Era a democracia uma miragem e já João Lagos tinha três títulos de campeão. Dinamizador do ténis em Portugal, nasceu três meses depois da inauguração do Estádio Nacional, erguido nos terrenos expropriados a um vizinho do avô – a Quinta da Graça, “o Jamor inteiro”, recorda. No ano seguinte foi a vez da inauguração dos courts de ténis. Nos fins-de-semana passados na casa do avô, os courts eram o seu jardim. Aos 21 anos já era campeão. Foi-o por três vezes.
Após a “Revolução dos Cravos” formou uma escola de ténis, modalidade “vista como um desporto de fascistas”, diz. Mas se há coisa que João conseguiu foi tornar o ténis numa democracia, repetem aqueles com quem a FORBES falou. “O João é um visionário” capaz de “solucionar o que muitos pensam não ter solução, diz-nos Rui Machado, tenista recentemente retirado do circuito profissional, e novo director técnico nacional. “A sua visão e ambição por vezes podem parecer desmedidas, mas se assim não fosse nunca teríamos um Estoril Open organizado por ele durante 25 anos, a Master Cup em Lisboa e muitos outros eventos de grande calibre”. Manuel Sousa, antigo campeão de ténis e pai do número um do ténis português, Rui Sousa, leva-nos aos primeiros grandes eventos de João, quando os dois e Maude Queiroz Pereira, ex-mulher de João Lagos, iam eles próprios montar as alcatifas dos torneios de exibição. Eram os famosos torneios no “Dramático de Cascais”, recorda Manecas, como também é conhecido. Entre os grandes do ténis, Björn Borg, presente na primeira edição, em 1982, e mais tarde Yannick Noah. “Um mega-sucesso”, recorda João, que até cativou a RTP para o ténis. Horas que “transformaram o panorama do ténis.
Deram uma projecção enorme ao ténis. E à minha pessoa”. A história de como o Estoril Open foi possível é mais uma das inúmeras que João desfia numa longa conversa com a FORBES realizada num clube de ténis em Cascais.
Durante as duas edições iniciais, o Estoril Open foi um torneio challenger na Quinta da Marinha, em Cascais, com prize money de 50 mil dólares. Em 1988 surgia o circuito ATP Tour, debaixo do controlo da associação dos jogadores (ATP). João assume que “já tinha um certo nome pelas montanhas de torneios. Com isso ganha-se certa fama, prestígio, simpatias”. Dos seus torneios de 50 mil dólares de prémio (para o vencedor) salta para os do ATP Tour, cinco vezes maiores. “Exigências por ali acima, os custos, estádio para 3500 pessoas, cadernos de encargos que não havia para as outras provas”, explica. O imperativo do espaço levou-o de volta ao Jamor onde cresceu. A organização pertencia à Lagos Sports, empresa que assumiu o nome do empresário quando a lista de modalidades abrangidas se expandiu e a designação comercial inicial – “Só Ténis” – se tornara redutora para a ambição do empresário, organizador de concursos hípicos no Campo Grande e do Open de Portugal de Golfe. “Aprendi à minha custa. Se não fosse assim, não teria aprendido. Aprendi eu e muita gente. Acho que a minha organização foi uma espécie de universidade que formou muito boa gente”, diz. Joana Lemos, primeira portuguesa a ganhar o Dakar na categoria feminina e colaboradora de João durante oito anos, confirma-o. “Aprendi à minha custa. Aprendi eu e muita gente. Acho que a minha organização foi uma espécie de universidade que formou muito boa gente”, diz João Lagos.
Além do ténis, Joana considera que “há uma coisa incontornável na vida de João: deixou uma equipa espalhada por várias empresas e um legado. Tenho o maior orgulho por ter trabalhado com ele”. Desses oito anos, Joana recorda um episódio que considera clarificador da personalidade: numa reunião inicial com um potencial grande patrocinador, João, apesar de um problema auditivo, valeu-se do seu à vontade e tomou as despesas da conversa. “Não ouvia, mas também não ia deixar de fazer a proposta”, conta Joana.
Manecas acompanhou de perto a vida profissional de João, designadamente quando este e um sócio recrutaram para a sua nova escola cerca de uma dezena de tenistas juniores que treinavam no Jamor. Nesse ano de 1975, Manuel tinha 17 anos. “Foi a primeira aposta num projecto mais sério virado para a competição”, diz-nos, recordando depois a sua estreia na Taça Davis, quando João era o capitão de equipa. Pelo caminho até ao Luxemburgo disputaram um torneio em Santander. “Ao final do dia, montávamos uma banca e vendíamos equipamento para arranjar mais verbas e poder jogar a Taça Davis”. João e Manuel acabariam por se afastar, mas voltaram a encontrar-se muitos anos depois, em Roland Garros. “Reatámos as relações e depois até foi parceiro importante do meu filho [João Sousa] e ajudou-o”, diz Manecas, que considera “uma pena o João não estar a ser mais aproveitado. Acho que não vai desistir nunca e vai voltar”.
Do sonho à falência
Estoril Open, Volta a Portugal em Bicicleta, Volvo Ocean Race, mundiais de golfe e de surf. E o Lisboa-Dakar. Durante décadas, o comendador João Lagos (condecorado em 2005 por Jorge Sampaio com a Ordem de Mérito) colocou Portugal no firmamento das notícias internacionais. Mas, em 2014, com 70 anos, levou um valente murro no estômago: em virtude de dificuldades financeiras da sua empresa, faliu.
Joana conhece bem o processo que trouxe a Portugal o Dakar, prova que o self-made man vê como besta negra de quatro décadas de esforço profissional. Em 1997, após vencer o Paris-Dakar, a ex-piloto teve o sonho de ver a prova arrancar de Portugal. Desafiou João. Em 2006 avançaram juntos – com a ajuda de José Megre, nome maior do todo-o-terreno português, já falecido -, na organização dos percursos que levaram Portugal ao resto do mundo.
Em 2008, por ocasião do 30.º aniversário do rali, aquele que seria o terceiro Lisboa-Dakar foi cancelado pela organização (ASO), devido a problemas de segurança na Mauritânia. A decisão foi tomada na véspera do arranque! Um pesadelo para João e para a João Lagos Sports. Anos antes sofrera um azar semelhante. Em 2001, Portugal participava pela terceira vez no campeonato mundial de surf WCT e João era o organizador do evento. Com tudo montado na Figueira da Foz, acontece o 11 de Setembro. Os atletas americanos foram impedidos de viajar e os restantes surfistas, em solidariedade, decidiram por unanimidade cancelar a prova.
Joana destaca à FORBES os ganhos financeiros do primeiro e segundo anos do Lisboa-Dakar, que “deu muito dinheiro” à Lagos Sports, pelo que considera “muito injusto e uma mentira” fazer da prova o motivo de falência da empresa. A Lagos Sports “teve muito prejuízo com outros eventos”, aponta Joana. Entre eles, a criação da equipa de ciclismo do Sport Lisboa e Benfica (SLB) e a compra do clube de futebol Estoril-Praia. “Foi ele que salvou o Estoril-Praia de fechar portas”, garante quem o acompanhou durante oito anos nos negócios e o conhece há mais de duas décadas, e que acentua não querer fazer juízos de valor. João contrapõe com realidades do negócio que vão além do conhecimento público. O contrato que assinara para ter o arranque (e não só) do Lisboa-Dakar em mais dois dos próximos três anos levou-o a preparar novos investimentos, antecipando já os milionários lucros que a Lagos Sports previa. A compra do Estoril-Praia foi um investimento que João assume que, para alguns, significará o clássico “contar com o ovo no cu da galinha”. “Quando se fica sem essas receitas [do Dakar], obviamente que há compromissos de investimento que não se consegue parar no mesmo minuto”, diz João. Com “um balúrdio” colocado no Estoril-Praia, “não se pára logo, insiste-se para ver se se recupera”. Um risco associado ao negócio. Já na equipa de ciclismo do SLB reconhece que cometeu “um grande erro”.
Pouca força para pedalar
Quando a Lagos Sports pegou na Volta a Portugal, a operação da prova era deficitária. “Estávamos ao sabor do humor e simpatia dos presidentes das Câmaras. Uma das coisas que instituímos é que todos teriam de dar o seu contributo. Criámos uma tabela, as partidas com um valor, a chegada com outro”, diz. Foi quando se lembrou de dar pedal aos emblemas dos “grandes”, do futebol para a estrada. Em 2008, começou pelo SLB, apesar de ser sportinguista, seguindo a ideia instituída de que os da Luz são campeões em adeptos e simpatizantes. Na sua cabeça, o Sporting Clube de Portugal (SCP) e o Futebol Clube do Porto (FCP) viriam logo depois – falamos com João dias após a vitória na Volta de 2016 da equipa de ciclismo que o FCP “tirou” ao SCP: “Só demonstra que o Lagos anda à frente do seu tempo”, nota João. Do SLB conseguiu a cedência da marca para fazer uma equipa. Custos e benefícios ficavam na Lagos Sports. “O Luís Filipe Vieira impôs que nos três primeiros anos não podia promover outra equipa. Andei umas semanas hesitante. Grande erro, aceitei”, diz. Rezou para que outros pegassem no SCP e no FCP. “Queria tanto que fiz asneira. Fui fraco em vez de fazer finca-pé”, confessa. Os grandes patrocinadores fugiram da ligação a apenas um dos “três grandes” do futebol.
Apesar das críticas que faz à vertente de gestor, Joana Lemos assume ter aprendido muito com o ex-campeão de ténis. “Identifico-me na parte visionária de acreditar muito nas coisas, quando muitos não acreditam. O João é uma pessoa muito única nas suas qualidades e também nos seus defeitos”. Uma empatia com os outros que já na década de 1960 era visível. Para obter (auto)patrocínio para a sua carreira internacional no ténis, João criou uma discoteca. “Atrevido, um bocadinho conhecido, já era campeãozinho de juniores, conhecia muita gente”, diz João à FORBES. “Eu criava ambiente à roda de mim, as pessoas diziam ‘é a discoteca do Lagos’, era um ponto de encontro”. “O João é um visionário” capaz de “solucionar o que muitos pensam não ter solução, diz-nos Rui Machado, tenista recentemente retirado do circuito profissional.
Virar a página
Depois do Dakar, a carga da dívida tornou-se pesada de mais com a perda dos patrocinadores principais do Estoril Open: BES e PT. “Ando nisto há 40 anos, só fali uma vez, não fali duas”, ressalva João no decorrer da nossa conversa.
A Lagos Sports tentou a salvação com um Processo Especial de Revitalização (PER), que o tribunal recusou, por não considerar reunido o número mínimo de credores em acordo com a solução – ideia que João contesta, explicando que a juíza considerou credores da lista provisória que, entretanto, haviam recebido, designadamente o vencedor do Portugal Open, que aquando da assembleia de credores já recebera o seu prémio de jogo (logo, não era credor). Em 2014, a ATP, que organiza as grandes provas, não podia esperar mais para saber se João conseguiria fazer o Open de 2015 e retira a prova do seu calendário. Em Novembro desse ano, quatro décadas depois de ter criado a sua primeira escola de ténis, João atirava a toalha ao chão, num comunicado cheio de metáforas: “Foi o mais longo encontro de ténis que joguei em toda a minha vida (…) por mais winners que tenha assinado ao longo de 25 anos, e foram muitos, acabei por ceder exausto, mas só depois de deixar tudo em court”. Hoje, João repudia a ideia de má gestão, assume que errou e que tem apetência ao risco, mas só por isso fez “coisas que mais ninguém fez”. Segundo Joana, “é um patrão muito à antiga”.
Nos dois últimos anos desde a falência, João parou quase por inteiro. Manteve apenas um torneio de ténis para veteranos, a Copa Ibérica, e colaborações com amigos que recorrem à sua experiência em eventos. Contudo, não significa que tenha aberto a porta à aposentadoria. Pelo contrário. João recusa a reforma. Recorda como, ainda no rescaldo da operação ao coração, já depois da derrocada de 2014, foi “bater à porta” dos responsáveis do Jamor para ali montar a Copa Ibérica. “Mal dei uns sinais de que estava com vontade de voltar às lides, chovem-me os mais variados desafios”, conta-nos. Nos últimos tempos colaborou com o amigo Manuel Sousa num “future de ténis”, um torneio para “esperanças”, jovens em início de carreira. Manuel, concessionário da escola de ténis do Club Internacional de Foot-Ball, explica à FORBES que pediu ajuda para montar o evento porque João “tem experiência enorme neste tipo de eventos”. É um homem “extremamente ambicioso e audacioso”, diz.
João lamenta que lhe tenham falhado os apoios quando deu sinal de que o Estoril Open estava em risco. De pouco lhe valeu nessa altura as palmadinhas nas costas, as medalhas, chaves da cidade, o Globo de Ouro da SIC … ou até a comenda que Jorge Sampaio lhe deu em 2005, num Dia de Portugal em que também foram agraciados José Mourinho, Nicolau Breyner e o amigo Marcelo Rebelo de Sousa, que chegou a ajudar no sorteio dos jogos do Estoril Open. “O Open era um evento que custava milhões [aos patrocinadores], mas era preciso pagar milhões. Foi sempre assim que fiz, e só ao 26.º é que não consegui”. Joana salienta que João “deu muito ao desporto, mais ao ténis, mas a muitas modalidades. Foi o primeiro a trazer uma prova mundial de surf. Fez grandes eventos ligados à vela. Acredito que hoje, aos 72 anos, ele vai dar a volta”. Manuel segue na mesma linha: “Ele tem uma capacidade de criação e de certeza que vai arranjar outros projectos.
Ele não desiste nunca. Naquela cabeça está sempre com projectos”. “Foi ele [João Lagos] que salvou o Estoril-Praia de fechar portas”, garante Joana Lemos, que o acompanhou durante oito anos nos negócios e o conhece há mais de duas décadas.
Em retrospectiva, João salienta que entre “riscos minimamente calculados”, somou “muitos sucessos, financeiros inclusive”. E insiste que o cancelamento do Dakar foi “um desastre” que “não teve nada a ver com má gestão”. Assume, contudo, ter corrido na vida profissional riscos “que se calhar eram desnecessários”. O Lisboa-Dakar é exemplo da predisposição para arriscar. Mantém o risco como “um valor”, mas, assegura-nos, agora com avaliação “mais competente”. E é o risco que lhe permitirá avançar para uma prova mundial, de novo com raquetas e Cascais. Criado há décadas, o padel, popular em Portugal há escassos anos, terá, de 14 a 19 de Novembro, o XIIIº Campeonato Mundial na Quinta da Marinha. “Se não tivesse assumido na hora em que a oportunidade surgiu, agora, após ter feito os estudos habituais neste tipo de provas, já o mundial [de padel] estaria no México, Brasil ou outro lado qualquer. A tendência para o risco continua, está no meu ADN, mas era mais simpático ver isso como sendo corajoso do que idiota”.