Fortunato Frederico gostava de ter começado mais cedo. Tem cinco fábricas, cerca de 70 lojas, 620 trabalhadores e um volume de negócios de 64 milhões de euros.
Dentro de sete anos, o grupo Kyaia ultrapassará os 100 milhões de euros graças às marcas próprias Fly London, Softinos, As Portuguesas (parceria com grupo Amorim) e à renovada Foreva.
O grupo Kyaia está sediado em Guimarães e é lá que serão construídos quatro novos pavilhões industriais para sustentar o crescimento da marca Softinos (o chamado calçado de conforto) e o negócio dos chinelos ecológicos de cortiça, com a marca As Portuguesas, que resulta de uma sociedade 50/50 com o líder mundial da cortiça, o grupo Amorim.
“Só estamos à espera das licenças da Câmara para arrancar com a construção. O que queremos é chamar gente da universidade e fazer parcerias. Do nosso lado, asseguraremos edifícios, máquinas e vendas. Do outro lado, contratam mão-de-obra e trabalham para nós”, adianta o empresário vimaranense.
Para realizar este investimento de 10 milhões de euros, a Kyaia não recorreu a qualquer tipo de apoio financeiro.
“Aqui, crescemos com o pêlo do cão. Já a minha mãe me dizia que se gastarmos mais do que temos, depois consumimos mais do que podemos. E esse descontrolo sai sempre caro”, diz o empresário.
Amílcar Monteiro, detentor de 15% do império Kyaia e que conhece Fortunato há mais de 35 anos, destaca justamente a capacidade de o empresário perceber e antecipar problemas, de forma a preparar a melhor resposta. “A sua apuradíssima intuição é sem dúvida uma das suas melhores qualidades como empresário”, diz.
Os planos para aumentar a produção do grupo nos próximos anos estão centrados numa marca em particular: a Softinos.
Fortunato diz que será esta a marca que sustentará o crescimento do grupo na próxima década. “Porque se se tiver em consideração os primeiros anos da Fly London, a Softinos apresenta uma taxa de crescimento maior”, responde.
Por isso, Fortunato prevê que, dentro de sete anos, a Softinos atinja vendas de 40 milhões de euros. “Se a esse valor acrescentarmos as vendas da Fly London, mais os restantes negócios das outras empresas do grupo, passaremos os 100 milhões de euros”.
No centro do universo da Kyaia continua a estar a Fly London, que é a menina dos olhos do empresário. Não é para menos, já que é a marca de sapatos portuguesa mais vendida no mundo e que continua a dar mostras de contínuo crescimento, especialmente nos EUA.
A “mosca” conta com seis lojas (Nova Iorque, Londres, Dublin, Porto e Lisboa) e está a começar a produzir em força malas de senhora. Juntando-lhe a Softinos e a Foreva, as três insígnias pesam 81% no volume de negócios do grupo. Importante é também o negócio on-line, dominado pela Fly London (70%).
No conjunto, o grupo Kyaia é composto por 13 empresas. O volume de negócios de 64 milhões de euros contempla essencialmente calçado (as marcas próprias Fly London e Softinos, bem como a marca de um cliente, a Camel, uma relação com 25 anos), mas também inclui solas, palmilhas, turismo de habitação, produção de vinho e soluções informáticas como o SmartSL 4.0, que resultou de uma parceria com o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência – INESC TEC para aumentar o nível de automação das linhas de costura para a produção de calçado.
O coração do império
A marca Fly London foi adquirida em 1994 pela Kyaia a dois amigos ingleses que se desentenderam quando a iam apresentar numa feira de calçado em Dusseldorf, na Alemanha.
Fortunato conseguiu o que tanto queria, ter uma marca própria. Diz-se que é portuguesa porque foi desenvolvida pelo grupo de Guimarães, que recorre a cinco designers estrangeiros, freelancers, para desenhar as colecções da “mosca”.
“Fortunato Frederico cedo ambicionou criar a sua própria empresa. O sonho não terminaria aí e viria, igualmente, a ser pioneiro na aquisição de uma marca e a assegurar-lhe uma verdadeira dimensão internacional”, diz Luís Onofre, o empresário/designer que lhe sucedeu na presidência da Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Seus Sucedâneos (APICCAPS), no passado mês de Abril.
O sucesso da “mosca” cujo motor é o mercado norte-americano, tem sido uma constante. “Vendemos nos 50 Estados dos EUA”, revela o empresário com orgulho, concluindo que “o segredo está na valorização”.
Tanto a Fly London como a Softinos – que “não são concorrentes, porque uma usa-se durante o dia e a outra à noite” -, são comercializadas em mais de 60 mercados, com destaque para os EUA, Canadá e Reino Unido. Em 2016, conquistaram a Coreia do Sul, Tailândia, Geórgia, Bulgária e Hong-Kong.
Portugal já chegou a ser o segundo mercado da Fly London. Fortunato lembra-se bem de vender mais de 3 milhões de euros no mercado interno: “Com a crise, em três ou quatro anos, passámos para nem 1 milhão de vendas.
Em Lisboa, vendíamos sapatos como quem vendia bijous. De 2010 para a frente desapareceu tudo. Como estávamos a começar a trabalhar os EUA e o Canadá, fomos crescendo”, diz.
Foi presidente da APICCAPS durante 18 anos, mais seis a desempenhar outras funções. Fortunato diz que da primeira vez que tomou posse pediu aos jornalistas para deixarem de falar de trabalho infantil.
“Custava-me ouvir isso porque o que acontecia era que as famílias quando se reuniam à noite para conversar faziam-no nesse ambiente. Não havia exploração nenhuma, era uma ocasião de convívio”, argumenta.
Outra das lutas que travou foi “pôr as mulheres a ganhar o mesmo que os homens. Não foi fácil, porque as mulheres estão em maioria, mas conseguimos”.
O segredo do negócio para a indústria portuguesa do calçado são as feiras internacionais. É lá que se conseguem clientes. E com a Fly London não foi diferente.
Se houve um tempo em que percorria muitos certames e fartava-se de viajar, actualmente o empresário já só faz questão de ir a Milão, Las Vegas e a uma ou outra feira na China e na Índia. E, sim, nos pés tem Fly London.
O empresário congratula-se ainda com o facto de o sector estar a somar recordes nas exportações há sete anos, consecutivamente (1,9 mil milhões de euros em 2016, mais 3,2% do que no ano anterior).
Aponta ainda o slogan “A indústria mais sexy da Europa”, criado pelo departamento de marketing da APICCAPS, que “é quase como quando as mulheres vão para a rua mais pintadinhas (refere-se à maquilhagem) e ficam diferentes. É que os industriais não são propriamente sexy, mas foi e continua a ser uma boa aposta sem dúvida. Até os italianos têm ciúmes das nossas campanhas, que são realmente fantásticas”.
Legado eterno
O pai morreu pouco antes de Fortunato nascer. Em casa, era ele, a mãe, empregada doméstica, e duas irmãs. A mais velha levava-o às cavalitas para a creche da Igreja de São Francisco, onde a “freirinha” cuidava dele e um dia lhe deu o seguinte conselho: “Vais para o seminário porque vais dar um padre de categoria”, recorda Fortunato entre risos. E assim foi.
No seminário, onde esteve quatro anos, um dos professores, o padre Sabino, que testemunhou muitas das travessuras de Fortunato, como fumar barba de milho, disse-lhe: “Tu serves para tudo, menos para padre”.
Já a “freirinha” (que na realidade era a madre superiora) tinha morrido e Fortunato, com 14 anos, e ansioso por ganhar dinheiro, foi trabalhar para a fábrica de calçado Campeão Português, onde começou a varrer o chão.
Até que foi cumprir o serviço militar para Kyaia, no Norte de Angola, e quando regressou continuou a trabalhar no sector do calçado.
Em 1984, resolveu criar a Kyaia – Fortunato O. Frederico & C.ª, vocacionada para a produção e exportação de calçado. Hoje, é o maior industrial do sector em Portugal – em 2005, recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Mérito Agrícola, Comercial e Industrial, entregue pelo então Presidente da República Jorge Sampaio.
Um ano depois de ter fundado a Kyaia, Fortunato passou a premiar financeiramente o melhor aluno da escola primária de Donim. Foi lá que, muitos anos antes, o próprio Fortunato recebeu o prémio de melhor aluno: a sua primeira ida ao cinema.
Agora, é a Fundação Oliveira Frederico que assume esta responsabilidade social e o prémio foi alargado a outras escolas de Guimarães e de Paredes de Coura. No futuro, Fortunato também irá atribuir bolsas de estudo a filhos de trabalhadores do grupo.
E está igualmente a ser trabalhada uma parceria com uma universidade com vista a apoiar a investigação da doença bipolar (da qual padece a filha do empresário).
Por agora é Fortunato quem está à frente da fundação que criou para homenagear os filhos, Frederico Nuno, que faleceu com 18 anos num acidente de viação, e Sandra. A Fundação Oliveira Frederico está sediada em Guimarães, na Quinta da Eira do Sol.
No ano passado fez os primeiros donativos de cariz social (cerca de 40 mil euros) e actualmente o capital é de 500 mil euros, estando previsto um aumento para breve.
Jorge Sampaio e Valente de Oliveira são os curadores, tal como a Universidade do Minho e a Câmara Municipal de Guimarães.
Amílcar é o sócio que Fortunato escolheu e fez crescer à sua imagem. “É um homem de trabalho, inteligente e capaz de levar o projecto em frente”, diz. Amílcar tinha 15 anos quando começou a trabalhar com Fortunato e hoje é seu sócio.
Tratou-se de “uma escolha natural” e será no futuro o líder do império que ajudou a construir.
À FORBES, Amílcar sublinha a grande influência que Fortunato teve na sua formação, tanto como homem e como profissional, e a enorme vontade que o empresário continua a mostrar em enfrentar novos desafios.
“Passámos tantas, tantas horas juntos nas fábricas, em viagens pelo mundo fora, e o que mais me impressionava e ainda impressiona é a sua energia, a sua determinação, a sua obsessão por fazer acontecer coisas, projectos novos.” Foi com toda esta força que há cerca de 12 anos Fortunato ambicionou dar a volta à Foreva, um dos seus maiores desafios.
“Só não fechei a Foreva porque ficava muita gente no desemprego”, começa por dizer Fortunato, que comprou a empresa em 2005 em estado de insolvência.
O objectivo era dominar toda a cadeia de valor. “Por um lado, tinha disponibilidade financeira e, por outro, queria crescer”, recorda. Apesar de falida, aquela rede de lojas era um negócio apetecível porque gerava 24 milhões de euros e traria massa crítica para o grupo.
Só que as fábricas de Fortunato não iam trabalhar para a Foreva, que comprou por 7,5 milhões de euros (incluindo a Sapatália, que abandonou por estar posicionada num segmento mais baixo).
Aliás, isso nunca se colocou e na sua cabeça sempre se tratou de negócios distintos. “A Foreva tem de comprar barato para vender barato. A Kyaia fabrica caro, a Fly London, por exemplo, para ter boas margens e poder sustentar o crescimento do grupo”, adianta o empresário vimaranense.
Em 2005, a maioria do calçado que era vendida na rede Foreva era comprada no exterior, sobretudo na Ásia. Com o passar dos anos, defender mais qualidade significava comprar mais quantidade à indústria portuguesa de calçado e não o contrário. Agora, 60% do calçado comercializado na Foreva é fabricado em Portugal.
Dar a volta aos problemas
No seminário que frequentou em miúdo, havia um professor especial. Era o que conseguia fazer amizade com todos os alunos, incentivava a prática de desporto, música, dança e teatro.
Para Fortunato, o padre Sabino era o seu mentor e a amizade manteve-se até aos dias de hoje.
Quando hoje o visita no lar de idosos (o padre franciscano está com mais de 90 primaveras), Fortunato ainda o provoca – “Ó padre Sabino, olhe ali o padre David fino como um rato e você não”.
O padre David tem 100 anos e também foi professor de Fortunato. Mas a resposta não tarda: “Sabes, ele foi mais recatado do que eu”, atira-lhe o padre Sabino. Entre risos, o empresário revela que o padre “comia como um desalmado”.
Como ficou animado ao recordar o mentor, Fortunato aproveita para falar da altura em que o padre Sabino quis saber por que nunca mandava benzer as fábricas. Um dia convidou-o para benzer uma das fábricas de Paredes de Coura, que passados 15 dias ardeu num incêndio.
Claro que não perdi a oportunidade e disse-lhe: “Ó padre Sabino, as outras fábricas do grupo estão todas a trabalhar e a que o senhor foi benzer ardeu. Mas ele replicou: ‘Cala-te, se eu não a fosse benzer ardia toda, assim só ardeu um bocado’”.
Com a crise económica, a partir de 2008, o consumo em Portugal caiu a pique e o negócio da Foreva também. Dois anos depois o declínio continuava e o grupo Kyaia foi aguentando em nome da responsabilidade social (“não queríamos acrescentar mais desemprego ao país”) e também porque a parte industrial do grupo o permitia.
“Mas tudo tem limites”, atira Fortunato, que admite que “a Foreva tem sido um pesadelo desde 2010”. Consequência disso mesmo é a correcção da rota inicialmente traçada, que passa por diminuir o número de lojas e subir de segmento.
Mas até onde irá o redimensionamento da Foreva? “Até acharmos o equilíbrio que a torne rentável”, responde. Certo e sabido é que têm vindo a fechar lojas e as 65 actuais não são o número final, pois está previsto o encerramento de mais de uma dezena.
Sem querer dar a conhecer, pelo menos para já, a nova Foreva, o empresário diz apenas que será menos e melhor.
“Conheço concorrentes da Foreva que em 2005 facturavam 25 milhões de euros e hoje facturam 70 milhões. O mercado interno é muito desregulado, em todos os sentidos, e quem for para o mercado e tiver regras, está em desvantagem. Portanto, é um segmento de mercado que não nos interessa e não vá escrever o que está a pensar porque mais não digo”.
Para o empresário, “mais vale ser pobre numa empresa rica do que ser rico numa empresa pobre”. Isto a propósito da parceria que fez com a Investvar, que chegou a ser a maior empresa nacional de calçado, com a marca Aerosoles, mas foi declarada insolvente em 2010.
“Entrei na empresa para a Europa, onde também estava um sócio alemão. No segundo ano chegámos a vender 400 mil pares, ganhámos muito dinheiro”, recorda.
Daqui a um outro negócio foi um passo e compraram a rede de lojas Labelle, em França. Mas nem tudo corria de feição. Fortunato diz que não estava na gestão directa do negócio e como discordava dos métodos pôs um ponto final em todos os negócios com a Investvar.
Aprendeu que além de ser fundamental conhecer bem o negócio e os parceiros, “é preciso ter um pouco de estômago para aguentar estes jogos todos”. Contudo, as más experiências que teve no passado, e não foram apenas estas, não lhe turvaram a visão para o negócio.
Aventura a Oriente
Quando resolveu constituir a Kyaia, Fortunato percebeu de imediato que para ter sucesso tinha de ganhar mundo nas feiras internacionais do sector. Aliás, foi numa dessas feiras, em França, que conheceu o seu “irmão” paquistanês, a quem comprava as peles para produzir o calçado.
Fortunato reconhece que o “excelente arranque e crescimento da Kyaia”, na década de 1980, também se ficou a dever, “e muito”, aos preços convidativos das peles do Paquistão, que eram de “óptima qualidade”.
A amizade surgiu naturalmente e, convencido pelo comerciante, o empresário vimaranense abriu uma fábrica de gáspeas (que é a parte de cima de um sapato) no Paquistão.
Só que pouco tempo depois a sociedade desfez-se por causa das diferenças culturais. Por exemplo, uma vez Fortunato enviou àquele país uma colaboradora para inspeccionar a fábrica, onde só trabalhavam homens, e “a coisa deu logo barraca”, recorda.
Mas pior do que isso era a questão dos prazos de entrega: “Como já estava farto de ser penalizado pelos clientes, tive que pôr termo à sociedade. Ele dizia-me, mas nós somos irmãos e eu respondia-lhe, está bem, mas não pode ser. Tu ficas com a fábrica e se alguém me pedir sapatos para daqui a um ano eu dou-te a encomenda, agora antes não”.
Nas peles o problema não se punha porque Fortunato controlava com stocks. No entanto, aprendeu que “no mundo há muitas religiões diferentes da nossa, há muitos conceitos de prazos de entrega diferentes do nosso e, depois, qualquer hora é boa para rezar”.
Fortunato confessa, no entanto, que nunca diz não a uma boa parceria. Exemplo disso é a que firmou no passado mês de Maio com o grupo Amorim.
A Kyaia detém 50% da Ecochic, tal como a Amorim Cork Ventures, dedicando-se agora aos chinelos em cortiça, As Portuguesas, criados pelo jovem empreendedor Pedro Abrantes, que até agora eram comercializados através de uma loja on-line. Agora, com a Kyaia a bordo, a colecção, que será lançada no mercado no final de 2018, chegará a Inglaterra e aos EUA.
Amílcar revela que o seu amigo e sócio sempre foi um homem aberto a inovação e às novas tecnologias, “tendo impulsionado e ajudado a encontrar soluções tecnológicas para resolver e melhorar alguns processos na produção do calçado”. A Kyaia é disso exemplo.
Actualmente, além da produção própria em Guimarães e Paredes de Coura (2 mil pares por dia), a empresa recorre à subcontratação na Ásia.
Neste capítulo, a parte boa é melhor do que a parte má, mas não quer dizer que não haja dificuldades. “Se não subcontratássemos gáspeas (a parte de cima do sapato, sendo que a parte de baixo corresponde à sola) na Índia, não podíamos produzir metade dos sapatos que produzimos”, adianta o fundador da Kyaia.
O grupo subcontrata mais de 2 mil pares de gáspeas por dia. Depois, a montagem desses cortes é feita em Guimarães.
Deslocalizar a produção para países que oferecem mão-de-obra mais barata nunca foi tema que seduzisse o gigante português do sector do calçado. Para Fortunato, é muito claro que gerir à distância nunca deu bons resultados.
Nem isso nem fazer negócios com quem não se conhece bem: “Acreditamos que o outro é como nós, que corre, salta e sacrifica tudo para que o projecto resulte e às vezes não é bem assim. E eu só durmo bem se a minha empresa for sólida”, confessa Fortunato.