Se perguntar a um português que acompanha o futebol feminino contra quem é o próximo jogo da seleção no Mundial 2023, é muito provável que a resposta “Estados Unidos” venha acompanhada de um semblante que facilmente se traduz em: Não está fácil. Para os mais distraídos, a FORBES falou com Cátia Silva, integrante da equipa de redes sociais da National Women’s Soccer League (NWSL), para perceber que equipa é esta. Afinal, o que é que vem aí?
A equipa
“Quando se fala de futebol feminino, a primeira coisa que vem à cabeça é: Estados Unidos. Mesmo não acompanhando os clubes. Há sempre imagens icónicas do feminino que nos levam aos Estados Unidos. Mesmo não sabendo como elas jogam, todos temos a ideia de que vem aí uma potência mundial. São as melhores do mundo. Ganharam quatro vezes o Mundial, têm de ser as melhores do mundo”, afirma Cátia.
Em resumo, é isto: estamos a falar da seleção que mais vezes ganhou este torneio. Foram quatro no total, em 1991, 1999, 2015 e 2019. Dentro de campo fica mais do que justificado o receio que se sente quando se defronta esta equipa, mas falar dos Estados Unidos é falar de algo que supera tudo aquilo que as jogadoras já fizeram dentro das quatro linhas.
Esta seleção é grande também por aquilo que conquistou e, com certeza, vai continuar a conquistar fora de campo. O futebol feminino é um lugar melhor porque teve um grupo de norte-americanas a lutar por ele. A luta pela igualdade salarial na equipa nacional, a luta pelos direitos das jogadoras grávidas, a luta por melhores condições, a luta contra o racismo, a homofobia ou qualquer forma de discriminação. Se há coisa que esta equipa não consegue, é virar a cara a qualquer que seja a batalha.
As protagonistas
Cátia divide este grupo em jogadoras mais jovens, que se juntaram recentemente à equipa, e as da velha guarda. “Duas das novas, não dá para escolher uma. Tens a Sophia Smith, que foi MVP [jogadora mais valiosa] da NWSL no ano passado. Cuidado Portugal! É uma flecha e ao lado tens outra flecha, a Trinity Rodman, que sempre foi muito conhecida pela irreverência dentro de campo. Depois tens sempre as que já esperas. A Megan Rapinoe tenho a certeza que vai mexer muito fora de campo, é o último Mundial. Já em 2019 foi uma peça fundamental fora de campo. E a Alex Morgan. Quando são chamadas mexem com tudo”, explica.
A história
Os momentos em que o jogo da seleção norte-americana se sobrepôs ao de qualquer outra equipa já foram mencionados. Mas como o legado deste grupo vai muito além disso, procurámos saber quais foram os momentos que tornaram os Estados Unidos aquilo que são hoje também fora de campo. “Há vários momentos que marcam esta seleção. Isto é de geração em geração, elas entram aqui e o discurso e mentalidade é logo adaptado. Elas podiam ser a pior equipa do mundo, mas na cabeça vão sempre ganhar”, conta Cátia.
Há três pontos de viragem.
“Acho que há um momento icónico que muda o panorama mundial do futebol feminino. Todos nós que acompanhamos futebol alguma vez na nossa vida vimos a foto da Brandi Chastain sem a camisola, depois de marcar um penalti no mundial de 1999. Foi icónico porque foi uma vitória, estádio completamente cheio, num Mundial, onde quase ninguém ainda dava valor ao futebol feminino e há uma mulher que tem a ousadia de tirar a camisola e festejar o golo. Correu o mundo. Um momento mais recente foi em 2015, no Mundial. Elas sabiam que no Canadá iam jogar em relva artificial e foram contra a FIFA por causa disso. Jogaram, ganharam e voltaram às negociações no final do torneio. A partir daí a FIFA comprometeu-se a nunca mais ter o maior torneio em relvado artificial. Em 2019 tens no Mundial o momento enorme em que elas ganham e tu ouves equal pay [igualdade salarial]. Que só foi conseguido este ano, inicio de 2023″, diz Cátia.
Este último momento talvez seja aquele que está mais presente na memória das pessoas. Final do Mundial 2019, os Estados Unidos vencem a partida que está a ser transmitida para os quatro cantos do mundo, na altura dos festejos o estádio inteiro grita: equal pay, equal pay. O momento em que o mundo inteiro foi confrontado com a desigualdade no futebol surgiu porque a seleção norte-americana já estava a lutar por isso há algum tempo. Inclusive levaram o caso para tribunal.
E, com certeza, não ficam por aqui. “O equal pay é o início da escalada de mais uma montanha. E elas passam isso também para as novas gerações. Há muito por fazer”, diz Cátia.
A mentalidade
As jogadoras norte-americanas chamam-lhe “LFG”, que significa let’s f****** go. De uma forma resumida, esta equipa já sente que entra em campo a ganhar. Não na prática, mas a nível de mentalidade de cada uma das jogadoras.
“Dentro de campo é importante esta mentalidade. Fora de campo esta abertura, que é preciso realmente lutar por aquilo que queremos e não só porque queremos, é aquilo que temos direito, igualdade em tudo. Nós temos de ter igualdade em tudo. É esta sensação de insaciedade, ‘eu quero mais, mais, mais’. Querer ser mais e melhor em tudo, e não há nada de mau nisso. O LFG em tudo devia ser consumido e trazido para cá”, explica Cátia.
Ao mesmo tempo, a forma como nos Estados Unidos se olha para o futebol como um produto de entretenimento. Não é apenas um jogo. Assim, as atletas já entram neste universo a saber que é importante fazerem um trabalho também como marca.
“Olhem para as redes sociais delas, claro que a Rapinoe ou a Morgan têm uma equipa por trás, mas as que começaram agora não têm. Elas próprias fazem questão de estar ali todos os dias a partilhar coisas, porque sabem que elas são uma marca. Elas valem mais do que um clube. Esta é a mentalidade. Em Portugal ainda olhamos muito só para dentro de campo”, continua.
A despedida
Antes do pontapé de saída no Mundial 2023, Megan Rapinoe anunciou que este seria o último ano da sua carreira – como se esta equipa precisasse de ainda mais motivação para ganhar. Não é difícil acreditar que as colegas de equipa só a queiram ver sair pela porta grande. Por tudo o que ela deu ao futebol feminino.
“Dentro de campo diria que não perdem assim muito, porque o talento que vem aí é tão bom ou melhor do que ela. É normal, têm mais condições a crescer, vão ser melhores. Mas a nível de voz, não há uma luz que se apanha, mas há ali algo que vai ficar um bocadinho mais escuro. Embora eu tenha a certeza que dentro daquela equipa vamos ver uma ou outra que quando a Rapinoe sair vão entrar em ebulição. Ela está a plantar sementes. Mas vamos perder esta [pessoa] irreverente, que é uma mulher, de cabelo pintado, que diz que não vai à ‘f****** white house‘. Não há muita gente assim”, diz Cátia.
Rapinoe recusou mesmo ir à Casa Branca enquanto Donald Trump fosse presidente dos Estados Unidos, uma vez que não concordava com as falas e decisões do então presidente. Mas não ficou por aí. Deu a cara pela defesa da igualdade salarial, pelos direitos das mulheres, contra a homofobia, a favor da integração dos atletas transgénero nas ligas de qualquer modalidade. E a lista continua.
“Ela dá a cara por tudo, mesmo que não peçam. Isso é o legado dela fora do campo. Ela sabe que tem a voz, todas as outras atletas querem ser como ela. É assim que se levanta um tumulto bom. No futebol feminino falamos muito de game changers, ela é uma game changer total. Uma das maiores da atualidade”, conclui.
Portugal vs. Estados Unidos
São todas estas coisas que, na próxima terça-feira, vão entrar em campo contra Portugal. O próprio Presidente da República, quando confessou acreditar na caminhada da seleção, chamou-lhe “o impossível”. Talvez, agora que ficou a conhecer o nome da seleção norte-americana, no final do jogo já não consiga esquecer o nome de Portugal.