Metade dos tabus do espaço europeu caiu a 23 de Junho. Resta um tabu inviolado. João Ferreira do Amaral insiste que pecou por defeito quando, há 25 anos, fez como no conto de Hans Christian Andersen e, a propósito do euro, gritou que o rei ia nu. Numa entrevista à FORBES no dia após o referendo britânico, o autor de “Porque devemos sair do euro” explicou-nos porque antevê a Europa a caminho do desastre. E, defende, o pior nem é o Brexit ou a saída do euro – por mais que os seus pares lhe mostrem razões para a hecatombe na economia nacional –, sobre os quais quase só falta invocar o ex-primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, quando este gritou, numa tirada que ficou para a pequena história dos últimos dias do Período Revolucionário em Curso (PREC): “Não tem perigo. O povo é sereno. É apenas fumaça”.
Hoje, todos dizem que o tabu da saída da União Europeia (UE) caiu. Qual o futuro da União?
Há dois cenários razoavelmente mais prováveis. Um é ter como efeito uma certa autonomização da zona euro, uma espécie de núcleo fundador de uma nova Europa. Alguns responsáveis, como Hollande, já o adiantaram. Com os seis fundadores da CEE [Comunidade Económica Europeia], assistir-se-ia a uma espécie de novo império de Carlos Magno nessa zona da Europa com moeda única, avanço do federalismo político… Não acredito que este cenário seja exequível. Os povos desses países não aceitarão. O segundo cenário, para mim o melhor, será o de aproveitar esta crise para reformular de alto a baixo as instituições comunitárias.
Por onde começaria essa empreitada?
Neste momento, em particular na Zona Euro, os Estados não têm o mínimo de poderes necessários para se auto-governar. É preciso repor de novo esses poderes e, de uma vez por todas, reconhecer que a Zona Euro não funciona nem nunca vai funcionar. Os países que não estão bem dentro da Zona Euro deverão sair – Portugal é um deles. Isso talvez permita repor a União naquilo que foi a sua fundação e seus primórdios enquanto se chamava Comunidade Económica Europeia. O que se deu foi que, em 1992, o Tratado de Maastricht [instituiu a União Europeia e a moeda única] mudou completamente de qualidade o processo de integração europeia. Para mim não é grande surpresa que o Reino Unido quisesse sair, porque a CEE, em 1973, quando aderiu, era completamente diferente do que se tornou 20 anos depois.
Defende o regresso ao pré-Maastricht?
Sim. O que está a suceder desde Maastricht, e com maior pressão a partir da crise de 2008, é uma centralização brutal de poder nas instituições comunitárias, que tem poucos paralelos históricos a não ser na formação de impérios. Nós sabemos, da História, que os impérios na Europa não duram.
Com o Brexit abriu-se a “Caixa de Pandora”?
Abriu-se, mas tinha que se abrir. O que está a suceder na Europa é completamente disfuncional, não se aguenta. Quando uma entidade política deixa de responder aos interesses das populações, ela desaparece. O que pode a UE ser hoje para ser viável? Manter o mercado interno, uma cooperação monetária – não uma moeda única – exercer competências que são as exclusivas da União: ambiental, gerir certos recursos comuns, e pouco mais. Grande parte do que a UE faz é inútil ou contraproducente.
Donald Tusk e Jean-Claude Juncker disseram de imediato que é bom que o Reino Unido se apresse na saída. Qual o poder destes líderes não eleitos democraticamente?
Gostam muito de dizer coisas. É a espuma dos dias (ri). Eles têm de transformar uma derrota numa vitória, e como na prática não é possível, vão fazendo pelas palavras. Não há poder nenhum, hoje, na União Europeia. Nem poder político. É minha convicção que Portugal deve reforçar as relações com o Reino Unido a partir de agora. Deveria ter sido sempre uma das nossas prioridades. Infelizmente passámos para a Europa continental.
O euro está hoje mais frágil com o Brexit?
Penso que sim, no sentido de que acabou um tabu. Houve o tabu de que não era possível sair do euro, e outro de que não era possível sair da União Europeia, e esse acabou. Por arrastamento, penso que o outro tabu também desaparecerá. Inclusivamente, já houve no ano passado um primeiro reconhecimento, quando o ministro Schäuble propôs à Grécia que saísse. Isso marca um corte. Mas se até há alemães contra o euro… Para mim é uma coisa que me espanta. Se eu fosse alemão quereria o euro. Deu um poder à Alemanha que ela nunca teria imaginado sem o euro. Mas há gente para tudo.
Saindo do euro, o que vamos conseguir?
O que não conseguimos fazer na Zona Euro é ter um crescimento orientado para o exterior. O instrumento que a troika inventou para lidar com uma situação de ajustamento num país sem moeda própria foi a chamada desvalorização interna. Já se provou que é extraordinariamente ineficaz porque obtém um ajustamento, mas à custa de custos sociais de tal ordem que rapidamente se esgota. O ajustamento que temos de fazer só podemos fazer com moeda própria, emissão monetária própria e taxa de câmbio própria.
Pense-se numa situação como a necessidade de capitalizar a Caixa Geral de Depósitos. Como seria emitir dívida para os 4 mil ou 5 mil milhões de euros com uma moeda própria mais fraca?
É muito mau quando o Estado não tem outros meios de financiamento se não aqueles que os mercados entendem dar. E isso é o que significa a moeda única. O Estado aparecer no mercado como outro agente económico qualquer. Um Estado moderno não pode aparecer assim. Em última análise, tem de ter, se necessário, capacidade de recorrer à emissão monetária para realizar as suas despesas – foi este o mecanismo que o Reino Unido e os EUA usaram, e não se deram mal com isso.
Ao dar a ordem para imprimir mais dinheiro reforça a desvalorização, mete mais dinheiro em circulação, aumenta a inflação. É sustentável?
O efeito disso não é prejudicar a balança de pagamentos, pelo contrário, até iria beneficiar. O grande efeito negativo que pode ter é se a inflação se descontrolar. É um risco, e por isso convém evitá-lo e não emitir dinheiro à maluca.
E é possível não o fazer à maluca perante as dificuldades do país?
Penso que sim. Repare – e é uma crítica que me faziam muito -, todas essas catástrofes só significam uma coisa, que a economia precisa de um enorme ajustamento. O euro não permite esse ajustamento, permite escondê-lo. Se a tendência é para a moeda se desvalorizar muito, é porque a economia precisa de facto que a moeda se desvalorize. Não há nada que possa compensar isto de outra forma. A desvalorização interna não compensa, é completamente ineficaz. Se me dizem ‘a desvalorização pode ser muito grande’, então só significa que a economia necessita dessa desvalorização.
Na equação dos problemas também está a globalização, a entrada da China na Organização Mundial do Comércio…
Não atribuo toda a responsabilidade ao euro. Tirou-nos foi os instrumentos para nos defendermos.
Não é fã do euro. Da federalização também não. Porquê?
Sou anti-federalista. Tenho a certeza que no dia em que a Europa seja um Estado federal, Portugal desaparece da cena internacional. Deixa de ter representação na comunidade internacional como Estado soberano. Tal como o Nebraska não faz parte das Nações Unidas nem é eleito para o Conselho de Segurança. Rejeito completamente uma Europa federal.
A economia é o seu ramo, mas não há demasiada economia quando deveria haver política?
Acho. Isso foi o grande drama disto tudo, os políticos desapareceram. Nem é a saída dos economistas para entrar contabilistas. Faz sentido falar de sanções por 0,2% do PIB, que até a própria estatística muitas vezes nem sabe distinguir? Coisas dessas não passa pela cabeça de ninguém. É preciso serem políticos de muito má qualidade para que isso venha sequer à agenda, já nem digo ser aprovado.
A soberania está em causa?
A soberania, e pior. A moeda única transformou-se num processo de sujeição das periferias europeias. Coisa que não é nova, porque no nosso país também se deu isso, entre o interior e as zonas metropolitanas, porque o interior não tinha instrumentos para contrariar o fluxo que concentrou nas zonas metropolitanas as actividades económicas e a população. Dentro de um país é aceitável, mal, mas é. Na prática, o povo português aceitou isso. Agora, entre países isso é inaceitável.
Há ainda outra besta negra na política: o tratado orçamental. Que significa ele para a vida das pessoas e empresas?
O grande problema do Tratado Orçamental é não ser cumprível por Portugal, porque exige uma diminuição para menos de metade do peso do PIB pontualmente na dívida pública [esta não poderá exceder 60% do PIB] em 20 anos. Isso é impossível. Um país assinar um tratado que não pode cumprir é logo à partida mau. Foi o caso do Tratado de Versalhes [após I Guerra Mundial] que a Alemanha teve de assinar. Nós não tínhamos uma pistola apontada à cabeça, mas quase, porque se não o tivéssemos assinado não teríamos recebido o dinheiro do programa de ajustamento. Foi numa situação de necessidade. Mas, além disso, um país que não cumpre, isto é, se mantém em défice excessivo – basta que tenha dívida pública acima do que é o programa de redução, e Portugal vai inevitavelmente estar nesse caso –, fica sujeito à aplicação das políticas que as autoridades europeias queiram.
Dê-me um exemplo prático.
Se quiserem que a banca seja toda espanhola, a banca passará a ser toda espanhola. Isso aumentará a periferização do país, irá mais gente sair, os jovens mais qualificados irão para o centro da Europa.
Vê os europeus unidos num Mundial de Futebol a defender uma selecção una da União Europeia?
Não. Isso não existe. Não é bom nem mau, é a realidade. A meu ver, o grande erro do Tratado de Maastricht foi ter pensado que a realidade era outra, que os povos eram todos europeístas convictos, que os interesses nacionais ficavam todos para trás e que a única coisa necessária seria amarrar a Alemanha. Foi o grande erro de percepção, e a partir daí tudo se envenenou.
Da visão do João Ferreira do Amaral desde Maastricht, há 25 anos, para a do actual, o que mudou?
Foi pior ainda do que eu pensava. Pensei que iria ser mau, especialmente para Portugal, mas nem nos piores cenários adivinhava o que sucedeu. Não contei que isto levasse a um domínio tão grande da Alemanha, e a possibilidade da Alemanha fazer o que fez à Grécia. Nunca pensei que fosse possível.