Em apenas dois anos, o número de funcionários mais do que duplicou. No final de Outubro eram 427, e todas as semanas chega gente nova. O ritmo de recrutamento é tão grande que a apresentação formal é deixada para segundo plano. Um balão preso à secretária ou uma folha A4 colada na parede com uma pequena descrição pessoal do “caloiro” é quanto baste para dar as boas-vindas a mais um elemento à equipa da Farfetch. No dia em que a FORBES visitou as instalações da empresa em Leça do Balio, na zona do Porto, contavam-se 11 balões pendurados.
A velocidade a que trabalha o departamento de recursos humanos expressa bem o ritmo de crescimento da empresa de José Neves. Em menos de cinco anos, a Farfetch angariou 174 milhões de euros de diferentes investidores, factura diariamente 1,4 milhões de euros e transformou-se numa companhia de quase 1000 milhões de euros. E ao que parece não vai ficar por aqui. “Este ano vamos atingir mais de 500 milhões de dólares de vendas [mais 66% face a 2014] e prevemos manter um ritmo de crescimento acelerado nos próximos anos. Temos que crescer pelo menos 60% nos próximos cinco, o dobro da média do mercado”, revela o fundador da primeira empresa portuguesa com estatuto de unicórnio.
O rótulo mitológico não é desproporcionado. É uma forma de mostrar os feitos alcançados pelo segundo maior site de venda de moda de luxo pela internet num curto espaço de tempo. É de sprints e não de maratonas que tem sido trilhado o caminho da Farfetch. Exemplo disso é o crescimento exponencial do volume de negócios nos últimos anos: quatro anos após a fundação, a empresa alcançou o marco de 1 milhão de dólares de vendas num só dia (Novembro de 2012); e menos de dois anos depois, em Dezembro de 2014, subiu essa fasquia para os 8 milhões de dólares. Os números dão conta de uma empresa a crescer à velocidade da luz. E o discurso do seu fundador não fica atrás. Mostra uma ambição enorme em conquistar o futuro. “Não tenho medo de crescer nem de vertigens. Não tenho medo da lenda de Ícaro. A minha visão é que caso me atire para as estrelas, pelo menos consigo colocar um satélite em órbita. Se o objectivo for dar a volta a Portugal, talvez acabe por dar uma volta na aldeia. As empresas têm de ter ambições grandes.”
Dos computadores à moda
Desde cedo que José soube o que queria fazer quando fosse grande: ser empresário e ter a sua empresa. O sonho de ser bombeiro, polícia, jogador de futebol ou até professor por influência da mãe (é filho de Maria Augusta Ferreira Neves, professora de Matemática e autora de vários manuais escolares da Porto Editora) nunca fez parte dos seus planos. “A minha grande paixão quando era adolescente eram computadores e a programação”, conta.
Começou a programar com apenas oito anos no mítico ZX Spectrum que recebeu como prenda de Natal e nunca mais parou. O primeiro grande desafio foi-lhe dado pela mãe quando tinha 14 anos.
“Ela estava a fazer uma tese de doutoramento com base numa linguagem de programação no ensino de geometria e deu-me o desafio de fazer alguns exemplos, alguns códigos.” Ora por caloirice ora por puro divertimento, as metas do empreendedor no universo da programação passavam sobretudo por ganhar concursos. O clique do mundo dos negócios chegou anos mais tarde, aos 19, quando estava a estudar Economia na Faculdade de Economia do Porto.
“Na altura juntei-me ao Cipriano Sousa e à Gracinda Linhares (ambos trabalham na Farfetch) e lançámos uma micro-empresa (Grey Mater) de desenvolvimento de software para a indústria do calçado e da moda, porque estando no norte de Portugal, este é o cluster dominante”, recorda. Mas a veia empreendedora de José não se ficou por aqui. Dois anos depois, em 1996, lançou a marca de sapatos Swear e em 2001 a B Store, que foi premiada com um British Fashion Award em 2006. Ambas as marcas continuam no mercado sob a sua liderança e estão inseridas no grupo SIX London. Daí até à Farfetch (que significa ir buscar longe) foi um pulo.
Em 2007, durante a Paris Fashion Week, José vislumbrou uma oportunidade de negócio na alta-costura. Numa combinação entre moda e tecnologia, decide fundar a Farfetch.com (que acabou por ver a luz do dia em Outubro de 2008), uma plataforma on-line que serve de intermediário entre consumidores e uma série de boutiques independentes de luxo. “É muito difícil a pessoa tornar-se empreendedora aos 35 anos quando tem família, casa para pagar, dois carros, férias marcadas… Costumo dizer que às vezes o maior azar de uma pessoa é ter um bom emprego. Eu tive a sorte de nunca ter tido um bom emprego e de nem sequer ter tentado procurar um bom emprego. Comecei logo como empresário e não conheço outra realidade”, comenta o empreendedor de 41 anos.
Marca global made in Portugal
A magia do negócio da Farfetch ergue-se a partir de um pavilhão do Avepark, o parque de ciência e tecnologia de Guimarães. Todos os dias, o armazém central da empresa recebe e devolve, em média, 1200 peças de vestuário das mais de 300 boutiques espalhadas por 32 países com as quais tem parcerias. O único propósito desta logística milionária (o preço médio dos artigos ronda os 600 euros, mas há peças que custam mais de 30 mil euros) é tirar fotografias dos artigos para os colocar à venda no site da Farfetch o mais depressa possível. “Todo este processo não pode demorar mais de três noites”, revela uma das mais antigas funcionárias da empresa que nos acompanha num tour pelas instalações.
A organização e o nível de profissionalismo em toda a cadeia de produção são bem visíveis, não fossem fundamentais para os objectivos traçados: serem a maior e melhor loja on-line de artigos de luxo do mundo. Nada fica esquecido.
A chave para esse sucesso está largamente assente numa gestão diária orientada nos princípios da filosofia de Kaizen. Todos os dias as várias equipas realizam reuniões de cinco minutos para analisar os procedimentos do dia anterior por forma a melhorarem o que correu menos bem.
No primeiro ano em que colocaram em prática esta filosofia (há cerca de três anos), a empresa aumentou a produtividade em 30% e foram galardoados com o prémio “Excelência na Produtividade” pelo Instituto Kaizen. No ano seguinte incrementaram em mais 15% os níveis de produtividade. À FORBES, José revela que não foi uma ideia sua, mas da equipa de produção. “Dou autonomia total, desde que estejamos alinhados na missão e nos valores de empresa. Há respeito mútuo e absoluto, e eu confio no que eles estão a fazer.”
O foco na produtividade é expansível aos restantes nove escritórios que a empresa tem espalhados pelo globo, que vão desde Tóquio e Hong Kong, a Moscovo, Los Angeles, São Paulo e Londres. Em Portugal, além de Guimarães, a Farfetch tem ainda o escritório em Leça do Balio, na antiga fábrica da Lionesa. É aí que está concentrada
a parte tecnológica da empresa e onde José tem o seu escritório que é somente ocupado de 15 em 15 dias quando se desloca de Londres (onde vive) até Portugal.
Fusão do on-line com o off-line
Segundo a consultora Boston Consulting Group (BCG), as vendas de artigos de luxo pela internet deverão crescer entre 20% a 25% nos próximos cincos anos, enquanto a indústria de luxo como um todo deverá contabilizar somente um aumento de 3% a 4% das vendas.
Todavia, os analistas da BCG salientam que a maioria das vendas ainda ocorre nas lojas físicas. Estima-se que apenas 6% das vendas sejam feitas on-line. Contudo, José sublinha que “o on-line é responsável por influenciar mais de 50% das decisões de compra”, e que por isso é “importante integrar o e-commerce [comércio electrónico] com as lojas físicas.” Foi sob esta estratégia que em Maio a Farfetch adquiriu a icónica retalhista britânica Browns, que ficou célebre por ter descoberto grandes nomes da moda internacional, como John Galliano, Alexander McQueen, Hussein Chalayan e Commes des Garcons.
Sem revelar os valores envolvidos no negócio, José diz apenas que a operação teve dois propósitos: posicionar a marca num mercado em que não estava (lojas físicas) e utilizar a retalhista como “um laboratório de inovação sobre como o retalho será dentro de alguns anos”. José deu-lhe o nome de “Loja do futuro”.
Apesar da aquisição da Browns, o caminho da Farfetch continuará a fazer-se no on-line. E neste campo, a importância das boutiques é vital para o sucesso do negócio. Mas o inverso é igualmente verdade. José adianta à FORBES que, em média, a sua empresa é actualmente responsável por 40% do volume de vendas dos seus parceiros. Sem avançar números, diz apenas que o negócio da Farfetch assenta sobre a margem de venda das boutiques com que trabalham. Num relatório de 23 de Outubro de 2014, a PrivCo, a maior base de dados de empresas privadas, refere que a Farfetch trabalhava com uma margem bruta sobre vendas de 57%.
A Net-a-Porter, o principal concorrente da empresa, fechou as contas de 2015 com uma margem de 66%. Replicando essas percentagens para a meta de 500 milhões de dólares (cerca de 471 milhões de euros) em vendas anunciada pelo empreendedor português, significa que este ano a Farfetch deverá fechar as contas com uma facturação bruta entre 268 milhões e 311 milhões de euros, um montante muito semelhante ao total de receitas arrecadado pelas Estradas de Portugal com portagens em 2014.
Contas de um negócio global
Os últimos números da actividade da empresa dão conta de um grande ano para a Farfetch, pelo menos na Europa. De acordo com o relatório e contas de 2014 da Farfetch UK Limited (que consolida algumas das operações da empresa na Europa), publicado a 12 de Outubro deste ano no site Companies House, não só o volume de negócios aumentou 95% como as receitas escalaram 107% para cerca de 61 milhões de euros. Porém, revelam também prejuízos de 5,2 milhões de euros no final de 2014 (mesmo assim menos 39% que em 2013).
Para os investidores que nos últimos anos têm apostado forte na empresa, como é o caso do fundo de capital de risco DST Global que em Março de 2015 liderou uma ronda de investimento de 76 milhões de euros, estes números dizem pouco da saúde da empresa – desde logo porque apenas 25% das receitas são geradas no continente europeu. Mas não só.
Desde cedo que a Farfetch carrega o objectivo de ser um negócio global. Ao contrário do que é comum, em que as empresas procuram conquistar primeiro o mercado em que estão sedeadas e só depois apostam na internacionalização, José fez exactamente o oposto. Registou a empresa em Londres e rapidamente procurou fazer parcerias com boutiques das principais capitais do mundo da moda e não somente com as que estavam localizadas na capital britânica.
“A Farfetch não existiria hoje se não tivesse havido aquela decisão um pouco aventureira e até irresponsável”, comenta José.
Hoje, o alcance internacional da empresa vai muito mais além do que o número de boutiques e clientes espalhados pelo planeta. Está reflectido nos diferentes regimes fiscais em que opera. De acordo com informação que a FORBES conseguiu apurar, a Farfetch tem empresas registadas no Reino Unido, Brasil e EUA, e todas elas consolidam numa holding que está registada no offshore da Ilha de Man. José não confirma nem desmente. Diz apenas que “há números e informação que divulgamos e outros que não.”
A empresa tem a denominação de Farfetch.com e é nessa que os vários investidores e financiadores, como a DST Global e a Advance Publications (dona do popular grupo editorial Condé Nast) têm comprado as suas posições como accionistas e diluído a participação de José na empresa.
A história da Farfetch começou em 2007, mas só agora está a ganhar contornos mitológicos. O potencial de crescimento da empresa revela-se promissor. A velocidade com que tem escalado montanhas e derrubado barreiras em tão curto espaço de tempo não deixa ninguém indiferente. O risco é se as fontes de água que lhe têm dado tanta margem para continuar a correr secam antes de a empresa ter capacidade para caminhar pelo seu próprio pé (leia-se: produzir resultados operacionais positivos). Ou seja, até que os investidores continuem a apostar na Farfetch e no seu líder, o unicórnio não se cansará.