Fátima Pinto, a jogadora portuguesa que anunciou antes do Mundial o seu regresso ao Sporting, é uma das Navegadoras que está na capa digital de julho da Forbes Portugal (leia a reportagem completa aqui). Esta é a segunda parte da conversa com a atleta que na altura da entrevista ainda jogava no Alavés, da liga profissional espanhola, e conhece bem a realidade que as jogadoras portuguesas encontram no estrangeiro.
Como é que foi começar no futebol misto?
No meu caso, que sou da ilha da Madeira, não havia mesmo equipa feminina naquelas idades. Havia no desporto escolar, mas não em clubes. Havia a nível sénior, tanto que eu com 13 anos, quando sai, fui jogar com mulheres de 30 e tal anos. Mas acho que também foi muito importante no meu crescimento futebolístico ter começado numa equipa mista, porque sentia muita diferença depois não no melhor sentido. Eu treinava muito com os rapazes e quando fui para o futebol feminino só treinávamos duas vezes por semana, não tínhamos condições, se estava a chover cancelavam o treino. Eu ficava doente porque era impensável só porque estava a chover não poder ir treinar. Foi um choque bastante grande trocar do futebol misto para o feminino.
Sair de Portugal foi uma vontade ou uma necessidade?
Foi um bocadinho de tudo. Joguei um ano em Portugal, fomos campeãs e ganhámos a Taça de Portugal, e eu pensei: ‘Ok, já vivi isto, agora quero mais, quero outra coisa, quero diferente’. Surgiu a oportunidade de ir para o Santa Teresa [Espanha] através da Cláudia Neto, a nossa capitã, e eu aceitei, nem pensei muito na verdade, queria viver essa experiência. Em Portugal, quando assinei pelo Ouriense não se pagavam salários. Simplesmente tinha casa do clube, tinha alimentação e as viagens para a Madeira, o que já era muito na altura. Ao sair de Portugal, o meu principal objetivo nem era a nível monetário, era mesmo para ir viver outra experiência. Já pagavam, mas valores que cobriam a alimentação, não eram valores para ser profissional de futebol, muito longe disso.
Um salário mínimo?
Nem sequer, não. Estamos a falar em 2013 ou 2014, num Santa Teresa, que era uma equipa de meio da tabela na liga espanhola, não era nem um salário mínimo.
Como foi a experiência de jogar a liga profissional espanhola (Liga F)?
Sinceramente, como já tinha estado cá há oito anos, regressei a esta liga e esperava as coisas um bocadinho diferentes. Eu também estou numa equipa que não pode ser comparada aos grandes, mas vou falar da minha realidade. Na equipa onde estou agora tenho basicamente, tirando a nível monetário, obviamente que isso já estamos numa liga profissional, a nível de condições de trabalho são muito semelhantes às que eu tinha no Santa Teresa há oito anos. E isto fez-me pensar um bocadinho. Claro que há coisas que melhoraram, mas a liga eu diria que sim é profissional, no facto de ter uma base salarial obrigatória a todas as equipas, mas acho que também ainda tem um caminho para percorrer. Obviamente que os grandes já têm outras condições de trabalho que evoluíram ao longo dos anos. Para o Alavés é o segundo ano que está na primeira liga e acredito que tem muito potencial se cá ficar de conseguir dar as melhores condições às jogadoras, acho que estão no bom caminho. Ainda agora começaram com as obras, porque acho que entrará a regra que será obrigatório relvados naturais e não sintéticos e acho que isso já é um grande passo.
A base salarial de 16 mil euros está em vigor?
Está em vigor, sim, está tudo legislado pela liga e posso dizer que o clube nisso não me faltou em nada, cumprem tudo a 100%.
O que é necessário para chegar à profissionalização da liga cá?
Eu vou puxar aqui um bocadinho à liga espanhola. Às vezes ter melhores condições não é só a nível salarial, por isso é que eu digo que esta liga ainda tem espaço para crescer. A verdade é que a base salarial já temos, mas uma coisa que eu considero muito importante cá em Espanha, e falando com algumas colegas que cá estão, o exemplo da Matilde [Fidalgo] , da Tatiana [Pinto]: nós chegamos a fazer sete, oito, 10 horas de autocarro para ir para um jogo. E quando falamos de condições para o futebol feminino é não ter de estar 10 horas dentro de um autocarro para depois ir jogar. É os clubes terem condições para pagar voos, ou minimamente os comboios rápidos, alimentação nos clubes. Em clubes mais baixos, no meu caso e da Matilde, não dão alimentação às jogadoras. Obviamente que em deslocações dão, mas digo no dia a dia, que são coisas que nós já começamos a ver como básicas e que certos clubes não têm. Ou por exemplo lavar a roupa. E acho que em Portugal ainda há muito esta realidade. As viagens são muito curtas, isso não se pode comparar, mas de horários de treino, de não estar a treinar às 20h, de ter alimentação antes ou depois do treino ou jogo, consoante os horários, que as pessoas não tenham de estar a lavar a roupa em casa. Às vezes são pequeninas coisas, não é só o dinheiro.
Coisas que são importantes na vossa rotina
Claro que sim, porque se queremos ser profissionais disto temos de estar só focadas nisto e não em muitas outras coisas que às vezes temos de fazer ou sacrificar para poder estar a jogar. E acho que isso ainda é uma realidade em Portugal. Também vai haver a regra da Federação, acho que em 2025, de ser obrigatória relva natural. Os clubes terem essas condições acho que é um passo muito importante para a liga, mas também me preocupa que certos clubes tenham relvado natural mas não estejam em boas condições, o que também pode proporcionar lesões às jogadoras. Acho que isso também tem de ser bem visto. Lembro-me de um exemplo, o Ovarense que tinha relvado natural, mas aquele campo era propicio a lesões para as jogadoras e os balneários não tinham condições nenhumas. Eu tenho medo que essa realidade se repita nos próximos anos em Portugal. Estaríamos a crescer numas coisas, mas de forma camuflada, diria eu.
Como é o ano de uma jogadora de futebol feminino com tantas competições?
Eu tenho a sorte que o meu clube vai libertar-me mais cedo. A minha equipa vai continuar a treinar mais uma semana, como há possibilidade de ir ao Mundial e eles sabem libertam-me mais cedo. É uma gestão complicada, queremos ir de férias porque precisamos de descansar fisicamente ou psicologicamente, mas ao mesmo tempo o pensamento neste momento é que temos o Mundial e queremos estar bem. Há que saber gerir e equilibrar aqui: ok, férias, mas também ter noção que isto é uma oportunidade única e que pode ser só uma vez na vida, temos de estar bem para esse momento. Ou seja, dentro das férias também vou treinar porque se for chamada à seleção não quero chegar lá na estaca zero, não é esse o meu objetivo.
O que é que se sente antes da convocatória?
Há sempre nervos até vermos o nosso nome na lista. A verdade é que já é um processo de muitos anos, mas cada vez mais temos jogadoras com muito talento em Portugal e todas querem lá estar, toda a gente trabalha para o mesmo objetivo. O facto de lá estarmos há mais tempo pode dar-nos um bocadinho de mais tranquilidade, mas ao mesmo tempo temos noção que é um Mundial, é uma exigência diferente, que há mais gente a ver, mais exigência nas convocatórias e sabemos que temos de estar ao mais alto nível para poder ter a possibilidade de lá estar.
Até posso falar aqui de um caso pessoal. Eu tive uma fase aqui no campeonato em que não estava a jogar. Ou seja, eu fui para a Nova Zelândia sendo titular da equipa e jogava 90 minutos, regressei do estágio da seleção e do nada deixei de ser titular, sem nenhuma razão aparente fui para o banco. Foi uma fase complicada. Obviamente já pensava no Mundial e se não estava a jogar no clube dificilmente seria convocada à seleção. Era algo que me estava a preocupar imenso, não foi fácil de gerir. É não se deixar afundar nos momentos mais complicados e ter sempre um foco, um objetivo, e trabalhar para isso ao máximo.
É importante gerir esse lado emocional? Têm apoio dos clubes a esse nível?
O clube tem psicólogo e tem essa equipa por trás. E mesmo a minha agência também tem. Mas eu, por exemplo, sinto que se não for eu a fazer, ou se estiver digamos num buraco, se não for eu própria a tirar-me de lá também não há ninguém que me consiga tirar. Funciono muito assim, sou muito de puxar por mim. Eu estou há muitos anos no futebol e agora que há uma oportunidade que é o sonho de qualquer jogadora, participar no Mundial, de repente não estou a jogar, e estou a ver que o sonho que eu tinha de querer lá estar está a ficar cada vez mais longe. É duro, é muito duro. Até cheguei a conversar com o professor Francisco, no último estágio, e disse-lhe: ‘no que depender de mim, eu vou jogar a fase final do campeonato, vou fazer de tudo para o jogar, o que estiver ao meu alcance eu farei tudo’. Ainda bem que consegui e agora já estou bem mais feliz nesse sentido.
Como é que foi aquele final do jogo do play-off intercontinental?
No meu caso foram muitas emoções, eu nunca tinha chorado por ganhar nada. Por perder já tinha chorado, mas por ganhar nunca. Quando a árbitra apitou caíram-me as lágrimas. São muitos anos de trabalho, muitos anos a querer provar que somos capazes e que podemos lá estar, que estamos ao nível, e chegou o nosso momento. São nove anos mais ou menos que estamos a trabalhar com o professor Francisco, e tivemos várias fases: tivemos a fase em que não ganhávamos, tivemos a fase do quase, a fase em que jogávamos bem e não ganhávamos e finalmente chegou o nosso momento. É muito gratificante, foram muitos sentimentos.
O que gostavas que as pessoas entendessem sobre o futebol feminino?
Que é futebol igualmente, mas uma coisa é um futebol praticado por homens e outra coisa é um futebol praticado por mulheres. São diferentes e não vale a pena estarmos a querer comparar porque são incomparáveis. Eu gostava que as pessoas percebessem isso mesmo. E acho que ainda há muita gente que não consegue perceber.
E os investidores, o que devem entender?
Que isto não é investir hoje e ver resultados amanhã. Acho que muita gente quando investe pensa: ‘se eu vou pôr o meu dinheiro em algum lado, quero ver resultados’. Mas isto é um processo longo, não é uma coisa que vai acontecer em um ou dois anos. Os investidores têm também de perceber isso, que não há um resultado imediato e é preciso ter paciência. Nós estamos a dar passos pequeninos e não podemos dar um passo maior se não temos estruturas base para sustentar, por exemplo, o campeonato português e os clubes.