Isabel Mota está ao leme de uma instituição que marca a história recente de Portugal. Lidera uma organização com 62 anos, com activos perto dos 3 mil milhões de euros, e que todos os anos desempenha um papel de enorme relevância na sociedade portuguesa – só no ano passado contribuiu com 67 milhões de euros em actividades científicas, culturais e sociais.
Isabel, conhecida também como “senhora milhões”, lidera a Fundação Gulbenkian desde 2017 e desde então que se tornou numa das mulheres mais poderosas de Portugal. Não é um pequeno feito num país onde ainda há imenso a fazer em prol da igualdade de género.
Entre as empresas do principal índice accionista da Bolsa portuguesa (PSI-20), actualmente há 44 mulheres nos conselhos de administração, uma subida significativa face a 2016, que contava apenas 14, e face a 2010, em que eram apenas 5 as executivas no board das empresas cotadas, segundo dados da OCDE.
Uma subida significativa após ter entrado em vigor, em Janeiro de 2018, uma lei aprovada pelo Governo no ano passado que obriga a que pelo menos 20% dos conselhos de administração das cotadas sejam compostos por mulheres (e a 33% a partir de 1 de Janeiro de 2020).
A Fundação, essa, teve mulheres na administração pelo menos nas últimas duas décadas – inclusive a própria Isabel, que fez parte do conselho de administração desde 1999. Porém, nunca teve uma mulher a comandar o barco.
Em Maio de 2018 fez um ano que Isabel assumiu a presidência da maior fundação portuguesa (o seu mandato termina em 2022). Após aquele que era considerado o candidato natural – António Guterres – ter saído da administração da Fundação para enveredar numa campanha bem-sucedida para ocupar o cargo de secretário-geral da Organização das Nações Unidas.
A Isabel não lhe é alheia essa quebra na tradição e assume a condição feminina como relevante em vez de a menorizar. No discurso de tomada de posse, classificou-se como “mulher de coragem”.
Isabel Mota tem uma tarefa hercúlea pela frente: mudar o foco da Fundação Calouste Gulbenkian, que já não tem vocação para ser o Ministério da Cultura em Portugal.
Mostrou-se consciente da quebra que representava: “Sei que vou romper a tradição coimbrã da Faculdade de Direito – sou mulher, economista e de Lisboa – mas julgo que é mais uma prova da extraordinária capacidade de adaptação e evolução da Fundação”, disse, antes de acrescentar, mais à frente, que esperava que no fim do seu mandato de cinco anos “todos os que têm confiado em mim tenham orgulho no meu mandato como a primeira mulher presidente da Fundação Calouste Gulbenkian”. Agradeceu inclusive à família pelo apoio que lhe deu na construção da sua vida profissional. “A verdade é que as mulheres têm-se confrontado com mais dificuldades e incompreensão e têm feito um longo e persistente caminho na procura da igualdade”, realçou.
Isabel sabe que tem uma tarefa hercúlea pela frente: mudar o foco de uma fundação que já não tem vocação para, nem quer ser e nem precisa de ser, o verdadeiro Ministério da Cultura em Portugal. Chegou a uma altura em que precisa de se reorientar dentro dos limites do mandato deixado pelo seu fundador, o arménio Calouste Sarkis Gulbenkian.
E Isabel tem uma visão para essa mudança, num mundo em mutação veloz e que apresenta perigos ainda por descortinar. “Os grandes problemas globais são sociais e de sustentabilidade do planeta. Esses problemas, como o da desigualdade, têm-se agravado, e é preciso pensar em novas formas de abordá-los”, explica.
A sustentabilidade e a educação – através da produção de conhecimento para a sociedade relativamente a questões de desenvolvimento e formação – a par do apoio aos mais vulneráveis, são os grandes focos para a aplicação dos generosos fundos que a Gulbenkian gere.
Isabel não esquece todas as suas vertentes, desde o Instituto Gulbenkian de Ciência, passando pelo think tank Fórum Gulbenkian, e terminando na dimensão cultural da Fundação, através do Museu de Arte Contemporânea, das exposições temporárias que organiza e a orquestra que assegura a temporada sinfónica. Mas a cultura já não é o foco.
Esse “desinvestimento” já vem de outros tempos – e foi bem visível com a decisão de Rui Vilar, antigo líder da Fundação, em acabar com o ballet, actividade onerosa e cujo fim já foi considerado pela gestora como inevitável. Nos planos de Isabel, estarão medidas igualmente duras como esta.
Desde logo no campo da contenção de custos, já que dos cerca de 100 milhões de orçamento que a Fundação tem anualmente, cerca de metade continua a ser gasto em salários e pensões. Só em 2017, a Fundação registou um acréscimo das responsabilidades com pensões e cuidados de saúde de 6,9 milhões de euros, que somam a um acréscimo da mesma natureza de 21,8 milhões em 2016.
Esta realidade tem, invariavelmente, impacto na dimensão do apoio à sociedade. E como o dinheiro não estica e Isabel assume que não pretende abrir mão do financiamento a actividades culturais, científicas e sociais, é expectável que a sua equipa venha a realizar cortes em alguns quadrantes da estrutura da Fundação.
Arma do diálogo
Isabel é conhecida como alguém que fala copiosamente, que encara a conversa e o debate como forma de alicerçar decisões. “Eu tenho uma forma de trabalhar muito baseada nesse diálogo. As pessoas têm de entender os meus objectivos, a minha missão, e de se sentirem no mesmo barco”, assegura.
E para isso é preciso tempo, acrescenta Isabel. Quando era administradora com o pelouro dos Recursos Humanos dentro da Fundação, conseguia estar mais tempo com os trabalhadores – hoje, esse contacto está mais dificultado pelas naturais exigências da presidência. Contudo, apesar das suas obrigações não a permitirem fazê-lo tão amiúde como antes, não o perdeu na totalidade.
Tem um regime de trabalho que não muda há anos. “Trabalho até muito tarde”, diz. “Começo a trabalhar normalmente entre as 7h30 e as 8h da manhã”, conta, muitas vezes logo em casa. Costuma almoçar no gabinete – excepto às quintas-feiras, quando almoça com os colegas do conselho de administração, numa sala com vista para o jardim desenhado pelo arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles. As pessoas dentro do austero edifício da Gulbenkian sentem-se à vontade para abordá-la depois desta proximidade de anos com os funcionários da Fundação, garante. “Muitas vezes as pessoas que não estão sob minha tutela directa entram no meu gabinete com questões e ideias. Tenho todo o gosto e toda a facilidade em recebê-los”, assegura.
Quem trabalhou com ela sabe que essa proximidade e capacidade de empatizar com os interlocutores não são algo postiço. Nos tempos do Governo, bem mais recuados, há quem faça eco destes traços de personalidade.
O líder de Governo, mais tarde Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, agradece-lhe o empenho. Num depoimento à FORBES, revela que “foram muitos os projectos que beneficiaram do empenho, entusiasmo e habilidade negocial de Isabel Mota, como foi o caso da construção da fábrica de automóveis da Volkswagen em Palmela.
Quem trabalhou com Isabel Mota sabe que essa proximidade e capacidade de empatizar com os interlocutores não são algo postiço.
Gerou-se muito a ideia de que, nas negociações mais difíceis, a argumentação de Isabel Mota tinha um certo condão de reduzir a resistência dos comissários”, garante. Já Luís Valente de Oliveira, ministro do Planeamento e da Administração do Território entre 1985 e 1995, contou com Isabel na secretaria de Estado do Planeamento e Desenvolvimento Regionais no segundo e terceiro Governos liderados por Cavaco Silva.
À FORBES, o antigo ministro recorda a abordagem que lhe fez para ingressar no Governo. Era Verão. O executivo tomaria posse a 17 de Agosto de 1987, assente numa confortável maioria absoluta.
“Já a conhecia do Gabinete para a Cooperação Económica Externa, quando negociámos com o Banco Mundial um empréstimo para um plano para Trás-os-Montes”, recorda. “O primeiro-ministro convidou-a para ir para o Ministério. Telefonei-lhe e desafiei-a. Disse-me que nunca lhe teria passado pela cabeça ser secretária de Estado, mas que aceitaria.”
Luís recorda uma profissional “muito inteligente, muito dinâmica, alguém que olha para o trabalho com alegria e que não regateia nem esforços, nem contactos. E é de um trato agradabilíssimo”, sublinha. Algo importante aquando da negociação dos Quadros Comunitários de Apoio junto de Bruxelas e na supervisão da aplicação doméstica destes.
Realça ainda o papel de Isabel na negociação de projectos como a Autoeuropa, sem, contudo, dar excessiva importância à construtora de automóveis em particular.
“Ela negociou algumas dezenas de Autoeuropas”, reforça. Traça-se assim um retrato de uma mulher que através do domínio da retórica, arte persuasora, leva a água ao seu moinho.
Sustentabilidade do império
Um dos temas mais falados relativamente ao futuro da Fundação diz respeito à forma como se vai financiar. A Partex, empresa petrolífera que explora concessões predominantemente no Médio Oriente, é uma herança do fundador que tem dado dividendos anuais na ordem das dezenas de milhões de euros à Fundação.
Contudo, já só representa uma parcela da fonte dos rendimentos da Gulbenkian, na ordem dos 18% – a grande maioria já advém de aplicações financeiras, que só no ano passado gerou ganhos de 10%. Contudo, o activo da fundação só cresceu 1,4% face a 2016.
Desde Fevereiro está na berlinda a venda da Partex. Já esteve quase a ser vendida aos chineses da CEFC China Energy, mas a venda gorou-se em Abril após a prisão na China do presidente da companhia por suspeitas de corrupção. Recentemente, retomaram a recepção de propostas de compra, mas Isabel nada adianta relativamente aos interlocutores.
Prefere falar do racional da decisão. O petróleo “ainda não é uma coisa do passado”, diz, com um sorriso. Vai continuar a ser importantíssimo num futuro próximo, mas é preciso “antecipar uma situação que vai mudar e participar nessa mudança de paradigma”, elucida.
Nas suas palavras, a alienação da Partex será uma “eventual venda” – e enfatiza a palavra “eventual” – revelando apenas que está “em conversações várias, sem estar propriamente numa fase de negociação”. “O facto de o anterior negócio não se ter fechado potenciou o aparecimento de muitos interessados que têm querido fazer propostas ao conselho”, diz, sem revelar sequer a nacionalidade dos proponentes.
“Estamos a estudar nos activos onde vamos investir” após a venda da Partex, diz Isabel. “Gostaria muito que pudéssemos ter no futuro investimentos alinhados com a nossa missão.”
Os dois maiores critérios da venda são um valor justo e a continuidade da Partex. Além disso, a Gulbenkian não quer enveredar por mais um ciclo de investimento, diz a presidente, e não quer dedicar o seu tempo a negociar concessões ou tecnicidades relacionadas com a Partex.
Não têm pressa, garante. O balanço da Fundação confere essa confiança. De acordo com o último relatório de contas publicado, o activo da Fundação era de 3 mil milhões de euros em 2017 e detinha capitais próprios de 2,6 mil milhões.
Se a venda da Partex se concretizar, emergem questões relacionadas com o carácter da aplicação do dinheiro angariado que deverá render cerca de 500 milhões de euros. A gestora fecha-se em copas. “Estamos a estudar nos activos onde vamos investir”, diz. Mas ressalva: “Gostaria muito que pudéssemos ter no futuro investimentos alinhados com a nossa missão.”
O objectivo é encontrar outros figurinos de financiamento que estão a ser adoptados por diversas fundações em todo o mundo. Vem à mente o fim dos investimentos em combustíveis fósseis da fundação norte-americana Rockefeller Brothers Funds, cujo exemplo foi mencionado numa carta aberta à Gulbenkian, escrita em 2017 e assinada por diversas personalidades portuguesas, apelando a que a Fundação trilhasse o mesmo caminho.
E, neste campo, o investimento em empresas de energia renovável não seria uma surpresa. Aliás, já este ano, em Agosto, a Fundação tornou-se accionista da Suncoutim (com uma posição de 11%), a empresa que explora a central fotovoltaica de Martinlongo, no Algarve, que é detida maioritariamente pela Sonae Capital.
Pedro Norton, administrador de saída da Fundação, diz à FORBES que Isabel tem “um estilo de liderança participativo, capaz de fazer consensos, mas também capaz de tomar decisões mais pesadas quando elas se impõem”, numa alusão à venda da Partex. “Fico muito impressionado pela forma como conhece ao detalhe os dossiers mais complexos da Fundação”, assume.
E esse é o mais complexo que Isabel tem entre mãos. Isabel quer continuar a ser capaz de tomar decisões difíceis. E, por isso, não tem medo de tomar a decisão que corta o cordão umbilical com a maior fonte de riqueza do criador da Gulbenkian que alimentou durante anos a capacidade da Fundação. Os tempos mudaram.
“O meu objectivo neste mandato é que a Fundação Calouste Gulbenkian continue a ser uma fundação de referência na sociedade portuguesa, mas também com reconhecimento da sua acção a nível internacional”, resume, confortável com a uma decisão estrutural, de concretização particularmente complicada, que acabou por ser uma mulher, ela mesma, a tomar.