. Da lista da Forbes ’30 under 30’ constam apenas outros dois portugueses: o pintor e grafiteiro Alexandre Farto, conhecido por Vhils, e o jogador de futebol Cristiano Ronaldo. Tinha 27 anos quando publicou o artigo que falava deste novo adesivo. Aos 29 lidera uma equipa de investigadores na Gecko Biomedical, uma start-up sedeada em Paris que foi criada para acolher a ideia de Maria e para a lançar no mercado. Depois de terem ouvido falar do projecto, Bernard Gilly e Christophe Bancel, fundadores da Gecko e gestores com vasta experiência no lançamento de empresas com foco na ciência, foram até Boston – onde Maria fez o doutoramento ao abrigo do programa MIT Portugal, sob orientação de Jeff Karp – e fizeram a proposta. A Gecko Biomedical nasceria pouco tempo depois e daí até captarem 11 milhões de dólares para investir no material inventado pela portuguesa, foi um pulo. “Basicamente, o meu orientador conhecia bastante bem o Bernard Gilly, que é um serial entrepeneur em life science francês, e na altura falou-lhe do projecto. Ele e o Christophe vieram a Boston, conheci-os, apresentei-lhes o projecto, eles ficaram bastante interessados na tecnologia e quiseram começar uma empresa para trazer tecnologia para o mercado”, conta à FORBES a cientista, numa conversa com o castelo de São Jorge como pano de fundo.
Uma ideia no centro de tudo
Ao contrário do que sucede com a maioria das empresas, a Gecko Biomedical surgiu para suportar uma ideia. Foi criada para trazer a tecnologia de Maria para o mercado. Mas para sustentar toda a estrutura da empresa e do negócio foi preciso arranjar financiamento. Essa tarefa ficou a cargo de Bernard e Christophe que, segundo Maria, “foram os grandes impulsionadores para arranjar investimento, fazer o business plan e passarmos para a fase seguinte.”
Quando questionada sobre a sensação de ser a responsável por ter uma ideia que garante 11 milhões de dólares de financiamento, a cientista solta uma gargalhada. “Bom, foram o Christophe e o Bernard, com base na tecnologia que eu desenvolvi com o Jeff (Karp), que conseguiram levantar esse capital, que é capital de risco”, salienta, revelando também que a sua participação na start-up é feita através de stock options. “É uma responsabilidade bastante grande. Uma coisa é desenvolver uma tecnologia num laboratório, outra é ter um produto no mercado. Aqui é que existe um fosso bastante grande que é essencial ser preenchido. Tínhamos um protótipo e agora transformámo-lo num produto. Claro que ainda temos de fazer uma bateria de testes para podermos entrar na área clínica, mas basicamente foi isso”, resume, como se fosse realmente assim tão simples.
Quando escolheu licenciar-se em Farmácia, pela Universidade de Coimbra, acreditou que o curso lhe podia dar uma visão mais geral sobre as áreas de que gostava. Em 2008, no entanto, sentia que faltava alguma coisa. “Sempre gostei da parte de engenharia e tecnologia. Gostei muito da minha formação base, mas faltava-me uma componente mais criativa no trabalho”, explica. “Decidi fazer o doutoramento em Bioengenharia, que também era uma área relativamente nova. Decidi fazer esta mudança para experimentar.” Corria o ano de 2008 e estava a começar em Portugal o MIT Portugal – um programa que resulta de uma iniciativa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) que promove parcerias entre universidades e centros de investigação portugueses e o conceituado Massachusetts Institute of Technology (MIT). Maria decidiu concorrer e partiu de armas e bagagens para Boston. “Sempre quis ter uma experiência no estrangeiro, perceber como é que as coisas funcionam lá fora.” Em jeito de apelo, confiante de que quem manda possa ouvir as palavras, deixa a seguinte nota: “Sempre fui aluna do ensino público, em Portugal. Gosto de lembrar isso. É importante que ele mantenha a qualidade.”
Liderança, resiliência e boa disposição
As expressões em inglês saem-lhe naturalmente, entrecortando o português, mas já há também um pequeno sinal que denuncia a vida em Paris há vários meses. No meio das frases, um “vá lá”, que se confunde com o típico voilà de que os franceses não prescindem em qualquer conversa. Bem-disposta, fala sem pausas e sem receios. É fácil perceber, pelo menos entre leigos, como aos 29 anos já tem um lugar de tanto destaque e de tanta responsabilidade. Lino Ferreira, investigador do Centro de Neurociências e Biologia Celular/Biocant de Coimbra, confirma o perfil. “Conheci a Maria num estágio de Verão que realizou no meu laboratório. Nessa altura foi clara a sua autonomia e resiliência (não desanimar com resultados negativos). A sua capacidade de liderança foi sem dúvida uma característica diferenciadora. Depois, ela iniciou o seu doutoramento num projecto de colaboração entre o meu grupo e o grupo do Jeffrey Karp. A Maria foi sempre o motor do projecto”, sublinha o cientista em declarações à FORBES. E continua a sê-lo.
Na Gecko Biomedical lidera a equipa de investigação, um trabalho que lhe tira mais tempo de laboratório, mas que não a aborrece. “Eu gosto de perceber como as coisas funcionam, de conseguir estar nas várias fases do processo, gosto muito de gestão.” A empresa prepara-se, aliás, para garantir uma segunda ronda de financiamento, de forma a poder avançar com os ensaios clínicos. Mas antes de lá chegar, quisemos perceber em que é que o material desenvolvido pela equipa de Maria e de Jeff difere tanto das colas cirúrgicas que já existiam. “Tentámos desenhar um novo adesivo, com características muito específicas para cirurgia minimamente não invasiva, nomeadamente ser hidrofóbico e viscoso, ou seja, não é facilmente lavado pelo sangue e é activado por luz, o que significa que o médico tem tempo de entregar o material dentro do coração, de o posicionar no defeito e depois aplicar. A ideia foi precisamente criar um adesivo que o cirurgião conseguisse controlar. É elástico e também é biodegradável, sendo substituído por uma cicatriz.” Que é como quem diz: elimina-se a necessidade de haver uma segunda cirurgia, não só porque o adesivo acompanha o crescimento do músculo como se dissolve com o tempo.
Depois de concluída a primeira fase, é tempo de dar início aos ensaios clínicos, que irão arrancar no início de 2016 na Europa. Maria acredita que pouco depois será possível começá-los também nos EUA. E a seguir, quando o material estiver em velocidade de cruzeiro no mercado? Os olhos brilham e abre-se novo sorriso “Não sei, não sei.” Criar uma outra empresa, com uma outra ideia “talvez seja um passo natural” para a mente irrequieta da cientista de Leiria, mas prefere não se comprometer no curto prazo. Por agora, a vida continuará entre França e Portugal – onde vem pelo menos uma vez por mês –, com corridas pelas ruas de Paris, cafés com vista para a torre Eiffel e muito trabalho na Gecko, ali mesmo ao lado da Ópera da Bastilha, para levar esta cola ainda mais longe. Ou para mais perto das pessoas.